Festa de aniversário
Num destes sábados, por casualidade familiar alheia à vontade de aproveitar cada centímetro quadrado do sofá, dei por mim na festa de aniversário de uma criança. Estive em várias durante a minha vida, protagonizei algumas. Mas as do meu tempo eram ligeiramente diferentes.
Só para nos situarmos: falo na comemoração do dia de anos de um miúdo com meia dúzia deles, em 2022. Eis um admirável mundo novo para mim, e eu conheci a Eurodisney nos anos 90.
Pois bem, o local era uma loja no rés do chão de um prédio, a todo o seu comprimento e largura. No interior, um extraordinário manancial de engenhos recreativos e decorações coloridas preenchiam cada canto. Nenhum espaço fora deixado ao acaso.
Quando cheguei já a festa estava animada. Logo à entrada havia uma área de refeições com duas mesas repletas de rissóis, bolachas, gomas, sumos, etc. Aproveitei para meter duas sandes de pão de leite no bolso — hoje em dia apenas se encontram neste tipo de eventos e já sei que a garotada as limpa assim que acaba a brincadeira. (Ora aí está um ditado que me ensinaram quando tinha mais ou menos a idade desta juventude: “safa-te”).
Uma divisória com desenhos animados que desconheço separava a zona de refeições do espaço onde a magia acontecia. Se a magia é feita de putos a correr, a chorar e à batatada, e progenitores à sua volta feitos insetos internados em ala psiquiátrica (eufemismo de trazer por casa para não usar a expressão mais popular “baratas tontas” que, hoje em dia, poderia ser considerada ofensiva para um número considerável de entidades: os pais, os bichos, os malucos, respetivos descendentes e ascendentes, familiares e/ou conhecidos).
Umas cinco mesas de maquilhagem com espelhos luminosos em formato de cauda de sereia (ou robalo) preenchiam o lado esquerdo do recinto, junto à parede e, ao centro, crianças vestidas de princesa desfilavam numa passerelle cor-de-rosa. As mães, orgulhosas, não se cansavam de oferecer amadoras dicas ao profissional fotógrafo contratado para o efeito.
Junto ao desfile, um enorme televisor passava vídeos com músicas infantis em repetição, cujas letras em breve saberia de cor, mesmo não fazendo nada por isso. E, ao fundo da sala, encontravam-se alguns equipamentos de diversão que decidi observar mais de perto.
Era grande o rebuliço junto a um escorrega que os miúdos faziam questão de subir por onde se deve descer. Ainda ouvi um ou outro adulto recomendando o uso das escadas, mas como as crianças não lhes deram ouvidos e não fossem eventualmente explodir caso tivessem de lidar com alguma contrariedade aos seus desejos, os paizinhos protegiam a subida colocando os braços ao redor dos meninos, enquanto outros seguravam uma almofada de modo a amparar a queda quando desciam.
No trampolim, um dos miúdos aproveitava a momentânea distração dos adultos para driblar a cabecita de outro, que ia e vinha à cadência do colchão elástico e ao ritmo da vontade do primeiro. Só eu presenciava este bullying mas optei por não influenciar o rumo da história (aconselharam-me a isso, certa vez, num safári fotográfico no Kruger). Além disso, o mundo precisa de pessoas com infâncias difíceis, ou não haverá quem faça música de jeito daqui por 15 anos.
De qualquer forma, o bully acabou por levar que contar, uma vez que aqui este Michael Knight de justiceira canhota desferiu-lhe 3 boladas nas fuças quando esteve, um pouco mais tarde, a jogar à bola com a garotada — havia um pequeno campo de futebol, alcatifado, com balizas e tudo.
(Estimado leitor, é hora de apelar à sua calma:
Ponto 1: a bola era feita de esponja, para não magoar os meninos (vi até um cão carente a desprezá-la).
Ponto 2: os livres diretos à carinha da criança não foram propositados — derivam daquilo que o grego Triantafyllos Machairidis denominou um dia, ao encontrar sua imagem numa superfície espelhada, como “falta de jeito”; lamentavelmente a minha visão tem uma difícil relação com os meus pés; raras são vezes que o pé envia a bola para o local que a vista previu. Jogadores há que viram a cara na hora de passar a bola, tentando enganar o adversário; eu rodo o pé na hora de rematar, com a espontaneidade de um Chalana mas a intenção de um Binya, contudo aqui o enganado sou eu, adversário de mim próprio, que Eusébio me ajude.
