Falar de comida é falar de afectos

por Sara Rathenau,    9 Janeiro, 2023
Falar de comida é falar de afectos
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Nota: com o que escrevo não quero de maneira nenhuma retirar importância ou gravidade aos distúrbios alimentares. São difíceis e muito dolorosos. Precisam de cuidado, de atenção, de acompanhamento profissional e acima de tudo de muita resiliência. Quem efectivamente sofre de um, sabe do que falo.

“A emoção, não é apenas uma experiência privada, mas um acontecimento partilhado com outros seres humanos — aquilo a que podemos chamar uma comunhão”, escreveu o psicanalista Tubert-Oklander (2007, disponível aqui). Comunhão significa participação em comum. Ou por outras palavras, dar e receber.

Em 2018 assisti no colóquio de Psicanálise para o Século XXI a uma palestra do Dr. José Manuel Pinto. Nesta palestra o Dr. José Manuel Pinto mostrou-nos a diferença no cérebro de duas crianças com 3 anos de idade. A imagem eram dois cérebros um à esquerda de uma criança dita “normal” e um segundo à direita de uma criança altamente negligenciada afectivamente. A diferença na imagem não enganou ninguém. A imagem do cérebro da criança altamente negligenciada mostrava que a massa no cérebro não se desenvolveu tanto e apresentava cavidades. Sabemos, portanto, que o alimento é o combustível para o ser humano viver e crescer, mas não será também o afecto?

Convido-vos a pensar de forma simbólica sobre a comida e o que a mesma poderá representar. Vamos começar pelo princípio. Quando o bebé nasce, a primeira relação que tem é com o seio. É através do mamar, que o bebé recebe alimento, mas também afecto. É o primeiro lugar afectivo, é o primeiro lugar de comunicação com o outro, com o cuidador primário. E quem diz seio, diz também biberão. O que é certo é que todos/as nós começamos a relacionar-nos com um outro através da boca e da ingestão de alimento. Chamada fase oral, segundo Freud. O bebé para sobreviver precisa não só de alimento, mas também de afecto. Esta é a nossa primeira relação, que servirá de molde à medida que crescemos e passemos a ter outras: connosco, com os outros e com o mundo.

Quantos bebés já não vimos e ouvimos a chorar que se acalmaram imediatamente na presença do seu cuidador e do seio ou biberão? O mamar ou a ingestão de alimento na presença do cuidador primário é um regulador emocional para o bebé. O bebé não se consegue regular sozinho, precisa sempre de um outro cuidador que o ajude a regular. É na presença do alimento e do afecto que o bebé se acalma.

Quando me aparece um adulto em consulta com questões alimentares, penso na gravidade e na ajuda que precisa, mas penso também nas seguintes questões: Como serão os afectos vividos por esta pessoa? Como lidará esta pessoa com as suas emoções? Como será e como terá sido a qualidade das suas relações? E é a partir destas questões que começo a compreender a pessoa. E vamos devagar construindo um novo caminho.

Quando comemos, alguns de nós sentem conforto, outros sentem culpa. Alguns de nós não pensam no que comem e outros estão sempre a pensar. Alguns de nós comem o que querem, outros estão sempre a restringir-se. Há quem coma e faça a digestão. Há quem coma em excesso e provoque o vómito. E há ainda quem escolha passar fome e é assim que se sente bem.

Há medida que vamos explorando a relação com a comida percebemos que a relação com o próprio e com os outros também precisa de ser vista. Parece que as relações atípicas e não saudáveis com a comida são muitas vezes um espelho de relações pouco ricas em nutrientes afectivos. Há quem não se sinta amado por si e pelos outros e coma em excesso. Há também quem não se sinta amado por si e pelos outros e decida várias e várias vezes não comer. A comida e o amor (e entenda-se aqui amor não como amor romântico, mas sim como todas as relações afectivas significativas) parecem estar interligadas.

Pensemos nos rituais e na importância dos mesmos (fica a sugestão de leitura do livro “Do Desaparecimento dos Rituais” do Byung-Chul Han). Um dos rituais culturalmente partilhados é a partilha da refeição. A família, os amigos, o casal, reúnem-se para partilhar uma refeição. Mas não é só para partilhar uma refeição é também para partilhar afectos: contam-se histórias, partilham-se emoções, partilha-se a vivência dos dias. Comemos e partilhamos uns com os outros. Damos e recebemos afectivamente. Tudo isto à mesa, enquanto se come.  

Mesmo depois do bebé se tornar criança, adolescente e adulto a comida e a ingestão da mesma estão associadas a um momento de partilha com um outro ou com outros. Em adultos, quando temos relações afectivas significativas (que nos são ricas), sentimo-nos bem a comer. Quando me chega um adulto com questões alimentares, chega também frequentemente a questão do “merecer”. Se se é merecedor de receber coisas boas, afectos, elogios e amor. Para além da questão do “merecer”, surge também por vezes a questão de se “ter voz”. De ter voz para se dizer o que se sente, o que se pensa. De se ter espaço. O “merecer” e o “ter voz” são questões de relação. De estar em contacto com o outro e sentirmos que temos espaço: para dar (ou talvez dizer) e para receber (ou talvez merecer).

Voltamos ao início para finalizar: o bebé à semelhança do adulto precisa de comida e de afectos para sobreviver e para crescer. Os distúrbios/perturbações alimentares são graves, precisam de atenção e de acompanhamento profissional. Podem colocar em risco a vida da pessoa. Mas a partir de agora lembrem-se: a comida e os afectos estão interligados e a comida é tão importante quanto os afectos.

Como o António Coimbra de Matos dizia: “Existo porque fui amado”.
(Fica mais uma sugestão de leitura “Vária. Existo porque Fui Amado” de António Coimbra de Matos).

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