Fernando Tordo com Rita Redshoes e Paulo de Carvalho acompanhados por 252 músicos em palco, em Santa Maria da Feira

por Ana Monteiro Fernandes,    22 Janeiro, 2024
Fernando Tordo com Rita Redshoes e Paulo de Carvalho acompanhados por 252 músicos em palco, em Santa Maria da Feira
Fotografia de Rui André Soares / CCA

São quatro as bandas filarmónicas locais, dirigidas por quatro maestros que, simultaneamente, vão orquestrar o concerto que o compositor do tema “Tourada” vai dar na cidade feirense, dia 27 de Janeiro, no âmbito da “Festa das Fogaceiras”, tendo ainda como artistas convidados a autora do tema “Mulher” e “Captain of my Soul” e, ainda, o intérprete de “E depois do Adeus”, a canção que serviu de senha para se dar início à revolução dos cravos.

Fotografia de Rui André Soares / CCA

Portugal celebrou, já, em 2023, um ano a mais em democracia do que em ditadura, caso se tenha em conta o início do regime militar, em 28 de Maio de 1926. As celebrações do 25 de Abril deste ano completam o seu meio século de vida, precisamente 50 anos, e o concerto que Fernando Tordo vai dar em Santa Maria da Feira, a 27 de Janeiro, junta, precisamente, às quatro bandas filarmónicas locais em palco, Paulo de Carvalho, o intérprete de “E Depois do Adeus”. Foi essa a canção que serviu de senha para abrir as portas à revolução dos cravos e que, nesse ano, ganhou o Festival da Canção podendo, dessa forma, dar-se a conhecer ao resto da Europa, a 6 de Abril de 1974, na Eurovisão. Rita Redshoes, artista também convidada, pertence a uma outra geração — nasceu já depois de 1974, o ano que trouxe a democracia a Portugal — mas Fernando Tordo não deixa de enfatizar à Comunidade Cultura e Arte (CCA) o lado “extremamente musical” da artista, “com obra feita, com um profissionalismo muito grande“, revela. Acrescentando que é “uma pessoa com prestígio, com muita qualidade, e isso é fundamental“, completa.

Ao se relembrar temas como “Mulher”, “Captain of my soul” e, até, a sua versão do tema “These boots are made for walking”, de Nancy Sinatra, que na voz de Rita Redshoes ficou “These shoes are made for walking”, a temática do feminino e o que significa, afinal, ser mulher são uma constante na suas composições. “Porque sou mulher”, afirmou a artista à CCA, “e, portanto, sofro na pele as vicissitudes de ser mulher, e acho que, também, é uma questão pertinente para a liberdade e para os dias que correm. Estamos a festejar o 25 de Abril, mas no que diz respeito à questão da liberdade em relação à mulher, e igualdade de oportunidades, nesse sentido, ainda há muito trabalho a fazer. Para se fazer algum trabalho é preciso liberdade: liberdade de pensamento, de escolha, de autonomia. Infelizmente, ainda não há esse espaço totalmente aberto, ainda há dúvidas sobre a liberdade que as mulheres podem ter em alguns contextos, portanto, isso tem de ser alterado“, revelou.

Fotografia de Rui André Soares / CCA

Corria o ano de 1973, ainda Marcelo Caetano se encontrava no poder, quando Fernando Tordo cantava, em pleno Festival da Canção desse ano, “Não importa sol ou sombra/Camarotes ou barreiras/Toureamos ombro a ombro as feras/ Ninguém nos leva ao engano/ Toureamos mano a mano/ Só nos podem causar dano esperas.” Mais: “Entram empresários moralistas/Entram frustrações/Entram antiquários e fadistas/ E contradições/ E entra muito dólar, muita gente/Que dá lucro aos milhões.”

Com composição sua e letra de Ary dos Santos, numa clara alusão ao regime ditatorial utilizando a tourada como metáfora, a dúvida manifestava-se. Como foi possível a letra ter passado pelo então “exame prévio”, ou seja, o lápis azul da censura, letra essa que fazia, até, uma alusão clara à “primavera marcelista”?

