Fintar a vida
A inevitável menina Marina passou agora a acumular funções: para além de sábia do bairro é também a mais informada e contundente crítica destas crónicas. Leu-as todas, sem excepção; e assim, com a legitimidade do leitor fiel, afirmou de viva voz o que tinham em comum: «São todas tristes, senhor Nuno. Ou falam de mortos, ou está zangado, ou está sempre a dizer que vamos todos morrer».
Argumento inatacável, este, porque é verdade. Ia responder quando ela pediu: «Escreva sobre coisas bonitas. É Verão, está quase a ir de férias… Deixe lá esse mau feitio». Achei intrigante que alguém que examina pormenorizadamente os tablóides em busca de sexo, sangue e corrupção (e que os encontra sempre) me peça para escrever sobre “coisas bonitas”. Mas prometi-lhe que iria fazer o meu melhor, mesmo sendo contra a minha natureza e, atrevo-me, à natureza humana.
Mas depois aconteceu isto: durante o meu habitual percurso de metro sentou-se à minha frente uma mulher da minha idade. Distraído, nem sequer olhei para o seu rosto. Mas eis que ela me reconhece e repete o meu nome com alegria, perante a minha surpresa. Seguiu-se uma troca de perguntas e cortesias em que eu tentei disfarçar o melhor que podia um facto simples: não me lembrava da senhora em questão. Durante dez intermináveis minutos limitei-me a responder amenidades sobre o que fazia e a procurar nas suas respostas indícios da sua identidade. Em suma, estava a ser uma espécie de Poirot de mim mesmo: sabendo quem ela era, iria descobrir quem eu era quando a conheci. Quando com algum alívio cheguei ao meu destino não tinha decifrado o mistério. Ainda não o consegui.
Este fenómeno acontece-me cada vez com mais frequência. Antes, na minha juventude, auto-proclamei-me nomenclator de um amigo que tinha exactamente o mesmo problema. O nomenclator, já que não perguntaram, era um escravo utilizado pelos patrícios do império romano e que tinha como função lembrar ao amo quem era fulano ou fulana e o que faziam. Isto era especialmente útil em funções políticas ou em situações sociais. Entrávamos num bar, chegava alguém que falava connosco e eu segredava-lhe: «É X e faz y. Bebemos copos com ele ontem.» Na altura ria muito deste meu amigo, que de resto não melhorou da sua condição. Mas agora quem gostaria de ter um nomenclator era eu. Na sua ausência perco-me em malabarismos verbais, falsas expressões de reconhecimento e sorrisos patéticos entremeados com afirmações vagas. Suponho que não seja um espectáculo bonito de se ver. Mas o que seria se dissesse sempre a verdade: «Desculpe, minha senhora, mas não estou a ver…» Imaginemos que quem nos saúda é um amigo com quem vivemos tempos preciosos ou com quem estivemos apenas há alguns dias? Não, aqui a convenção e a hipocrisia inofensiva são valores civilizacionais que é preciso manter.
Trata-se no fundo de fintar a verdade, de fintar a vida. Sabemos como isto vai acabar, mas elaboramos dribles e reviengas várias porque tem de ser. Porque, no limite, isso é viver e deixar viver. Não sei se isto é uma coisa bonita, menina Marina, mas olhe: é mesmo o que há.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.