Fernando Mamede: a história de um falhanço e de uma grande vitória
Ainda não completara os 13 anos, mas a minha mãe deixou-me entrar pela madrugada desses princípios de Agosto – eu e o país na expetativa de poder assistir à vitória do primeiro português nuns Jogos Olímpicos.
Lembras-te?
Fernando Mamede falhara todas as provas importantes até aí e, apesar dos caldos de galinha, Portugal estava otimista – o homem parecia imbatível e mais forte do que nunca. Vencera todas as provas nesse ano, batera por muitos segundos o recorde mundial e na meia-final dos Jogos, tronco direito e quase provocador, pulverizou a concorrência e deixou-nos em pulgas. Já o sabemos: não há como os portugueses para contarem com o ovo antes de a galinha o pôr. Infelizmente, não fujo à regra. E por isso, de frente para a televisão, abri os olhos, cantei vitória e gastei o nome de Mamede em toda a casa e por entre os amigos da Rua Correia Teles, num Campo de Ourique entre as luzes da classe média alta da Ferreira Borges e as sombras de um Casal Ventoso ainda não totalmente mergulhado no tráfico de droga.
Não me lembro disto pelo adiamento dos Jogos de Tóquio ou por uma qualquer efeméride – a passar por papéis recordei um almoço com o Comandante Vicente de Moura onde fiquei colado à cadeira a ouvir as suas histórias e a um tempo onde me comecei a fascinar mais pelos vencidos do que pelos vencedores, mais pelo que fica no silêncio do que no burburinho dos vitoriosos. Percebi-o ao ver Mamede dar uma volta à pista na final tão esperada de 10 mil metros, uma volta à pista, 400 e poucos metros feitos e a fuga desesperada em direção a uma saída por uma porta à direita da linha de meta. Na verdade, não sei se foi ao fim da primeira ou da quarta volta, é o que sinto ter acontecido… todos em casa à espera, os vizinhos a postos e armados de tachos e panelas, como em todos os fins de ano, e Mamede com um ar transtornado a fugir dali para fora por uma porta qualquer. O silêncio nessa madrugada chegou antes de adormecer.
Contei isto de mim a Vicente de Moura. Perguntei-lhe, quis saber da derrota de Mamede e da estrondosa vitória de Carlos Lopes – a glória e o fracasso como metáfora do que somos cada um e todos em conjunto. Conto-lhe umas coisas sobre o assunto. Primeiro Mamede. Ele vira-o a limpar a eliminatória. Imperial e confiante. O treinador Moniz Pereira saiu da pista de sorriso, mas como São Tomé pediu prudência.
Dois ou três dias depois chegara a grande final… o chefe da delegação almoçou com o treinador no refeitório da aldeia olímpica e fez-lhe as perguntas que qualquer um faria naquelas circunstâncias – como está e não está, esse tipo de coisas. A conversa interrompeu-se na chegada de Mamede; viram-no sentar-se numa mesa no canto mais afastado do refeitório. Sozinho, metido consigo e com a cara tão branca como a toalha, assim o lembram… Chegaram-lhe rumores de que nenhum português se iria deitar naquela madrugada e tudo aquilo, somado a outras preocupações menos evidentes, provocou-lhe decerto uma desmedida ansiedade. Vicente de Moura, ainda com menos de 50 anos mas muita experiência da pressão e dos homens, ficou com um nó no estômago, a coisa talvez não corresse bem.
Nesse final de tarde em Los Angeles, madrugada de esperanças em Portugal, aguardou como todos nós pela corrida. Mamede estava alheado e tão transparente como o observara horas antes. Uma volta ou um pouco mais e, menos de um quilómetro após a partida, sprintou para a porta de saída. Vicente correu também e foi o segundo a lá chegar, logo após Moniz Pereira. Viu Fernando Mamede sentado e a soluçar como uma criança, não tinha explicação para nada, desejava apenas ficar sozinho. O comandante, e depois vários anos presidente do Comité Olímpico, tentou o possível, disse-lhe que outras oportunidades acabariam por surgir. Mas, no fundo, os que ali estavam sabiam que não haveria mais comboios a passar ou oportunidades. Vicente defendeu que Mamede deveria regressar a Lisboa com toda a delegação, única maneira de ficar protegido da selva e dos ajustes de contas dos que esperavam alegrias e não mais tristezas. Cumpriu-se a sua vontade e ainda pôde assistir, talvez para mal dos seus pecados, à grande vitória de Carlos Lopes, o rival da sua vida.
Pois, Carlos Lopes. O oposto de Mamede. Quando os nutricionistas começaram a estar na moda afirmava que não se podia complicar o que simples era: se tinha fome comia um bacalhau cozido e bebia um copo de vinho, depois logo se via. Naqueles Jogos Olímpicos chegou mais tarde do que os outros atletas portugueses, a sua prova era a última e a humidade e calor de LA não o favoreciam.
Entretanto Vicente recebera a notícia de que Lopes fora atropelado na segunda circular, onde treinava todas as manhãs. Verdadeiro pânico na delegação e todos em suspenso de notícias. Que chegam e são, apesar de tudo, animadoras. No entanto, era necessário esperar. E foi aquilo que o chefe de delegação fez. Esperou-o no aeroporto a uma semana da grande prova. Pediu-lhe a mala e perguntou-lhe como estava, como se sentia e se tinha dores. Lopes, tranquilo e fresco como se tivesse acabado de fazer uma viagem de metro de quinze minutos, respondeu a tudo com um «vou ganhar a medalha, estou ótimo». E ganhou a de ouro. Com o melhor tempo de sempre até então.
A história de um falhanço e de uma grande vitória.
Uma derrota trágica a de Mamede. Porque nunca pôde remediar esse dia, nunca teve a possibilidade de se reerguer. Não o pôde fazer. E teve de viver com isso. É normal que chore sempre que alguém o recorda daquela madrugada.
Mas Fernando, se este texto te chegar, acredita que valeu a pena. Porque nem sempre a soma das derrotas é uma derrota no final.