Este é o maior desafio das nossas vidas, escolham bem em que parte da história é que querem ficar
Há muitos médicos e enfermeiros que ao longo da sua vida e da sua carreira adquiriram treino e competências, aliados à experiência que lhes permitem gerir situações de vida e de morte com uma certa naturalidade. Eu já escolhi deixar pessoas morrer sem pestanejar. Há muitas decisões que assombram o minha práctica médica, mas estas não. Decidi que era por um bem maior. O tempo que iria dedicar àquela pessoa interceptando a elevada probabilidade de morrer, e sabendo que outros doentes com mais probabilidade de sobreviver precisariam da minha atenção conduziram-me a uma decisão, por vezes em segundos (e sim, isto não é magia, é ciência) de quem deixar morrer e de quem tentar salvar. Não me magoaram estas decisões. Decidi que não era a minha dor. Não os ouvi sofrer, não sei quem são, nem ouvi as dores da sua família porque estava mentalmente e emocionalmente conectado aos que decidi que poderia salvar.
Estou a falar em contexto de multi-vítimas, bombas, granadas, ou também grandes acidentes de aviação, onde o grande desafio na maior parte dos casos é a hemorragia. É de uma frieza que por vezes até me assusta a mim próprio, mas eu sei as regras do jogo. Tenho que perceber as capacidades que tenho, o número de doentes, quem é que fisiologicamente me está a dizer que perdeu mais sangue, e quão difícil é parar a hemorragia de cada vítima. Se for eu a pessoa mais qualificada para fazer esta triagem, não toco em nenhum doente, a não ser que seja uma artéria a sangrar até que alguém me substitua, enquanto não tiver um panorama global de todos os traumatizados, para depois definir prioridades e intervenções. Tem um método, tem muita ciência e requer um estado quase desprovido de emoções. Chama-se Medicina de Catástrofe. Já o fiz por volta de duas dezenas na minha vida. Nunca é bonito. Faço o máximo pelo maior número de pessoas possível e sigo a minha vida.
Qual é o paralelismo com a Covid-19? Todo e nenhum. Todo porque na escassez de recursos humanos para tratar tantos doentes, temos que tomar decisões sustentados nos mesmos princípios de triagem, fazer o máximo pelo maior número de pessoas tendo em conta as probabilidades de sobreviver. E nenhum porque estes doentes demoram muito tempo a morrer. A característica mais cínica desta doença é a lentidão. Entre o diagnóstico, o internamento e nos casos mais graves, a morte, podem ser dias ou semanas, e isto é uma tortura emocional. Do ponto de vista do doente e das suas famílias podem imaginar que cada um terá a sua história. Do ponto de vista de cuidador de saúde, com particular ênfase para os enfermeiros e auxiliares, têm tempo de saber quem são, o que fazem, o seu sentido de humor… cria-se uma relação muito forte que de alguma forma substitui a enorme solidão que estes doentes passam nos hospitais, para depois deixar o coração aos pedaços no momento de dizer adeus.
E se isto já é doloroso para aqueles em que sentimos que nada mais podíamos ter feito, e foi apenas a doença que foi mais forte do que a medicina no seu estado da arte, imaginem a disrupção de seres humanos ao saber que alguns vão passar por esta avenida tenebrosa porque os hospitais não têm capacidade para mais, e porque a sociedade civil ainda não conseguiu compreender que se não se diminuir o contacto com outras pessoas, muitas vão morrer e não precisavam de morrer, e que quem sempre cuidou das pessoas com carinho vai ficar destruída neste processo.
Ninguém está preparado para isto. Eu não estou e já vi demasiado do que nenhuma pessoa deveria ter visto.
É uma catástrofe lenta e silenciosa, que só é travada se percebermos o nosso papel na sociedade quer a diminuir os contágios quer a proteger os mais atingidos por esta terrível crise económica e social.
Este é o maior desafio das nossas vidas, escolham bem em que parte da história é que querem ficar.