Estarão as chamas de ‘Fahrenheit 451’ a alastrar?
Uma das grandes obras de ficção científica do século XX, Farhenheit 451 da autoria do escritor americano Ray Bradbury, descreve um futuro distante onde a missão dos bombeiros não é a de apagar fogos mas sim de os atear, nomeadamente aos livros e às casas dos seus proprietários que são, logo de seguida, presos e executados. Escrita em 1953 e adaptada ao cinema em 1966, por François Truffaut, esta é uma obra que pode ser equiparável aos ilustres 1984 de George Orwell e Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, retratando uma sociedade onde os livros são proibidos, as crianças não são ensinadas a ler nem a pensar e ninguém questiona o que quer que seja. O título, que apresenta o número 451, corresponde à temperatura em graus Fahrenheit (cerca de 230 Celsius) a que o papel era queimado. O autor conta que a sua intenção original, ao escrever o romance, era mostrar o seu grande afecto pelos livros e bibliotecas, mas facilmente esta tornou-se numa obra que gera uma série de questões no leitor, tendo um poder enorme que lhe dá uma certa eternidade passados mais de sessenta anos da sua publicação. De verdades assustadoras a factos reais, a forma como reconhecemos o nosso mundo naquele que é retratado em Fahrenheit 451 é impressionante. O romance é frequentemente interpretado como uma crítica à censura patrocinada pelo estado, mas para o para o próprio Ray Bradbury trata-se de um livro que explora as consequências da televisão e dos media na aprendizagem e na literatura, embora se fosse escrito hoje teria certamente em conta muitos outros factores.
A acção de Farhenheit 451 decorre nos Estados Unidos da América, país que é atingido por movimentos hedonistas e anti-intelectuais e que perdeu totalmente o controlo. A anarquia predomina nas ruas, desde jovens que atropelam pessoas por diversão, aos bombeiros que ajustam o seu Cão Mecânico, um robô de oito patas semelhante a um cão, para caçar animais apenas pelo simples prazer de os ver morrer. A personagem principal, Guy Montag, é um bombeiro profissional que há mais de dez anos tem a missão de queimar os livros que lhe ordenam, e que encara o seu ofício com enorme prazer por ver as chamas a consumirem as páginas. Montag vive com a sua esposa Mildred e esta dorme numa cama em separado com um frasco de comprimidos à cabeceira e com assistência médica permanente. Entretanto surge Clarisse, uma rapariga de 17 anos que se torna sua vizinha e que lhe fala de coisas que lhe parecem absurdas como a liberdade de pensamento e a questão da felicidade, questões essas que eram muito importantes no passado. Subitamente Montag deixa de ver Clarisse pois esta morre devido a um atropelamento, o que o deixa perplexo e refém das questões que aquela rapariga aparentemente tresloucada lhe colocara cada vez que se cruzavam. Numa das suas missões, durante uma rusga à casa de uma senhora que permanece ao lado dos seus livros enquanto os vê a incendiar, Montag fica altamente perturbado com o episódio a que assiste, acabando por ficar com um desses livros e consequentemente com uma série de interpelações que surgem na sua mente, colocando em causa a sua profissão. No desenrolar da história, surge também um professor de Inglês aposentado de seu nome Faber a quem Montag recorre, com o fim de recuperar os livros que tanto deseja. Correndo o risco de ver a sua carreira de bombeiro incendiário arruinada, Montag embarca num caminho que o leva a descobrir novas vertentes perdidas no passado.
A aventura com livros, que o chamam à curiosidade e que o atraem como se de uma droga se tratasse, torna-se de tal maneira intensa que acaba por ser descoberto, vendo-se obrigado a incendiar a sua própria casa durante uma das suas missões. O seu chefe, Beatty, que confessou ter conhecimento de todas as suas acções clandestinas, encarrega-o de tal missão. Durante o acto de carbonizar os seus pertences acaba por também atear chamas a Beatty depois deste ter descoberto que mantém uma interacção permanente com Faber através de um intercomunicador, tentando posteriormente salvar os livros que restam no meio das chamas. Acaba por ficar sem casa, é abandonado pela mulher e é perseguido numa autêntica caça ao homem pela polícia e pelo próprio Cão Mecânico que consegue identificar uma série de odores com uma precisão extrema. Durante a sua fuga encontra um grupo de intelectuais que vivem exilados da cidade e cujo líder, Granger, fala do exemplo da fénix e dos seus ciclos de vida infinitos: morre nas chamas e renasce das cinzas, acrescentando que tal ciclo porderá ter semelhanças com a humanidade e que poderíamos aprender muito com isso. No final existe um pequeno capítulo em que o autor explica o seu objectivo com o livro e admite que, por mero acaso, o seu subconsciente chegou-lhe mesmo a pregar uma partida na escolha dos nomes das personagens: Montag é um nome de uma companhia de papel e Faber é um nome proveniente da famosa fabricante de lápis Faber-Castell.
