Eutanásia. A bioética do “Não matem os velhinhos”
“Não matem os velhinhos”, nunca me vou esquecer desta cena anedótica diante do parlamento. A eutanásia e o suicídio medicamente assistido correm tinta desde há uns anos para cá. Estamos numa dessas alturas, a questão regressará ao parlamento dia 20 de Fevereiro. Uma problemática que envolve perspectivas muito singulares de ver o valor da vida. O cerne da questão, parece-me, é exatamente este, se o indivíduo tem a liberdade de escolher o tipo de valor que dá a sua vida num estado de direito.
Filosoficamente, podemos encarar a vida como tendo dois tipos de valor: um intrínseco, a vida vale por si só, ou comparativo, em relação à sua ausência. A nível bioético, de um ponto de vista mais pragmático, discute-se qual o valor primordial na ética médica, se a autonomia, se a não maleficência. Quem se opõe à eutanásia, muitas vezes, na minha opinião, atribui à vida o valor de tipo intrínseco. Não nos podemos esquecer que até há relativamente pouco uma tentativa de suicídio falhada dava direito a prisão. Um resquício de uma religiosidade estatal de um estado que se define como laico. Para quem professa uma crença cristã, trata-se de uma posição perfeitamente coerente. Se é Deus que atribui a vida, também a Ele a compete retirar.
Mas até que ponto esta posição pode ser prescrita à restante população que não partilha do mesmo credo? Não pode, se estivermos presentes num verdadeiro estado laico. Há um ponto relevante a fazer aqui, a questão da eutanásia é na minha óptica, um problema religioso, em oposição ao aborto que versa realmente sobre qual é a definição de vida, os seus limites, numa determinada sociedade. Discute-se a liberdade de alguém poder atribuir o valor que quer à sua própria vida, não à vida dos outros. Estamos a falar de seres dotados de livre-arbítrio.
No entanto, há que separar a eutanásia do suicídio medicamente assistido. Não são a mesma coisa. Uma é feita a alguém, outra é uma decisão tomada e efetivada pelo próprio. O argumento de que pode haver arrependimento, como exemplificado por vários casos em sítios como a Bélgica, tem que ter ser tido em conta. Se é uma questão de liberdade, também não me parece coerente pedir ao médico para premir o gatilho, apesar de poder ser ele a carregar a arma. Trata-se de um fardo difícil de dar a alguém. É o ajuste necessário para salvaguardar o ethos médico do Primum Non Nocere. Ou caímos num paternalismo antiquado em que a sociedade e o médico dizem ao indivíduo como viver a sua vida ou caímos na violação de um dos princípios fundamentais que orienta a vida do clínico. Parece que é apenas uma maneira de lavar as mãos de forma moral ao médico, mas é mais do que isso. É atribuir ao sujeito a liberdade última, a responsabilização total pela sua vida e pela sua morte. O potencial da morte do próprio só se pode actualizar pelas mãos do mesmo.
Não, não sejamos hiperbólicos. Não se vão matar velhinhos, não se vai matar pessoas de forma gratuita, vai-se sim, atribuir aquilo que o Homem tem lutado desde de sempre para possuir: a liberdade para escolher o seu destino, mesmo que este seja a morte.
Texto de Afonso Delgado Gonçalves
Afonso é estudante universitário de Medicina e Filosofia, de 23 anos, entusiasta de tudo o que implica pensar e detentor de uma curiosidade infindável. Um aspirante wannabe a médico-filósofo.