Fausto Neves, professor da Universidade de Aveiro: “O estudo do piano exige um esforço muito grande e longo até se obter a recompensa”
Como define um bom professor? Na sua perspetiva, que caraterísticas deve ter um bom professor?
Super-homem/mulher nas aulas, angustiado de dúvidas em casa na preparação das mesmas, sempre tendo na consciência que o seu destino urgente é o “balde do lixo”, face à autonomização plena e premente do aluno.
O que mais o fascina no ensino/na profissão docente?
Dar sem reservas. Sentir com um prazer único o crescimento do aluno, cuja trajetória por vezes se inicia e se conclui nos pontos mais afastados do arco qualitativo da aprendizagem.
Sendo eu professor de instrumento (piano), logo com aulas individuais, este sentimento é ainda mais forte, dada a relação pessoal docente-discente mantida ao longo de anos.
No meu caso de pianista é ainda fascinante a osmose entre as atividades pedagógica e artística que interagem dialeticamente com mútuos proveitos.
Como qualifica a formação que é dada aos estudantes no(s) curso(s) a que está (esteve) ligado? Como vê a evolução do ensino de Piano na UA?
A formação em piano na Universidade de Aveiro/DeCA tem vindo a crescer de nível, seja na formação de pianistas, seja na formação de professores. E um dos pontos fundamentais dessa melhoria foi a assunção sem reservas da complementaridade de ambas as formações: um professor não precisa de manter uma carreira concertística paralela, mas necessita saber tocar corretamente, conhecer o palco e os meandros da profissão de pianista. E estar sempre pronto a tocar a solo ou em música de câmara.
Hoje a Universidade de Aveiro tem um nível de entrada muito mais exigente do que há uns anos, assim como o nível das avaliações ao longo do curso.
Esta melhoria gradual de nível que se foi instalando e que promoveu alterações e adaptações das súmulas programáticas da disciplina e das avaliações foi um pouco baralhada pelo esquema de Bolonha que nos impede de fornecer em três anos a mesma formação que já estávamos a conseguir em quatro. Tivemos que fazer algum “rateio” de matérias e exigência entre o ano terminal de licenciatura e o primeiro ano de mestrado que hoje se encontra assimilado.
A já realizada consolidação da Licenciatura e dos Mestrados em Performance e em Ensino, aos quais se veio juntar a recente criação do Programa Doutoral em Música, também na vertente Performance, permitirá a gestão de um corredor vertical na escola com grandes potencialidades e que já está a atrair para Aveiro muitos músicos nacionais e estrangeiros.
Com a sua já longa experiência de pianista/concertista, e também de docente, se lhe fosse pedido um conselho dirigido aos alunos, que conselho daria?
Confirmada a paixão suprema pela Música, os meus conselhos vão para a disciplina e organização inteligente do tempo – um pianista é um dos instrumentistas que mais tempo precisa para o seu trabalho diário (4 a 6 horas) – e para a perseverança do trabalho. É que o estudo do piano exige um esforço muito grande e longo até se obter a recompensa: a obra executada satisfatoriamente, a passagem difícil dominada, a actuação pública realizada com sucesso. E como sabemos a preparação para este tipo de esforços, no instrumento e na vida, escasseia cada vez nos meios escolares e juvenis.
Que caraterísticas especiais deve ter um pianista preparado para grandes concertos e grandes espetáculos?
Embora estas características que vou citar tenham sido forçosamente trabalhadas e desenvolvidas progressivamente ao longo de uma carreira, há um aspeto de resistência física e psicológica bastante sólida que deve possuir. Para além do concerto ou da série de concertos em causa, e como se contam por poucos dedos os pianistas que vivem exclusivamente da atividade concertística, essa resistência física e psicológica também é testada na compatibilização por vezes muito difícil entre a vida concertística e a outra atividade, normalmente pedagógica.
Claro que tem que tocar bem, o melhor possível, dentro das condicionantes humanas a que todos estamos sujeitos.
Houve alguma turma/grupo de alunos/aluno que mais o tivesse marcado? Porquê?
Embora sendo professor de Piano, vim para a Universidade de Aveiro dar aulas de Música de Câmara – atividade que também exerço com frequência como pianista e que gosto de ensinar – para substituir o responsável da cadeira que partira em licença sabática. Creio que esse ano também correspondeu a uma grande mudança no paradigma programático e avaliativo da cadeira, mas o certo é que ainda hoje, 16 anos depois, lembro com saudade todos os alunos dos diferentes grupos que lecionei nesse ano, pelo seu entusiasmo e bom trabalho, e pelo repertório importante que fizeram. Muitos deles estão hoje nos palcos nacionais e europeus!
No Piano muitos alunos e momentos me marcaram, quer na Universidade, quer em outras instituições de ensino musical onde lecionei, seja em Portugal, seja na Suíça. De Aveiro recordo com prazer o progresso feito por duas alunas que no acesso tiveram, cada uma à sua maneira, dificuldades de entrada com muita gente a vaticinar poucas condições para concluírem o curso. O certo é que uma delas é hoje uma excelente pianista, trabalha já no DeCA, e tem no seu palmarés prémios em concursos. A outra é uma excelente professora com provas dadas em alunos laureados em concursos e distinguidos em masterclasses com grandes pianistas, e que executou no final da sua licenciatura e do seu mestrado obras de grande gabarito técnico como uma Balada de Chopin, uma sonata de Beethoven ou uma obra de Liszt com as exigências de “Les Jeux d’Eau de la Villa d’Este”, por exemplo…
Pode contar-nos um episódio curioso que se tenha passado em contexto de sala de aula ou com estudantes (constrangimento/situação agradável)?