Ponto 3: não sou insensível; tive o cuidado de motivar a criança gritando “Boa defesa, campeão!” (sempre que o pequeno futuro Putin wannabe defendia com o nariz cada um destes mísseis).
Do futebol passei aos matraquilhos, com o pequeno Tomás e um senhor idoso.
— Tu jogas à frente, avô — disse o petiz — e tu contra nós — apontando para mim.
Mas quem é tu pensas que és, Tomás? Podes mandar no sénior mas não em mim, estás a perceber? Pensei, mas não disse. Aceitei. Estava entediadíssimo. Mandar boladas seguidas à cara daquele terroristazinho, parecendo que não, pode aborrecer. Venham de lá esses matrecos.
O meu pequeno rival tanto pegava nos cabos das suas barras como nos extremos das minhas (para sua sorte esta era uma mesa de plástico, não tinha óleo nos ferros).
— Ó Tomás, não é assim — tentei corrigir — só podes agarrar nas tuas.
Mas a ganância de vencer era tanta que o miúdo empurrava e puxava tudo o que mexia. Apesar do esforço, o jeito para aquilo era inversamente proporcional à ânsia de ganhar pelo que, mesmo comigo imóvel como uma rocha, conseguiu marcar um autogolo que o fez, de imediato…festejar.
— Goooolooooo!!!! — gritou como se tivesse vencido a Champions, agarrando-se ao avô que sorria, meio envergonhado, e olhava para mim com ar de quem me pede paciência.
— Como? — questionei — Ó Tomás, isso foi um autogolo. Conta para mim.
— Não, não, eu é que marquei! Conta para mim! 1-0.
— Isso não é justo, Tomás, o jogo não funciona assim — olhei para o velho esperando o juízo de uma pessoa madura.
— É meu, avô. O golo é meu! — o pequeno autogoleador ameaçava chorar. E bem pode agradecer ao careca o facto daquele tento ter contado para a sua equipa, pois foi apenas por ele que aceitei este roubo de igreja de Portugal dos Pequenitos.
Não sei se já referi que nunca tive grande habilidade para os matraquilhos. Ainda assim, o resultado ficou em 7-1 a meu favor, porque o Tomás enervou-se ao sétimo golo e saiu disparado a gritar e a chorar, e assim.
Ainda perguntei ao velhadas se queria continuar o jogo, mas por alguma razão achou melhor ir atrás do neto.
Longos minutos depois, um conjunto de miúdos suados reuniu-se à volta de um bolo com velas acesas. Cânticos foram entoados, velas sopradas, e aerossóis de perdigotos envolveram a sobremesa ao som da anunciada salva de palmas.
Distribuíram-se os presentes e rasgaram-se os embrulhos com gritos de excitação na descoberta de mil brinquedos, todos eles relegados ao esquecimento minutos depois.
Chegara finalmente o momento que eu mais desejava: a partida em direção ao meu saudoso sofá, ao meu querido silêncio.
Apesar de tudo foi curioso observar as diferenças das festinhas do meu tempo. Havia menos aparelhos sofisticados, é certo, mas já havia princesas, futebol e bullies. Porventura com menos balizas ou passerelles, e saltos com menor elasticidade. Não me recordo de ver tantos adultos nos aniversários desses tempos. Talvez por existirem mais crianças. Ou estavam todos numa garagem algures a embriagar-se.
À saída, no trânsito, um tipo apita-me num cruzamento ameaçando com pancada. Quase cuspi o pão de leite com o susto. Não reagi, incapaz de dizer uma palavra. Deixei-o passar à minha frente, o que decidiu fazer com ruidoso espalhafato. Aumentei o som do rádio e segui a minha vida — estava a passar uma canção do Thom Yorke. Aproveitei para lavar os ouvidos das irritantes músicas infantis que ouvi em loop durante todo o dia. E foi nesse momento que me lembrei, demasiado tarde, do que deveria ter respondido ao palhaço que apitou: “cada um no seu quadrado, cada-um-no-seu-quadrado”.