“Filho?”: uma peça de teatro para toda a família que recusa a infantilização das crianças

por Sandra Henriques,    5 Dezembro, 2019
“Filho?”: uma peça de teatro para toda a família que recusa a infantilização das crianças
Fotografia de Carlos Gomes
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Nesta época de Natal a Oficina Municipal de Teatro (OMT) de Coimbra recebe “Filho?”, uma peça para toda a família encenada por João Neca e co-produzida pel’O Teatrão, companhia residente da OMT, e Teatro o Bando, baseada na obra “Para Onde Vão Os Guarda-Chuvas” de Afonso Cruz.

Num tempo em que as peças (e filmes) para público infantojuvenil se desmancham em cores, brilhos, música, enfeites múltiplos e conforto, “Filho?” aparece-nos como algo inesperado: uma peça a preto e branco, com muitos silêncios, pouco cenários e temas “muito pouco adequados para crianças”. Guerra, perda de entes queridos, medo, racismo, sofrimento e ódio são alguns dos temas abordados, mas também, e resumindo toda a trama, o Amor. Ainda assim e porque os mais novos apreciam coisas de que os mais velhos já se esqueceram, há por vezes risos da plateia e a sala, de cerca de 100 crianças, parece quase sempre concentrada apesar de não haver os estímulos constantes a que hoje estamos habituados.

Fotografia de Carlos Gomes

Cheia de símbolos, a peça mostra-nos, entre outras coisas, paredes construídas com sal, guerras apenas mostradas pelos sons crus e pelos corpos dos atores e um filho que é uma fita verde e que nem sabemos se existe mesmo ou se é um sonho daquela família de dois irmãos adultos – um muito alegre e doce (interpretado com destaque por João Santos), outra mais amarga e fechada (por Margarida Sousa) – e um primo (por Raul Atalaia), também adulto, que só fala por gestos e movimentos poéticos e cheios de ternura.

É possível que a peça nos pareça demasiado simbólica para que as crianças a percebam, e isso até pode ser verdade para os mais pequenos de 6 e 7 anos… talvez eles não compreendam tudo, mas talvez isso não seja o mais importante. Há, no entanto, um momento em que o silêncio na plateia revela que visivelmente as muitas crianças ali presentes perceberam tudo o que se passou: o momento em que um pai perde o seu filho em mais um ataque daquela guerra – um momento que deixa a sala calada com um nó na garganta, em que apenas se usa uma cor e o sofrimento no corpo dos atores e isso basta.

Fotografia de Carlos Gomes

É depois desta perca que chega à família um novo elemento, uma nova criança de outra “raça”, da mesma “raça” e religião dos que mataram a primeira criança e é neste momento que o ódio se torna mais presente na história e nos revela o absurdo e os malefícios da guerra, do sofrimento e da incapacidade de perdoar e os benefícios da capacidade de renovação, da capacidade de amar.

Simples e complexa ao mesmo tempo, poética e crua, para pequenos e grandes, recusando a infantilização das crianças, a peça de João Neca, d’O Teatrão e do Teatro O Bando, é um remar contra a corrente, pelo teatro com significado.

“O primo diz que as coisas mortas vão com a água, naturalmente, seguem a corrente do rio, é isso que fazem os paus, as pedras, as folhas, todos são empurrados para a foz, todos eles. Já os sábios e os salmões procuram a nascente, as causas das coisas e, só assim, tudo o que contraria a corrente está vivo. E a educação também é isso, é ir contra as coisas, não nos deixarmos arrastar para não nos tornarmos um pau seco a boiar nas águas.”

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