Federico Fellini no país das maravilhas

por Rui Alves de Sousa,    3 Setembro, 2020
Federico Fellini no país das maravilhas
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Numa longa entrevista concedida ao crítico de cinema Giovanni Grazzini, Federico Fellini faz uma confissão: “Dia após dia, fui esquecendo o hábito de ir ao cinema. Não sei encontrar explicação para esta renúncia. De resto, mesmo em rapaz não era um frequentador de salas de cinema. Ficava encantado diante dos cartazes de filmes, das grandes fotografias que, nas lojas do Corso, anunciavam a próxima exibição; se calhar, gostava de imaginar o rito fascinante que devia decorrer no interior do cinema, mais do que gozá-lo pessoalmente”.

A longa conversa, que se prolonga por pouco mais de cento e trinta páginas, faz a totalidade do livro “Fellini por Fellini”, publicado em Portugal pela D. Quixote no longínquo ano de 1985. Estou a lê-lo por estes dias, no ano do centenário do maestro do cinema italiano, que tem seis filmes a regressarem a várias salas do país – e em breve a Cinemateca dedicar-lhe-á uma retrospectiva integral. Uma boa razão para pegar na afirmação do realizador e, com ela, olhar para os seus filmes, numa época em que o “rito fascinante” do cinema está sempre em risco de desaparecer. Ficam as fitas? Sim senhor. Mas é óbvia a diferença de ver algo como “A Doce Vida” num ecrã que se abre de par em par, e que nos revela a vida romana em todas as suas cínicas e devastadoras miudezas.

As perguntas de Grazzini suscitam respostas longas de Fellini, polvilhadas com muitos devaneios e inquietações. É um prazer estar a ler esta conversa, e acredito que também o seja mesmo para quem não aprecie, ou conheça, a sua filmografia. Federico era um óptimo conversador, sem tiques de pretensiosismo, que falava sobre tudo e nada com graça e profundidade, não se preocupando em cair em filosofices sobre isto da vida, e discutindo com o mesmo à-vontade o senhor Rossellini como os actores cómicos (que considera “benfeitores da humanidade”) e os filmes de 007. A paixão pelo cinema revela-se numa paixão pela vida nas suas coisas pequenas e gigantes, e ao longo do livro percebemos como o percurso de Fellini ficou tão, mas tão entrelaçado com a sua obra, que se tornou difícil para ele distinguir as verdadeiras recordações daquelas que criou para o seu mundo de celulóide e faz-de-conta.

Mas antes que comece eu também a fugir numa torrente de devaneios, dizia que se Fellini preferia, na infância, o ritual do cinema ao que se projectava no ecrã, os seus filmes merecem sempre ser (re)vistos no melhor ecrã possível. E o sexteto que tem estreado nas últimas semanas é uma selecção curiosa, e não totalmente óbvia: temos os chamados “clássicos dos clássicos”, aqueles que entraram num cânone tão canónico que parece pecado não gostar (“A Estrada”, “A Doce Vida” e “8 ½”), e alguns outros mais renegados, um por ser mais formal e menos felliniano (“Os Inúteis”), e os outros dois por desde sempre dividirem acerrimamente as opiniões, quase como se de uma questão clubística se tratasse: “Julieta dos Espíritos” e “A Voz da Lua”, canto de cisne do cineasta.

Confesso que, dos seis filmes, só não consigo gostar desse último. Não me entra no goto, mesmo que encontre algumas ideias que parecem prenunciar alguma coisa de magnífico, mas que nunca se concretiza. Percebo o porquê de tanta gente não gostar do filme, mas tem também os seus fãs. Não é que isto queira dizer que a minha opinião se altere numa revisita, já que qualquer filme alguma vez feito recebe o amor involuntário de algum espectador. Deverá haver, pelo menos, uma pessoa no planeta que considere o “Beethoven IV” a maior obra-prima da História da Humanidade. Mas é o lembrete que importa, mais do que tudo, se um filme provoca uma ligação e um afecto com quem decidiu vê-lo.

Por isso mencionei há pouco os cânones. Fellini é hoje definido como um dos maiores realizadores da sétima arte. Aqueles três filmes mais conhecidos, com o tempo, ultrapassaram a simples barreira do gosto: pela reverência a que críticos e realizadores lhes prestaram ao longo das décadas, atingiram um estatuto que parece inquebrável e indiscutível. Ninguém gosta de consensos, e só da discussão é que se nasce a luz (excepto para os fanáticos de Christopher Nolan). Contra mim falo, porque gosto muito desses títulos, e acredito que são mesmo mais interessantes por si só do que por todo o prestígio académico que os rodeia. Mas recuemos à época em que “8 ½” se estreou por cá.

No 12.º número da revista “O Tempo e o Modo”, António-Pedro Vasconcelos tece alguns comentários bastante depreciativos sobre esse filme e Fellini. Diz que o cineasta “foi conquistado pelo capital e pelo sucesso, e parece empenhado em provar, já que a sinceridade pode ser um bom negócio, que ‘o homem é bom por natureza, é a Cinecità [sic] que o corrompe’“. Considera o filme “exibicionista” e cheio de “truques“, “puerilidades” e “falsas audácias“. Em suma, “um vistoso cocktail de êxito comercial assegurado pelos Festivais e pelo público que é, como se sabe, mais ou menos ‘turista’“. Mais dois colaboradores da revista concordam com ele na mesma página, sendo um deles João Bénard da Costa.

