“Evidence”. Patti Smith e Soundwalk Colective: à procura do infinito da poesia

por José Paiva Capucho,    24 Março, 2024
“Evidence”. Patti Smith e Soundwalk Colective: à procura do infinito da poesia
Soundwalk Collective (Stephan Crasneanscki, Simone Merli) / © Vanina Sorrenti ; Patti Smith © Jesse Paris Smith
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Inaugurou esta sexta-feira a exposição “Evidence”, colaboração de Patti Smith com os Soundwalk Colective no MAC/CCB, onde permanecerá até setembro. Uma viagem poética entre o universo de Rimbaud, Artaud e Daumal.

Um email chega à caixa da produção do MAC/CCB. Pergunta-se se é possível arranjar uma mesa de um poeta português. A escolha mais lógica é Fernando Pessoa, poeta para toda a obra e de todas as línguas, mas, sendo o tema mais dado ao surrealismo, a uma aventura sensorial rumo ao infinito, o lado português tem outra sugestão: o poeta e escritor Mário Cesariny. A dica não vem sem uma certa dose de alarmismo. A tarefa parece quase impossível tendo em conta o aproximar da data de um evento muito especial. Mas o que é mesmo necessário é um objeto que seja porta de entrada para a exposição “Evidence”, parceria entre Patti Smith e os Soundwalk Colective (Stephan Crasneanscki e Simone Merli), um trabalho imersivo, sonoro, visual, desenhado e, sobretudo, infinito, à volta da obra e viagens de três grandes poetas franceses: Antonin Artaud, Arthur Rimbaud e René Daumal. Pode parecer um exercício demasiado intelectual para as mentes menos habituadas a experiências tão absorventes como esta, mas aqui fala-se sobretudo de uma expedição em busca do amor pelo outro. E todas as peças contam.

Patti Smith © Stephan Crasneanscki

O duo criativo, encabeçado pela ícone punk-rock norte-americano e por Stephan Crasneanscki, começou a desenhar este trabalho a partir da criação de “Perfect Vision”, tríptico de álbuns inspirado na obra dos três poetas, todos gravados entre a serra Tarahumara, no México, a Etiópia e os Himalaias, na Índia. “Evidence” esteve quatro meses no Centre Georges Pompidou, em Paris, e vai permanecer seis meses em Lisboa no MAC/CCB, com a curadoria de Chloé Siganos e Jean-Max Colard, a começar a partir desta sexta-feira. Todos os materiais usados na exposição foram meticulosamente embalados com uma daquelas folhas usadas em provas de crime (“evidence”, em inglês), num jogo provocatório dos autores. E foram muitos: dezenas de documentos, sanscritos, utensílios, esboços, filmes, colagens, fotografias, seis mil faixas de blocos de som. Mas faltava um. E pouco antes do dia da inauguração, o CCB recebe finalmente uma notícia: Cesariny já cá não está, mas existe uma secretária “de viagem” perfeita para a ocasião.

Patti Smith, música mas sobretudo, e sublinhe-se o sobretudo porque tem sido assim que tem querido ser vista, poeta e escritora (“Apenas Miúdos”, sobre a sua doce relação com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, tornou-se um sucesso além fronteiras), não podia estar mais contente com a escolha. Ela, que se enamorou pela poesia logo aos 16 anos, através de Rimbaud, que lhe mostrou o futuro da poesia nos idos do século XIX, é o cérebro por detrás de “Evidence”. Já passou algumas vezes por Portugal. Ninguém esquece o épico concerto dado no Festival Paredes de Coura em 2019. O seu poder mobilizador sentido no festival contrasta com a persona tranquila que habitou o museu lisboeta. O pai adorava “Lisboa Antiga” de Amália Rodrigues e a escritora de 77 anos prometeu-lhe que viria a Lisboa beber da inspiração de Pessoa no Chiado. Aqui está, apenas por uns dias, e, antes de subir ao palco do Grande Auditório do CCB este sábado, tem uma tarefa: não parar de criar.

Soundwalk Collective & Patti Smith, MAC-CCB / António Jorge Silva
Soundwalk Collective & Patti Smith, MAC-CCB / António Jorge Silva

É como se estivesse num permanente estado de meditação mas, em vez de parada, tem de mexer os músculos e, sobretudo, a cabeça cristalizada por duas tranças. Esta sexta-feira, antes e depois da apresentação à imprensa de “Evidence”, Patti Smith deambolou pelas três ilhas da exposição. Uma esponja de conhecimento. Primeiro, sentou-se na secretária de Cesariny, pela qual se apaixonou, para escrever em cima de um desenho de montanhas, pedaços de terra que representam uma viagem interior impregnada em “O Monte Análogo” de Daumal e absorvidos pela artista. Depois, inscreveu umas palavras a vermelho – “Warning” (aviso) – nuns sacos de areia deixados ali por um jardineiro para que se ligasse à boca de incêndio colocada ali ao lado. Não estava previsto. Patti pediu que ninguém limpasse a terra que deixou no chão junto a outros materiais que Stephan Crasneanscki trouxe das viagens. Na quinta-feira passada, já tinha desenhado uma linha a cruzar três fotografias de Artaud, sentado a fumar, dando toda outra perspectiva àquelas imagens inseridas num grande mural, o verdadeiro mapa de “Evidence”.

