Ford Ka
Algures em 2024, eu senti que era possível atingir um estado de quase-perfeição. Mas algures em 1999, 2000, estava longe disso: era apenas um miúdo, a precisar de alguma correção, sentado no banco de trás do carro da namorada do meu irmão mais velho, a descobrir discos escondidos em gavetas por baixo da janela. O carro estava a descer a Castilho – sempre que penso nesse carro ele está a descer a Castilho, e está a chover, e estamos a ouvir um disco, e eu estou a ver os outros que existem, no banco de trás.
Muitos desses discos foram mais tarde passados para o computador, ou copiados para outros discos, e ouvidos de forma irregular mas repetitiva durante alguns anos, no que parece ter sido outra vida. Um dos discos foi “Brown Sugar”, de D’Angelo. Começou por captar a minha atenção com uma música em que o refrão eram três palavrões, atirados com um charme divino, o que para um adolescente subversivo (um pleonasmo, talvez!) era fascinante. Depois veio o resto, a faixa título, “Lady”, “When We Get By”, tons que me adoçavam o quarto e os passeios. Algures pelo meio descobri que havia um outro álbum, também sacado ao meu irmão, chamado “Voodoo”. Foi pouco ouvido, em comparação com o primeiro.
Anos mais tarde, em 2014, comprei o meu primeiro carro. Era o novo modelo do carro da namorada do meu irmão. Era mais pequeno, menos redondo, mas era vermelho, e tinha pê-cê na matrícula. Não tinha leitor de discos, mas ouvi muita música naquele rádio, em várias viagens pelo país inteiro, e por um bocado de Espanha. De certeza que D’Angelo tocou nalguma dessas viagens. Era um carro americano, confortável, citadino, maneiro, pouco potente. Símbolo de um outro tempo, de uma outra vida.
Não me lembro de quando é que ouvi “Voodoo” com atenção, mas sei que a música que mais me ficou foi a versão da canção de Eugene McDaniels que foi primeiro imortalizada pela voz de Roberta Flack: “Feel Like Makin’ Love”. Havia qualquer coisa com a batida, a leveza, a sedução – sente-se o calor, a ternura e o desejo a andarem de mão dada num parque – que me apanhou logo. “Untitled (How Does It Feel)” é, por força de tudo, parte do cânone, e bem. Mas a versão de D’Angelo do clássico de McDaniels ficou-me sempre no goto, graças àquele balanço irresistível.
É sempre triste quando morre um poeta: escrevi estas linhas numa praia na costa do Michigan, numa tarde de outubro, quando soube da morte de António Pina. Farewell, happy fields! – também fiz essa referência, enquanto os meus pés se afundavam numa areia molhada, batida pelo frio. Viajei num carro alugado, dormi num motel, almocei num restaurante de peixe, e mais tarde, enquanto vinha de um concerto dos Mountain Goats em Kalamazoo, tive um acidente em que achei que sim, que poderia ter morrido. Não sei se ouvi D’Angelo nessa minha primeira estadia americana, em 2012. Na segunda, em 2018, sei que ouvi, em casa, depois de assistir a uma interpretação de Porgy and the Bess no auditório Hill, em Ann Arbor. Hill era também o nome da rua onde eu vivi durante esses meses, e o nome de uma balada que escrevi, em 2012, antes de ter o acidente de carro.
Sobrevivi, mas D’Angelo morreu, num outubro mais quente do que o outubro do Michigan. Foi uma coisa simples, um facto que surgiu como se fosse uma notícia qualquer, vulgar – morreu D’Angelo. Mas com essa morte, as minhas memórias de um tempo em que o presente era tudo, e o passado ainda nada, ou pouco, voltaram ao de cima. Ouvi “Black Messiah” na altura em que saiu. Acho que gostei, mas vou ter de ouvir outra vez para ter alguma certeza. D’Angelo morreu, e eu voltei a ouvir “Feel Like Makin’ Love”. Continua a bater bem.
Sugestões do cronista:
O novo disco dos Geese, “Getting Killed”. Tão fora, tão bom: uma coisa que surpreende, diverte. Outra coisa que diverte: a livraria italiana Piena, que passou de Arroios para a Luciano Cordeiro. Está catita, e tem uns bons aperitivos para chamar pessoal. Estou a gostar do livro de Irene Sola, “Dei-te Olhos e Viste as Trevas”. Mas também gostei muito do conto “Bosun”, de Paul Yoon, parte da coletânea “The Hive and the Honey”.