Fernando Tordo não deixou de relembrar como aconteceu: “estávamos a concorrer ao Festival da Canção, em 1973, e as canções enviam-se no final do ano anterior. Em 1972, portanto, fiz quatro músicas e o Ary dos Santos escreveu os textos para as quatro canções. Quando chegámos ao caso da Tourada, houve ali um certo atrevimento, porque estávamos mesmo a ver que, em princípio, a canção não ia ser apurada“, esclareceu. Mas confessa que não pensaram na probabilidade das pessoas não perceberem “à primeira do que é que se tratava“, continuou.

Fotografia de Rui André Soares / CCA

E acrescentou: “Isso acho que foi muito bem feito da nossa parte, arriscámos e dissemos assim, ‘vamos enviar a canção juntamente com estas três, e vamos ser prejudicados porque eles vão descobrir quem fez as canções. Antes do 25 de Abril não se mandava os nomes, não se podia cantar, a melodia tinha de ser tocada por um instrumento qualquer, num exercício completamente democrático — para não se saber quem eram os cantores e os compositores: essas indicações iam num envelope lacrado. A gente enviou as canções e qual não foi a nossa surpresa, 15 dias ou três semanas depois, quando saem os resultados e a Tourada foi apurada. A gente não queria acreditar. Não estava nada à espera de ganhar o festival porque cantei duas canções, portanto, dividia votos. É uma experiência tão surpreendente quanto esta, como é que a gente em 1973, dia 26 de Fevereiro, vai-se cantar uma canção daquelas para 6 milhões de portugueses, porque só havia uma estação de televisão. Seis milhões de portugueses que levaram com aquilo na cabeça. Às vezes há empresários que me dizem assim, se você não cantar a Tourada, a gente não lhe paga. E eu digo, ‘está bem, eu canto a Tourada’, e até agora tenho sido sempre pago“, revelou em forma de brincadeira à CCA.

Quando questionado se a liberdade, o conceito de liberdade, é algo que tem de ser construído diariamente, Fernando Tordo deixou claro: “a liberdade constrói-se e, outra coisa muito importante, respeita-se. Constrói-se e respeita-se. Não se pode desconstuir, não pode ser mal tratada, porque a liberdade é a mãe da democracia, não é ao contrário. Não é a democracia que é a mãe da liberdade, a liberdade é que é a mãe da democracia, portanto, defendendo e respeitando a liberdade, temos melhor democracia porque, se não, fala-se muito em democracia e, às vezes, a gente pergunta onde ela está. Para ser melhor, portanto, tem de ser resultante do reforço puramente sistemático e do respeito da liberdade“, reforçou Fernando Tordo.

Dia 27 de Janeiro vão estar, então, um total de 252 músicos em palco, que compõem as quatro bandas filarmónicas locais, a acompanhar o artista, em conjunto com Rita Redshoes e Paulo de Carvalho. Mais concretamente, são as bandas filarmónicas de Arrifana, Lobão, Souto e Vale.

Fotografia de Rui André Soares / CCA

Gil Ferreira, vereador da cultura de Santa Maria da Feira, revelou à CCA de que se trata de “um grande desafio. São, exactamente, 252 músicos e quatro maestros, que são oriundos de 4 pontos distintos do concelho de Santa Maria da Feira. São quatro bandas bicentenárias, entre elas das bandas filarmónicas mais antigas da Europa. Trata-se de um património e é um conceito de um espectáculo colaborativo de co-crianção, de criação e residência que estamos a levar a palco há nove anos a esta parte. Este é o nono ano em que apresentamos este ‘Filarmonia com…’, e que, em 2024 é, inteiramente, consagrado à programação evocativa do 25 de Abril“, lembra.

E continua, referindo que é “sempre um momento de grande entusiasmo para as gerações feirenses, de jovens músicos mas, também, músicos de outras gerações, uma vez que há uma variedade de gerações das bandas filarmónicas. Temos jovens dos 9 aos 80, que combinam múltiplas gerações, e que se encontram, não obstante serem de quatro bandas filarmónicas distintas, num corpo único“, enfatizou.