A exposição, apesar de ter data marcada para o seu início, nunca está acabada. Se um acidente acontece, fica como prova para o puzzle que cada espectador construirá. É também pedido que se escute ao longo de “Evidence”, através de auscultadores, uma banda sonora de reflexões, versos poéticos e sons inscritos em mais de 500 fragmentos de áudio. “Nós procuramos o espaço infinito”, disse-nos Patti Smith. Agora, o público que avance na sua expedição pessoal, tarefa difícil para uma sociedade metida em bolhas, preocupada com a sua individualidade e não tanto com o que se passa à sua volta. Se não for a arte a desafiar-nos, quem será?

As viagens de Stephan, que levam o mundo poético até Patti Smith

Stephan Crasneanscki é um homem alto mas do qual não se nota o ego. Tem créditos mais do que firmados. Já trabalhou com nomes como Jean Luc Godard e, em 2022, venceu um prémio no Festival de Veneza pelo seu trabalho sonoro em “Toda a Beleza e Carnificina”, de Laura Poitras. Foi preciso subir o microfone no MAC/CCB para que o francês conseguisse falar. Está sempre atento ao que a performer e artista plástica lhe pede, há ali uma ligação quase umbilical de quem se conhece de tantas outras vidas, mas não. Conheceram-se durante uma viagem de avião, de Paris para Nova Iorque. Um acaso feliz. Cranseancki estava a ler um livro de poesia de Nico, nome artístico da alemã Christa Päffgen. De estranhos passaram a colaboradores íntimos. Nasceu um primeiro disco, “Killer Road” (2016) e logo veio o tríptico dedicado aos poetas franceses.

Em “Evidence”, se Patti Smith é o cérebro que encarna a obra e a vida de quem a influencia, o francês é corpo que viaja sozinho até aos lugares ancestrais em busca das atmosferas sonoras experienciadas por Rimbaud, Daumal e Artaud. Stephan traz o mundo poético até Patti Smith. A performer escuta, toca e improvisa os textos. Segue-se o estúdio. Antes, a Índia, a Etiópia, o México, qual o próximo destino? Ninguém sabe. “Não estou interessado na natureza, procuro o acidente no som. Pode ser um cão a ladrar, um carro, passos. Cria-se um momento, um acto de presença”, conta-nos. O artista nunca sabe quando o trabalho acaba e raramente considera que a sua investigação é suficiente. Não marca alojamento, recorre-se, por vezes, de guias e repete as viagens mais do que uma vez. “Acumulo experiências de som. O mais importante é ser invisível. Desaparecer para o som vir”, diz.

Soundwalk Collective & Patti Smith, MAC-CCB / António Jorge Silva
Soundwalk Collective & Patti Smith, MAC-CCB / António Jorge Silva

Apesar de serem os dois protagonistas deste projecto, não se pode ignorar que, num espaço infinito de criação é preciso organizar o caos. Dos departamentos de pensamento e das artes performativas do Pompidoud ao jardineiro que involuntariamente potenciou uma nova criação na exposição. É preciso também olhar para o sistema de som tridimensional, Usomo, criado e depois usado “Evidence” pelos alemães da Framed immersive projects, que segue geograficamente cada espectador munido de auscultadores, dando-lhe uma nova imersão sonora para visitar as três ilhas. Steffen Armbruster é o representante e um dos fundadores da Framed. “Quando te moves, o som criado pelo Stephan vai-se transformando de um lado para o outro neste espaço. Toda a mistura é feita por nós, somos como os produtores sonoros”. A uma distância apenas de dez centímetros, a tecnologia sabe exatamente onde cada um de nós está. O campo metafísico encontra-se com a evolução natural do ser humano. Há, por exemplo, sons ativados quando nos sentamos a observar um jardim de peiotes, pequenos cactos sem espinhos do México que produzem um psicoactivo chamado mescalina, que Artaud experimentou em 1947. “O som aumenta, tudo se torna mais silencioso. Se mudas de uma parede para a outra, tudo muda. Várias exposições dentro da mesma”. Espaço, som, imagem. Tantas evidências.

Quando os jornalistas se foram embora, Patti Smith voltaria para a secretária de Cesariny. A filha, Jesse Smith, que a acompanhou até Portugal, toma o seu próprio tempo em “Evidence”. Stephan, entre falar connosco e assegurar que alguém guarda os vinis dos Soundwalk Collective, tenta acautelar os anseios criativos da poeta. A certa altura, sentam-se os dois, virados para o grande mural. Não é possível perceber o que dizem. Aceitamos a proposta inicial de toda a expedição: usar a imaginação. Pensar nos poetas. Nas viagens. Na guerra. Nas alterações climáticas. Em nada. Nos temas dos autores e nos nossos. No que procuramos enquanto estamos por cá, pergunta derradeira de Daumal no fim de vida. Já estarão a pensar no próximo projecto? “Gostamos os dois muito de trabalhar. Gostamos de ver até onde podemos ir”. Deixemo-los estar que estão bem. Apenas miúdos num espaço infinito.

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