Há imensos, como deve calcular, dentro do contexto de grande intimidade que se cria em aulas individuais, ou dentro do clima de adrenalina quando toda a classe se junta para realizar uma audição ou uma simples aula coletiva em que todos tocam.
Contarei dois episódios, ambos ligados ao humor que normalmente uso nas aulas e que por vezes pode ter consequências menos pensadas…
No primeiro ano que lecionei na UA – já referido atrás – um dos conjuntos camarísticos que tinha possuía quatro cantores, todos eles de grande experiência e qualidade, e dois pianistas que os acompanhavam em dueto a 4 mãos. Um deles encontrava-se no primeiro ano, pleno de possibilidades musicais, mas com uma preparação no secundário bastante defetiva. O aluno sentia-se sempre sobre alguma pressão, devido ao seu brio em fazer bem as coisas e também ao nível superior dos seus colegas. Quando eu dava algumas instruções para melhoria da execução, era sempre ele a levantar uma questão – por vezes de óbvia resposta – mesmo por vezes quando se ia retomar a performance, interrompendo o elã inicial. Fez exatamente isso quando eu dava sinal para a entrada do primeiro compasso. A pergunta – sempre bem intencionada – era mais uma vez escusada e de resposta mais que óbvia. Não me contive e imitei o maestro da série dos Marretas (“Muppet Show”), quando calava com desdém o cão-pianista da sua orquestra: “Play, dog! Play!”. A gargalhada foi geral, incluindo o visado e eu próprio. Bom momento de descontração numa aula muito intensa! Mas o certo é que a história foi contada e recontada e a frase tem hoje, passado mais de uma dezena de anos, vários seguidores para contexto similar…
O outro episódio passou-se com um aluno de piano do primeiro ano, com excelentes possibilidades, mas com graves problemas de contração/rigidez do braço durante a execução. Chamado frequentemente à atenção para esse aspeto a melhorar e para os exercícios apropriados à mobilização e descontração do braço, o aluno acabara de executar uma obra virtuosística, com acordes em grande intensidade. Ao fazer a crítica à sua performance, elogiei vários aspetos e deixei para o fim o problema do braço, cuja não superação tinha sido bem audível… Aproveitando a boa relação com o aluno, citei a História de Portugal: “Só é pena que o teu braço pareça ainda a pá da padeira de Aljubarrota, da D. Brites”. Mais explicação, menos explicação histórica – nunca conhecem as personagens da nossa História! – lá veio a promessa de rever os exercícios técnicos adequados. O pormenor esquecido é que um seu colega, que tinha aula após o aluno do braço rígido, estava presente: tinha-me pedido para assistir à aula anterior à sua. Assim, na tarde desse dia, o meu aluno era tratado pelos seus colegas por “Brites”… Pedi-lhe desculpa até a moda da “Brites” ter passado. Felizmente foi curta!
É responsável pelo parque organológico do departamento de Comunicação e Arte (DeCA) da Universidade de Aveiro. Que faz um responsável por esta área? Quer falar dos órgãos que existem na UA? E em Aveiro (Sé, por exemplo)?
O responsável pelo Parque Organológico ocupa-se dos instrumentos que são pertença do DeCA. Sobretudo tem muito trabalho a organizar as afinações e reparações dos pianos e a regulamentar (e fazer cumprir!) a respetiva utilização. Temos um excelente Steinway de concerto, outros pianos de cauda e variadíssimos pianos verticais para estudo dos alunos. Junto com os pianos tenho que me ocupar dos bancos especiais que necessitam, sua reparação e substituição. Para além dos pianos, há vários instrumentos de orquestra e não só, cuja manutenção e empréstimo são objeto de regulamentação, contratação de seguro, etc. Embora não seja da propriedade do DeCA, também estamos a estudar algumas propostas para a melhoria da conservação e utilização do magnífico Bösendorfer de concerto, existente na Reitoria.
O DeCA possui um órgão no seu auditório e um outro mais pequeno (“positivo”) numa sala de aula. Muitas vezes recorremos ao órgão da Sé para provas e recitais finais. Não sei muito mais sobre eles, os especialistas são os docentes da disciplina. Sei que, de quando a quando, o júri deve aguardar em plena prova que o aluno e o professor resolvam um problema técnico que prende uma tecla, prolongando ad aeternum uma determinada nota… Calada a persistente nota, lá retomamos o exame.
As revisões e arranjos são sempre sugeridas pelos professores.
Que concerto gostaria de fazer e que nunca teve oportunidade de fazer?
?!?… Difícil resposta! Já toquei a solo, com orquestra, em variadíssimas formações instrumentais, em projetos educativos, dirijo regularmente um coro…
Talvez o género “Teatro Musical” que tem múltiplas obras de compositores do século XX e XXI. Já aflorei o género com um quarteto de dois pianos e percussão. Mas gostava de ir mais longe…
Impressão Digital
Traço principal do seu carácter
Ser um “chato” com humor.
Ocupação preferida nos tempos livres
Leitura, vela, convívio (raro!) com os filhos e netos
O que não dispensa no dia-a-dia
Escassas, mas intensas horas de sono.
O desejo que ainda está por realizar
Concluir finalmente o meu percurso de “precário” aos 62 anos…
Esta entrevista foi publicada originalmente no Jornal Online da Univerdade de Aveiro, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.