‘Flower Boy’ e o florescecer prazeroso de Tyler, The Creator
Ao longo dos quase oito anos que passaram desde o lançamento de Bastard, a mixtape de estreia do rapper e produtor Tyler Okonma, observámos a metamorfose do artista desde o adolescente barulhento e sem papas na língua até ao homem de sucesso que é hoje, e que se apresenta no seu mais recente projecto, Flower Boy. Aquando da sua estreia, o artista conhecido como Tyler, The Creator mostrou o hip-hop de um rapaz zangado e voraz, com batidas produzidas pelo próprio, rimas que revelavam um desdém total pelos mais facilmente impressionáveis, e um jovial desejo de atenção e de ferir as sensibilidades de muitos só porque sim, com descrições macabras de violações e misoginia, e referências homofóbicas em fartura, atitudes que lhe valeram a honra de ser banido do Reino Unido. Mas se conseguirmos olhar para lá dessa ruptura de melindre (e uma boa dose de “estupidez” adolescente) que Tyler tão orgulhosamente enverga, encontramos valor nas suas palavras mais sentidas.
Paradoxalmente, a abrasão de Tyler nos primeiros tempos da sua carreira (aquando do lançamento de Bastard e de Goblin, o seu primeiro álbum) é contrastada com uma personalidade frágil, emotiva; um aparente durão que sucumbe frequentemente aos seus sentimentos. Nas suas músicas, o rapper discute temas como a relação conflituosa que tem com um pai que o abandonou, a dificuldade que tem em relacionar-se com o sexo oposto e a busca incessante pelo amor e felicidade, mostrando por vezes uma subjectividade tocante e emocional, e confirmando-se como um artista empático e sentimental. No entanto, até este ponto no seu percurso os seus projectos denotam uma falta de foco, díspares na distribuição entre músicas verdadeiramente únicas e apelativas e faixas algo constrangedoras e de provocar o bocejo. Apesar da qualidade musical não ser uniforme, transparece a qualidade exímia de Tyler na mesa de produção, que com o passar do tempo tem sido refinada, tornada menos turbulenta e espalhafatosa, e mais condensada e primorosa, mostrando aprendizagem com os seus projectos anteriores. Em Flower Boy, Tyler aplica todo esse conhecimento da forma mais acertada: observa-se a consagração de todo o trabalho do artista ao longo destes anos, e a conjugação dos melhores aspectos musicais e líricos que foi mostrando ao longo da sua carreira.
À semelhança dos projectos anteriores, Tyler aposta mais uma vez num rap biográfico, em que fala sobre o seu estado de espírito. Solidão e anseio de companhia são discutidos ao longo do álbum com uma sinceridade e maturidade “estranha” a Tyler, numa demonstração de calma intensidade que pauta o correr do álbum, deslizando de música para música, num misturar majestoso de batidas efervescentes. Em “911/ Mr. Lonely”, põe-nos a dançar ao som da sua solidão, com muito funk e brio na primeira parte doce e apelativa, com influências de neo soul. “Boredom” junta um instrumental quente a um relato sincero de aborrecimento, de solitude (“Bored and getting desperate as hell/Cellular not amusing and I hope someone will/ Message me with some plans that are amusing as well”), que acaba com um arranjo harmonioso de cordas bem construído, elevando a música. Em “November”, uma das músicas mais tristes do álbum, o rapper é invadido pela saudade de outros tempos, e anseia por voltar a esse local imaginário, com uma nostalgia potente auxiliada por um instrumental taciturno. Numa abordagem mais positiva, “See You Again” mostra Tyler a cantar, com um refrão que fala de um amor jovial, inocente, um amor na sua forma mais pura e que contrasta drasticamente com os primeiros trabalhos do artista. E finalmente, em “Pothole”, a letra é reflexiva, adornando perfeitamente um instrumental cheio de ginga. A surpreendente inclusão de Jaden Smith não desaponta, num refrão e tema que falam sobre ter o critério para se desviar dos obstáculos que vão surgindo.
É clara a evolução na mentalidade do artista; um crescer, um entendimento das lições do passado, dos erros da sua juventude. O rapper acabou por acertar em cheio, mostrando pela primeira vez na sua carreira uma linha de pensamento fluída ao longo de todo o álbum mas sem nunca perder o alento que demonstra desde o começo da sua carreira. Esse ávido rugido transparece principalmente nos bangers do álbum: a voz grave e possante de Tyler assenta que nem uma luva no refrão visceral de “Who Dat Boy”, em que faz um trabalho fenomenal num tema ameaçador, distorcido com uma dose de compressão e um verso humorístico de A$AP Rocky. Mas, apesar da familiaridade, a atmosfera geral do álbum é de evolução, de entendimento do passado como ferramenta para um futuro informado. “Foreword” serve de introdução ao trabalho, com um prefácio soturno, em que Tyler discute a sua importância no panorama actual. O rapper chega a este ponto da sua prolífica carreira com uma atitude introspectiva, em que medita sobre a sua relevância, sobre a mutabilidade da vida e sobre a sua sexualidade (“Shout out to the girls that I lead on/ For occasional head and always keeping my bed warm“). Tyler volta a tocar nesse assunto em “Garden Shed”, uma das músicas mais sentidas de todo o projecto. A primeira parte é, na sua maioria, instrumental, e mistura elementos como o som de sintetizador já conhecido de outros trabalhos do rapper com uma guitarra psicadélica e uma atmosfera calorosa, uma demonstração do que Tyler evoluiu sem esquecer o seu som característico. O segundo verso é disparado, declarado sem espaço para respirar, a confissão da procura de refúgio num barracão de jardim, uma alusão ao local imaginário onde se escondia, de acordo com a temática floral do álbum (“Garden shed, garden shed, garden shed, garden shed/ For the garden/ That is where I was hidin’/ That was real love I was in”).
Na segunda parte de “911/Mr. Lonely”, Tyler parece revelar alguma da motivação por trás da sua atitude em sobrepôr-se a tudo e a todos (“I say the loudest in the room/Is prolly the loneliest one in the room (that’s me)”). Essa clareza mental e o discernimento que aplica a si próprio são as das mudanças mais claras em Flower Boy. A liderança “anarquista” e imperativa de temas como “Radicals” (“Kill people, burn shit, fuck school”) de Goblin ou “Pigs” em Wolf, o seu segundo álbum, é substituída por um incentivo à expressão pessoal, por uma mensagem de liberdade de escolha descrita principalmente na explosão colorida e focada de “Where this Flower Blooms” (“Tell these black kids they could be who they are/ Dye your hair blue, shit, I’ll do it too”). O rapper surge como um novo tipo de ídolo para a juventude, para os milhares de fãs que estimam o seu trabalho. É o culminar de uma viagem de quase oito anos através de um conjunto coeso de temas que não descuram os relâmpagos caleidoscópicos e emocionais que já são apanágio da música do artista, mostrando a sua mestria nos beats de uma forma “açucarada”, intimista, repleta de detalhes cativantes e de uma atenção soberba a cada pormenor. Em Flower Boy, vemos a transformação de um adolescente raivoso num homem confortável consigo mesmo, o florescer delicioso de um artista que mostra orgulhosamente as suas cores.
Músicas Preferidas: “Where this Flower Blooms”; “Who Dat Boy”; “Garden Shed”; “Boredom” e “November”
Músicas menos apelativas: “Glitter”