Gil Ferreira concluiu que este concerto “tem o peso do arranque de toda a programação de Santa Maria da Feira, em todas as áreas, que se vai centrar em torno da valorização dos 50 anos do 25 de Abril“, enfatiza.

Mas como é partilhar o palco com uma filarmonia de 252 músicos? Rita Redshoes explicou que nunca tinha estado “com tantos músicos em palco juntos, quatro filarmónicas é obra“, explicou. E riu, salientando que “quem pensou nisto pensou em grande e é um optimista e um corajoso. A logística de coordenar isto, felizmente, não é minha, é dos maestros e só vou lá e colaboro. Mas acho uma ideia muito curiosa e é uma coisa inédita. Acho que para todos que vamos estar em palco não é comum, não é hábito, em palco, termos tanta gente, tantos músicos juntos“, explicou.

Fotografia de Rui André Soares / CCA

Não deixou de partilhar a seguinte curiosidade: “Vinha a comentar que, de facto, nunca tinha apanhado trânsito para um ensaio e o trânsito ser dos próprios músicos. O Fernando [Tordo] pensou a mesma coisa. Já por aí é inédito“, comentou.

Sobre a experiência de partilhar o palco com Fernando Tordo e Paulo de Carvalho, Rita Redshoes disse à CCA que “é uma honra, obviamente, estar a cantar com estes dois gigantes da música, e importantes na história da música portuguesa. Já tive o convite do Fernando [Tordo], que achei que nem sabia que eu existia, mas já tive alguns convites e não será a primeira vez que vou cantar com ele, felizmente. Já partilhei o palco com ele algumas vezes. Com o Paulo de Carvalho não, vai ser assim a estreia. Mas, para mim, é sempre comovente perceber que, de alguma forma — sobretudo o Fernando, que é com quem eu tenho uma ligação — acham que pertenço também aqui, que posso estar no mesmo palco do que eles, numa celebração da liberdade, liberdade de escolha e de palavra. Honra-me muito, portanto. Sou de uma geração mais nova, não passei o que eles passaram: ouço, ouvi falar. Sinto, de certa forma, uma responsabilidade acrescida nesse sentido“, confidenciou.

Fernando Tordo relembrou que a noção de orquestra, para si, não é estranha, mas que esta filarmonia não deixa de ser inédita e que é necessária “muita disciplina, rigor, atenção e concentração“. Exclamou que é algo fantástico, “que até pode vir no Guinness, para o ano, porque houve um ensaio com quatro orquestras e não se ouviu um telemóvel tocar“, disse.

Continuou que “é uma experiência única. Ainda há pouco fiz uma referência aos músicos, antes do ensaio, e disse-lhes que era um caso excepcional, não sei em quantos países do mundo isto pode ter acontecido, estarem quatro bandas a acompanhar o cantor e, para mim, que estou habituado desde miúdo, desde pequeno — as minhas primeiras gravações eram com orquestra e, portanto, entendo muito bem a linguagem da orquestra e sinto-me muito bem — mas este caso extravasa o que é normal. É muita gente e, além disso, é muita gente que está muito entrosada“, afirmou.

Fotografia de Rui André Soares / CCA

O músico relembrou, ainda, a importância e singularidade da orquestra a nível social: “É a única situação em que se pode ter 40, 50, 100, 200 pessoas que até podem nem se conhecer, algumas, eventualmente, até podem nem se gostar, até podem nem se falar, mas o resultado é positivo, de harmonia. É a única situação social, criada pelo homem, em que todos, independentemente de tudo o resto, todos, constroem uma harmonia“, enfatizou.

E concluiu: “Esse é um fenómeno que no plano social é impressionante. Pessoas que, de certeza, que não se conhecem, tocam na mesma orquestra, pouco ou nada se dão e, no entanto, no sentido da música tem uma importância muito elevada, muito para lá do que podemos pensar, e esta experiência que estou a ter aqui, ao fim de 60 anos de profissão, posso dizer que é uma experiência única“. E revela, “nunca me tinha acontecido, portanto, guardo isto. Ainda há pouco solicitei aos músicos: ‘vocês, que são jovens, gravem e fotografem isto porque é um acontecimento único. Daqui a muitos anos, vocês, aos vossos filhos, aos vossos netos, vão mostrar uma coisa única que aconteceu no vosso país, são testemunhas directas, participantes directos“, exclamou.

