Fado: o último reduto do silêncio

por Francisco Guimarães,    26 Janeiro, 2022
Fado: o último reduto do silêncio
Fotografia de Freguesia de Estrela / Unsplash
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“(…) É quase fim-de-semana e podemos, talvez, beber uma cerveja
ao cair da tarde, enquanto planeamos a viagem a Paris. E se Paris
for muito caro — sei que isto não está fácil — podemos ir a Guimarães
assistir a um concerto, que ouvir é a maneira mais pura de calar” 

Filipa Leal, in Vem à Quinta-Feira

As semanas têm 7 dias. Em 4 deles, normalmente, durante a noite, entro por várias casas de fado adentro assim como quem quer ser embalado ouvindo o som mais antigo e saliente da cidade. Acabo de trabalhar, passo-me por água e sabão quando a pressa não me chama e lá vou eu, habitualmente para o Fado ao Carmo, que uso e abuso como se fosse a minha principal morada, mas também para a Bela, cuja gerente dá nome à casa e é toda ela Lisboa, para a clássica Mesa de Frades, um dos sítios mais elegantes que a cidade tem, para o Fama de Alfama ou até para o Tejo Bar, que não sendo uma casa de fados é um lugar onde o mundo se veste de canção e onde a música, e por isso o silêncio, ocupa um lugar central e hoje em dia em vias de extinção.

Ir tantas vezes por semana aos fados parece exagero, uma dependência da qual não me consigo separar. É verdade. E quanto mais vou menos sei viver sem ela, não fosse esse um dos evidentes atributos do vício. Mas tem uma razão de ser. E não é um vício para escapar da realidade, um alheamento ou uma viagem, mas antes uma maneira de lembrar o que sou, de onde venho, de encarar de frente a minha natureza. Não é uma fuga de mim mesmo ou uma evasão, é um encontro. Quando me perguntam se não me farto, se não me canso de ouvir cantar de perto as vozes timbradas dos descendentes de Amália e Marceneiro, de escutar os poetas, de me deitar de madrugada, de andar por aí a vaguear por Alfama de luzes gastas e sombras habitadas e outros sítios escondidos onde Lisboa acorda e se veste de cidade boémia, respondo com um perentório não, de quem tem a certeza de que a arte e por isso o silêncio conduz à salvação. E se conduzem à salvação devem ser preservados tanto quanto cada homem e mulher. 

Hoje em dia, ir a uma casa de fados parece ser contra natura. Não é leve nem fácil, ainda que quando se entra de coração aberto num lugar assim seja difícil negar a sua grandeza. É notória essa evidência pela instantânea comoção dos turistas, outrora surdos por serem estrangeiros, profundamente tocados pelo privilégio a que assistiram. Mas o fado não é canção, e muito menos ruído, é uma linguagem estranha, muito particular até. O fado é de difícil compreensão, é preciso uma certa rotina para o conhecer bem e estar atento aos detalhes da sua composição, apesar de o seu código genético ser popular e humilde, e despretensioso o seu sentido. A métrica é regular, as tónicas batem certas com os sons, as palavras são bem ditas, com solenidade e clareza, para de alguma maneira contrariar o mistério que trazem dentro de si. Se durante o dia o ritmo é desenfreado e as nossas mãos maquilham a tristeza dos rostos com pó de arroz — porque tudo é para ser frenético, tudo é para fazer barulho, tudo serve para nos distrair, tudo nos consome para não vivermos verdadeiramente, tudo está construído, à partida, para não prestarmos atenção e parecermos coisas que não somos —, numa casa de fados exigem-nos o mais assustador silêncio — daquele que sonda a natureza dos objetos —, suplicam para que nos lembremos da vida como ela é, na sua plenitude. Não se bate palmas, o som é cru e acústico, raramente se canta por cima da viola, da guitarra e da voz do fadista, e mesmo nas marchas mais alegres ou ao som do “Pechincha” ou do “Rosita” permanece viva uma melancolia própria e pura. É a forma subtil de o fado narrar a vida titubeante em que vivemos. Se tivermos a sorte de ir parar a uma boa casa de fados como estas que mencionei e como outras que não mencionei porque frequento menos, só podemos entrar nos intervalos e a comida só é servida quando não se está a cantar. Porque uma coisa é cantar e outra é comer, e por norma são duas atividades incompatíveis: só se digerem decentemente se for à vez. 

É por tudo isto que não abdico deste cansaço. Vou às casas de fado para aprender o silêncio, para ver bem como funciona o tempo — porque o fado não nos trespassa rapidamente numa relação epidérmica ou fútil — e as coisas concretas e aparentemente insignificantes que a vida tem. Vou às casas de fado para contrariar o ruído que me perturba o sono e a existência, vou às casas de fado para lembrar a vida, as suas aflições e euforias, os seus mistérios, para desafiar as certezas que aporto na minha arrogância, para que as vozes cantadeiras me ensinem a ser gente.

Naqueles lugares pequenos, à mesma dimensão do Homem, apagam-se as luzes lentamente e rápido se ilumina o olhar de quem escuta, rápido se alumbra o peito de quem, através de uma voz sôfrega e uma face enrugada pelas vindimas da vida, vive como se fosse o próprio fadista — em excesso, sempre em excesso! 

É que hoje em dia tudo fica pela metade, como nos ensinava Pessoa. A experiência inteira e simples, onde gravita o tutano, deixou de ser valorizada. Os nossos olhos habituaram-se às luzes do circo a aparecerem por todos os lados como faróis e esqueceram-se da rudimentar experiência onde a verdade permanece. A música, só a de fundo, para entreter os nossos afazeres. Basta perceber, por exemplo, que nos concertos, nos teatros e no cinema falamos, conversamos e tiramos selfies entre cada canção e o silêncio deixou de ser silêncio — é confrangedor, como uma página em branco, é inconveniente e faz comichão, como lã a roçar na pele sensível, e atormenta. Se o vazio — que raramente é vazio — irrompe como vento, preenche-se, foge-se, e estar mais do que frações de segundo com ele desorienta-nos tal qual o safanão de uma onda.

É cada vez mais raro uma experiência tão completa e tão humana, tão verdadeira e tão total como aquela que se tem numa casa de fados. Isto sim — quais olivais e mirtilos! — deveríamos cultivar intensamente. O silêncio é um lugar que educa e aconselha, fazendo de nós tecidos permeáveis, o silêncio ensina-nos que o tempo não é nosso, é um trânsito onde toda a existência acontece no nosso coração, o silêncio é tudo quando não vale a pena dizer nada. E tantas vezes assim o é. 

É que quando há fado de certeza que há silêncio.

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