Frame do filme Fahrenheit 451, de 1966, realizado por François Truffaut
A ideia de tornar os bombeiros, conhecidos por serem os “soldados da paz”, símbolo máximo da resistência do ser humano, e que colocam as suas vidas em risco pelas vidas de outros, em incendiários cruéis que sentem o prazer do lavrar das chamas é uma ideia que pode muito bem retratar os tempos que correm. Como é óbvio trata-se de algo meramente metafórico pois não há nenhuma crítica à profissão de bombeiro, que é uma das mais dignas, mas sim à condição humana cada vez menos evidente num mundo que se encontra cada vez mais em constante combustão. Passados mais de sessenta anos de ser publicado, Fahrenheit 451 tem um poder de nos fazer rever em muitas das temáticas retratadas ao longo das suas páginas. Será que temos cada vez menos tendência em questionar? Daremos mais importância às respostas e não às questões? Será que hoje em dia os livros são queimados como em Fahrenheit 451 mas de uma maneira meramente figurativa? Em suma, a grande questão que se coloca será mesmo: estarão a chamas de Fahrenheit 451 a alastrar?
Se fizermos uma pequena análise do mundo que nos rodeia, parece que as chamas se tornam mais intensas com o passar do tempo, e que, por conseguinte, se alastram chegando mesmo a consumir-nos. Os últimos acontecimentos remetem-nos para tal conclusão mas existem igualmente vertentes mais profundas que não saltam tanto à vista. Por exemplo, a nível académico há uma tendência clara das instituições avaliarem os conhecimentos através de uma série de testes ou exames cujas respostas exigidas são as mais breves possíveis, deixando de parte o lado mais poético do conhecimento e promovendo o decorar de conteúdos e matérias que são posteriormente descartadas: existe uma despromoção total do pensamento em si. As pessoas têm tendência em procurar os conteúdos de matéria resumida e o mais directa possível, procurando a todo o custo as respostas e não as perguntas, pondo de parte alguns detalhes que podem ser muito importantes: há uma despromoção das questões e uma sobrevalorização das respostas. Os livros que mais vendem e que estão expostos nas livrarias são aqueles que não nos colocam em causa e que passam por nós como uma leve brisa em vez de nos marcarem, tratando-se quase de um fogo-fátuo de curta duração e que facilmente é substituído por outro em ciclos indefinidos: a prova de que tendemos a gostar pelas coisas facilitistas sob as quais nunca nos fartamos. Serão estas as chamas figuradas que se propagam com velocidades e intensidades cada vez maiores?
Muitas destas questões são difíceis de responder e estas são algumas das possíveis respostas que podem estar certas ou erradas. No meio de um sistema que nos obriga a ter as soluções para tudo, um simples “não sei” é provavelmente a resposta mais honesta para as perguntas com as quais nos deparamos. A incerteza é um dos actos mais humildes que há no ser humano e não há mal nenhum em fazer uso desta sempre que necessário. Os livros, aqueles que nos interpelam e que nos fazem pensar, geram em nós uma série de questões de tal maneira intensas que conseguem colocar-nos a nós mesmos em causa. É igualmente inevitável que um texto sobre como Fahrenheit 451 não seja intitulado com uma pergunta cuja resposta não é imediata. Serão estas as chamas figurativas que Ray Bradbury quis retratar neste romance que envolve uma série de abordagens subjectivas? E seremos capaz, tal como a fénix, de renascer das cinzas voltando ao que éramos inicialmente, ou as chamas continuarão a alastrar? Estas são apenas algumas das questões que se podem retirar de Fahrenheit 451, cujas respostas, mais uma vez, são incertas. As questões sem resposta imediata são assim muito mais importantes do que aquelas cuja resposta seja directa e é isso que torna eternas as obras literárias que permanecem nas estantes e nas livrarias embora sem destaque mas que continuarão sempre a ser vendidas ano após ano, sem precisarem de ser substituídas. Ainda assim, hoje temos a certeza de que Fahrenheit 451 é um bom exemplo de obras que não precisam desse exuberante destaque pois o seu intenso conteúdo destaca-se facilmente de muitas outras.