Trago este resquício da escrita de cinema do passado porque sinto que, independentemente de se gostar ou não de um filme, ele não deixa de ser isso mesmo quando é colocado em todas as listas dos melhores de sempre. Talvez a primeira coisa que vos passe pela cabeça é: “como é que António-Pedro Vasconcelos era um crítico tão exigente, tendo em conta os filmes que andou a fazer nas décadas seguintes?”, mas esqueçam o contexto. É porque os cânones, se existem, por um lado, para servirem como uma espécie de guia, ou uma primeira entrada para o vastíssimo mundo de uma arte, têm também este lado pernicioso: quase se é obrigado a gostar de um filme só porque a maior parte das pessoas o considera uma obra-prima. Outra coisa muito irritante: achar-se que a obra de um realizador só pode ser boa se seguir o estilo que a ele associamos. Como se “Os Inúteis” fosse menos bom por não ser tão felliniano, ou como se Buñuel só tivesse sido genial nos seus filmes surrealistas.

Com estas reposições em sala, acabei por reencontrar “A Doce Vida” e “8 ½”. Só os tinha visto uma vez e ambos me deixaram uma impressão invulgar – nem antes, nem depois, voltei a ver algo assim. E a revisão só melhorou a minha relação com ambos os filmes: o primeiro é um épico que desce às profundezas da futilidade de um estilo de vida sem salvação possível, em que o protagonista é o próprio espectador da sua incontornável decadência. O segundo é um turbilhão de recordações boas e menos boas que revela o que a realidade fez a um homem que se tornou cineasta e que se sente incapaz de voltar a filmar. São dois filmes muito distintos, feitos um a seguir ao outro, e transmitem sensações próprias, que são melhor apreciadas numa sala de cinema, longe dos múltiplos estímulos da vida caseira.

Mas talvez seja mais interessante discutir sobre eles com alguém que os deteste do que com um fã incondicional que só diga que são óptimos sem querer justificar nada. Daí que, repito, os cânones são importantes, mas podem ser quebrados. Só assim é que a discussão cinéfila é saudável e acutilante.

E depois aproveitei para ver o único dos seis filmes que ainda não tinha visto: “Julieta dos Espíritos”, um delírio sobre culpa e infidelidade num esplendoroso technicolor. Eu, que vejo coisas onde elas não existem, pressinto que Giulietta Masina faz um pouco de si própria, e a sua personagem é a visão que Fellini tinha dela perante a sua relação instável. E já “8 ½”, no confronto entre Guido e a sua esposa, parece similar: entre tantas mulheres que fazem parte da sua vida, aquele é um amor que, no fim, até resiste às traições. Por qualquer razão maior do que eles, nunca tem um desfecho. Mas não interessa isso, este aspecto quase fofoqueiro, perante um filme com tanta coisa para ver e saborear.

Tal como os Fellinis fellinianos, este tem o seu quê de inclassificável e enigmático. Admito que ao início me senti um pouco distante do filme e do meio burguês que nos dá a conhecer, semelhante ao que revisitara nos outros dois clássicos, mas aos poucos fui conquistado pelas recordações da protagonista que tanto reflectem a vivência do realizador: a relação com o pecado, o catolicismo e as regras impostas por uma sociedade fechada em si própria e na “vergonha” das suas impurezas. Fez-me recordar outro momento do livro: “Durante anos e anos tínhamos sido educados pela Igreja e pelo fascismo no mito da romanidade, do crucifixo, do calvário, da vida que não vale nada”.

É uma viagem que também está cheia de imagens fortes, que deixam uma impressão inabalável, nem que seja pela composição dos planos. E percebo tudo o que Vasconcelos aponta de errado em Fellini, mas é também isso que, nos seus melhores momentos, lhe dá mais graça. Sei que, por exemplo, a sequência com a memória da meninice da protagonista numa peça de teatro da escola, onde se simula a sua “queima”, vai permanecer no meu pensamento, mesmo que eu não quisesse. E é bom descobrir estes filmes no ambiente da escuridão mágica porque estamos encurralados. Temos de ser engolidos pelo sufoco das recordações, dos traumas e do desejo de Julieta de apanhar o marido em flagrante traição. Não podemos sair dali, e ainda bem.

De “8 ½” para a frente, Fellini abandona progressivamente a planificação clássica para mergulhar de cabeça no seu mundo e no seu inconsciente. Com melhores ou piores resultados, arquitectou objectos de cinema sumptuosos, usando o lendário estúdio 5 da Cinecittà para satisfazer os seus maiores desejos criativos, o circo das suas memórias e as suas mirabolantes personagens. Não sei se tiveram a oportunidade de passar por Roma e por essa pequena meca dos sonhos do cinema, mas aconselho a visita: é arrepiante ver aquele espaço vazio onde couberam tantos sonhos de um cineasta maior que a vida. Com ou sem cânones – e é engraçado falar neles porque, como Fellini vai contando no livro, nos seus primeiros anos fartou-se de ser enxovalhado pelas mesmas facções que criam esses cânones e que, muitas vezes, castram o património cultural.

Com isto tudo acabei por também fazer um enorme devaneio onde não disse nada de jeito. Falei da pressão à volta das proclamadas “grandes obras de arte”, mas só teci louvores aos filmes do costume e ao realizador que toda a gente já sabe que é bom. Mas descubram Fellini pelas vossas próprias mãos. Se gostarem, é convosco. Se não, tomamos um café e falamos melhor sobre isso.

Todos os números da revista “O Tempo e o Modo” estão disponíveis para leitura online aqui. Já o texto mencionado de António-Pedro Vasconcelos pode ser consultado aqui.

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