“Excelente”, em torno de uma classificação
Ontem cruzei-me na Faculdade de Letras de Coimbra com dois colegas (ambos catedráticos) que admiro e estimo há muitos anos; e surgiu, em conversa rápida, uma breve troca de impressões sobre o tema «Universidade – ontem e hoje». Acima de tudo, lamentámos, no âmbito das Letras, as enormes dificuldades sentidas pelas gerações mais jovens em pôr o pé, hoje, na carreira universitária. Eu não tenho dúvida de que existem, actualmente, pelo menos seis jovens investigadoras e investigadores na área do Grego e do Latim que me merecem uma avaliação (baseada na minha experiência de 30 anos de carreira universitária) que me leva a achar uma injustiça chocante elas e eles não terem tido as oportunidades de entrar na profissão de professor universitário que eu e pessoas da minha geração tivemos. E o contraste entre passado e presente é tanto mais amargo quanto não tenho dúvida de que, quando eu próprio era estudante da Faculdade de Letras de Lisboa, havia professores catedráticos que tinham muito menos publicações do que estes jovens têm agora – jovens que continuam por tempo indeterminado fora do sistema.
O sistema. Havia coisas péssimas no sistema como ele era quando eu era jovem. Todos sabemos como os quadros das Faculdades de Letras estavam repletos de mediocridades; todos sabemos como funcionava a herança do Estado Novo, em que normalmente havia um catedrático brilhante que se tinha cuidadosamente rodeado de colegas medíocres para impedir qualquer tipo de concorrência. Antes do 25 de Abril, a Biblioteca do Departamento de Estudos Clássicos em Lisboa estava fechada à chave e só o catedrático lá podia entrar: tal era o terror que ele tinha que os seus colegas menos categorizados lá entrassem e aprendessem alguma coisa que ele não soubesse.
Vimos de um passado caricato, sem dúvida. Mas estamos a construir, nas Universidades, um presente que é também caricato à sua maneira. A Faculdade de Letras de Lisboa que eu conheci quando era jovem estava cheia de um corpo docente na sua maior parte ágrafo: um corpo docente de professores universitários que não escreviam nem publicavam (com honrosas exepções, como é óbvio). Depois de eu me ter doutorado, e já depois de eu ter a chamada «nomeação definitiva», cheguei a votar a concessão de nomeação definitiva a um colega que, entre o doutoramento e o pedido de nomeação definitiva (cinco anos após o doutoramento), tinha publicado apenas um artigo. E obteve a nomeação definitiva, sem qualquer problema. Isso era a Universidade – «in illo tempore».
Hoje é tudo muito diferente. Antes de mais, ninguém obtém hoje a nomeação definitiva sem uma quantidade grande de publicações, participações em colóquios e coisas do género. Hoje é tudo contabilizado em termos de quantidade; e hoje nós, professores universitários, somos avaliados periodicamente: é-nos atribuída uma classificação com base na quantidade das nossas publicações.
A classificação mais alta é «Excelente». Um colega cá em Coimbra comentava há tempos que ficou chocado com a facilidade com que ele próprio chegou ao excelente. Tive de lhe dar os parabéns, porque, por estranho que isso possa parecer a quem está fora da Universidade, eu, Frederico Lourenço, nas avaliações a que fui sujeito com base no meu desempenho desde que estou em Coimbra, nunca obtive a classificação de «Excelente». Fiquei apenas pelo «Muito Bom». (Obtive sempre excelentes classificações dadas pelos estudantes pela minha prestação como professor; mas, curiosamente, essas classificações não contam para a nota.)
Não tenho qualquer problema em dizer aqui publicamente que não obtive, ainda, desde que foi instituída a avaliação de desempenho, a classificação de «Excelente»: porque não considero que isso me envergonhe. Considero que se trata de algo que envergonha a Universidade de Coimbra.
Nestes anos em que não obtive «Excelente», obtive o reconhecimento nacional de ganhar o Prémio Pessoa. E obtive o reconhecimento internacional de ser várias vezes citado, graças às minhas publicações em inglês sobre temas filologia grega, por estudiosos que não conheço pessoalmente, e de cujo reconhecimento em relação a mim eu soube pela coincidência de eu ter comprado os livros deles, porque são da minha área científica. Livros publicados pela Oxford University Press, pela Cambridge University Press, pela Harvard University Press. São os livros que estão nas fotos que acompanham este post.
A última avaliação a que fui sujeito pela Universidade e em que, de novo, não obtive «Excelente» abrangeu o ano de 2017, em que não se pode dizer que fui propriamente ágrafo, já que publiquei o 2.º volume do Novo Testamento (611 páginas) e os Profetas do Antigo Testamento (1009 páginas).
Houve momentos, em 2018, em que me senti um pouco desiludido com aquilo em que a Universidade se tornou.
Mas depois chegou-me às mãos a nova edição da «Hécuba» de Eurípides, publicada pela Cambridge University Press e preparada por um dos maiores classicistas de Itália, o Prof. Luigi Battezzato. Não conheço o Prof. Battezzato e não faço ideia como ele chegou aos meus estudos em inglês sobre Eurípides. Mas de uma coisa não tenho dúvida: ser citado por ele de forma abonatória é, para mim, a melhor nota de «Excelente» que alguma vez eu poderia obter. Talvez a melhor que obtive em toda a minha carreira universitária.