Falar de Fernando Tordo é, também, falar de Ary dos Santos e de Carlos do Carmo. Dois artistas que não estão presentes, mas que são indissociáveis do artista. Ary dos Santos pelas suas letras e, Carlos do Carmo, pelas composições que Fernando Tordo também lhe escreveu.

Sobre Ary dos Santos e a importância de o recordar, principalmente quando já passam 50 anos do 25 de Abril, o artista e músico revela que trabalhou “muito intensamente com o Ary dos Santos e, portanto, o Ary dos Santos é o poeta português que mais trabalhou em termos de quantidade e qualidade, para a canção em geral. O Ary dos Santos é uma figura insubstituível, ainda não apareceu outro e, provavelmente, não irá aparecer tão cedo”. Foi o que Fernando Tordo revelou, após confidenciar que tem havido uma degradação no tratamento da língua e uma degradação na escrita da canção: “Fico muito surpreendido como é que tanta gente não é estimulada para ir saber, para ir a uma biblioteca ler. Só se lê, lendo, só se escreve, escrevendo, só se canta, cantando“. E lembra: “O segredo de um grande músico é muito simples, é ouvir música“, concluiu.

Fotografia de Rui André Soares / CCA

Quanto a Carlos do Carmo e o que significou, enfatizou que tanto o próprio Fernando Tordo como o Paulo de Carvalho, “enquanto compositores, fizemos muita, muita música para o Carlos do Carmo. Temos, portanto, uma quota parte muito importante no que o Carlos do Carmo foi, no grande intérprete que era, no grande cantor. Fizemos um papel que nos honra, porque abastecemos o Carlos do Carmo do melhor que sabíamos fazer. Muitas vezes com textos do Ary dos Santos, outras vezes não mas, normalmente, com textos do Ary dos Santos. Foi, portanto, uma colaboração, uma amizade muito partilhada, muito cúmplice. Falar, portanto, do Carlos do Carmo, nesta situação, nesta circunstância, também é importante“, revelou.

Mas como é que se pode passar a mensagem do 25 de Abril aos jovens, uma vez que, em palco, vão estar músicos de várias gerações? Fernando Tordo apelou que “convém não massacrar os jovens com histórias que eles não viram, não assistiram. Eles suportam mal isso“, revelou. Mas enfatizou que há absoluta necessidade de se dizer o que é que se celebra: “É importante que os mais velhos, nós, testemunhemos também alguma coisa do que é que fizemos“, sugeriu. E concluiu: “Os meus filhos sabem que estava completamente no activo, eu tinha 27 anos no 25 de Abril e, portanto, ouvem-me com atenção. Mas tem de se dizer que não é por causa da política nem dos partidos, é por causa da liberdade que não havia. Quando digo aos jovens assim, ‘a gente saía do cinema S. Jorge, em Lisboa, puxava um cigarrito, porque a gente gostava de fumar, e vinha um gajo qualquer da polícia levar-nos para a esquadra“, recordou.

Sabe porquê? Por causa do isqueiro, não se podia ter isqueiro. Um tipo vem a sair do cinema, puxa de um cigarro, e vem um tipo e diz, ‘a licença de isqueiro’. Isto é uma coisa de malucos. A gente conta isto em qualquer parte do mundo e as pessoas não acreditam“, referiu.

O concerto “Filarmonia com Fernando Tordo, que junta quatro bandas filarmónicas e tem, como artistas convidados, Rita Redshoes e Paulo de Carvalho acontece, então, dia 27 de Janeiro, no Grande Auditório Europarque, enquadrado na Festa das Foguaceiras e na programação de celebração dos 50 anos do 25 de Abril, de Santa Maria da Feira.

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