“Final do amor”, de Nuno Gonçalo Rodrigues: fera ferida narcísica

por Tiago Bartolomeu Costa,    23 Maio, 2025
“Final do amor”, de Nuno Gonçalo Rodrigues: fera ferida narcísica
Fotografia de Jorge Gonçalves
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É um clássico dos conselhos das sessões de terapia de casal: não é como se responde da forma mais sagaz ao argumento que nos foi lançado, é como se sai de uma discussão. Por vezes, ou sempre, saindo realmente dos espaços mental e físico onde a discussão acontece. O que Nuno Gonçalo Rodrigues faz com o texto de Pascal Rambert, Final do Amor, é colocar sobre o palco a impossibilidade de fuga de quem é testemunha dessa discussão. E é um detalhe transformador para um texto tão preciso, dedicado e complexo, porque permanentemente a desafiar a tentação da escolha. De que lado se quer estar? De que lado está cada uma das personagens?

O texto, traduzido por Victor de Oliveira – que em 2016 encenou o espetáculo na Culturgest, interpretando-o com Gracinda Nave – é a adaptação de Clôture d’amour, premiado em 2011 com o Grande Prémio da Literatuta Dramática do Sindicato da Crítica francesa, e estreado, com encenação do autor, no Festival d’Avignon, com interpretações dos atores Audrey Bonnet e Stanislas Nordey, em quem Rambert se inspirou. Organizado em duas grandes secções – a intervenção dele, a intervenção dela; a resposta que ele prepara ao que ela terá feito, a contrarresposta que ela lança – sem que nenhuma delas determine ou condicione a razão, o espetáculo, e esta versão cénica em particular, sublinha o princípio de que quem começa primeiro não é garante de verdade, nem quem encerra é o seguro para a reposição da justiça.

Fotografia de Jorge Gonçalves

Libertando o texto de todos os artifícios que a encenação original trazia – nomeadamente o uso de um coro, que observava e, de certo modo, demitia o espetador da responsabilidade de observar e se projetar –, e devolvendo-lhe alguma da ambiguidade e do cinismo que a retórica francesa permite – e na qual a tradução portuguesa por vezes tropeçava – a encenação centra-se no essencial: os dois interpretes, extraordinariamente habitados por Inês Pereira e Pedro Caeiro, num tour de force físico e mental – “ele” diria “mentalista”, “ela” diria que ele não percebera – que lançam repetidas vezes a dúvida sobre estarem, de facto, num ensaio. Faz sentido, até porque Pascal Rambert gosta de misturar, nas fronteiras entre o real e a ficção, a ideia de que o teatro é essa zona de interferência/transferência onde tudo é permitido (em 2018, a convite do Teatro Nacional D. Maria II, escreveu Teatro, precisamente sobre isso, ano em que o Festival de Almada trouxe Actrice, versão francesa de um texto que já fizera para uma companhia russa). Sabendo-o, e não se podendo defender, têm-se um ao outro – e um no outro – para o desabamento físico, moral e emocional a que se prestam.

O eficaz uso do espaço do Teatro Meridional é, nesse aspeto, determinante: a entrada em cena, como que para um ringue, ou respondendo à chamada para uma repetição (os ecos de Cenas da Vida Conjugal de Bergman, mas sobretudo, o lastro de Dias de vinho e de rosas, de J.P. Miller, que os Artistas Unidos apresentaram em 2012, com encenação de Jorge Silva Melo); a escala do espaço usada como que para reduzir as personagens ao detalhe dos seus argumentos, entre a mesquinhez e a grandeza de um toque certeiro, e um uso parcimonioso do jogo de luzes, que não toma posição sobre qualquer um dos dois, nem se transforma, ou ao espaço, em personagem, se não no momento final, e ainda assim, propondo não uma resolução, mas pondo um fim ao direito que temos a ver o que até aí (se) passou na vida “deles”, permite que nos concentremos no essencial: a projeção da reação. Como olhar para quem ouve; como imaginar a resposta que possa estar a ser preparada; como projetar uma resposta; como reagir à reação?

Fotografia de Jorge Gonçalves

Deve-se tudo, naturalmente, aos atores, Inês Pereira e Pedro Caeiro, que, pelo pressuposto dramatúrgico, emprestam às personagens os nomes próprios que, naturalmente, em português e por inadvertida coincidência, ganham outra gravidade. Num repente, as partituras, as viagens, a cadeira de bordado cor-de-rosa, o desenhinho de cabeça de criança, a lembrança de um quadro de Fragonard, o voo Florença-Paris, o trabalho, o palco e a maçaneta da porta são como pontos comuns entre tempos e épocas, não só porque estas discussões já aconteceram com todos, de um e de outro lado – até do lado de quem observa – , mas porque, ao acontecerem novamente, revelam o que existe de comum, e de transformador em cada uma delas. É, e não é um detalhe. A dramaturgia do real a que o texto nos subjuga, permite projeções e referências que facilitam o escape e a recusa na identificação.

Mas é da revelação daquilo que é comum que a encenação se aproveita, usando a seu favor um campo-contracampo que parece fixar, como se através de um poderoso gancho, os dois atores, antes de os soltar. Todo o trabalho físico é anterior, presente e refúgio para um texto cheio de armadilhas retóricas, de jogos de intenções, de exposições que se tornam uma ensurdecedora reatividade que se vai deixando para trás, como os rasgos na carne que ficam de uma luta. São duas feridas abertas, expostas, narcíssicas; duas feras feridas que se querem defender, atacando, mas estando presas, talvez, pelo que ainda resta de respeito pelo outro e, por isso, aproximando-se sempre sem certezas, logo recuando, ou deixando-se ficar, como se a resistência e a verdade se expusessem na capacidade de não reagir fora de tempo.

Já o havíamos sentido na versão que, em 2018, o Festival de Almada trouxera assinada pelo esloveno Ivica Buljan, a mesma tensão experimentada e partilhada por uma língua mais seca, menos poética, áspera quando quer realmente ferir. E tudo isso é, agora, transformado em material cénico, e aproveitado como recurso multiplicador por uma encenação e duas interpretações que mostram como “a gramática volta” e as “palavras morrem em poças de sangue”.

O espetáculo joga habilmente com o que parece evidente no dispositivo dramatúrgico, produzindo e forçando tensões físicas em tudo contrastantes com a ligeireza de alguns dos argumentos que, no calor da discussão, são assumidos, unilateralmente, como verdades. É na consciência da destruição e na impossibilidade de imaginar o que se possa seguir que os corpos dos dois atores se concentram, e deixam que nos concentremos, como se pudéssemos ouvir o que está a ser dito apenas e só pela resposta muda de quem espera a sua vez para falar, ou se apercebe do impacto daquilo que disse. No final, porque é sempre preciso terminar, a voz silenciosa do espetador fica a ecoar na projeção sobre aqueles dois corpos, a pairar naquele espaço, a observar-se na organização dessa discussão, sem saber como sair.

Final do amor, produção dos Artistas Unidos, apresentou-se no Teatro Meridional, em Lisboa, entre 9 e 25 Maio 2025. A tradução de Victor Oliveira, foi editada na coleção Livrinhos de Teatro.

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