Francisco Geraldes: muito fumo, pouco fogo
No passado dia 21 de Junho, foi notícia que Francisco Geraldes ia rumar para a Arábia Saudita, acompanhando o mote de dezenas de jogadores europeus, trocando o futebol do velho continente por um contrato financeiramente sem competição. Rapidamente, correram para o Twitter as duas trincheiras habituais: os que acham que o médio formado no Sporting é um hipócrita vendido e os que o defendem por se fazer à vida e tentar combater o sistema por dentro. Hoje é dia 11 de Julho: Francisco Geraldes ainda não assinou nenhum contrato das arábias, não houve desmentido da notícia original e a vida continua igual. A montanha pariu o rato do costume.
Este texto não procura opinar sobre que decisão deve ser tomada quando se recebe uma proposta de trabalho francamente melhor, mesmo que ponha em causa valores que possam entrar em choque com a nossa matriz. Se tivesse sido essa a discussão inicial nas redes sociais, estaríamos nós muito bem e o debate até podia ser curioso. Este texto existe apenas para constatar mais um exemplo do nosso comportamento de grupo quando surgem estas polémicas de algibeira: queremos conhecer tudo, falar de tudo, sermos os primeiros a chegar e, se possível, provocatoriamente engraçados. O que obtemos com isto? Duas narrativas que não procuram debater absolutamente nada e que ficam datadas ao fim de poucas horas.
É óbvio que a polémica só surge por estarmos a falar de alguém que não é um novato no que aos conflitos das redes sociais diz respeito. Francisco Geraldes é conhecido por ser “um futebolista diferente dos outros”, ativamente politizado à esquerda e que lê e escreve poesia, mantendo-se ativo e vocal na internet. Esta combinação é uma montanha russa de emoções para aqueles que, em 2023, continuam a achar que futebol e política não se podem misturar. Se por um lado temos o grupo daqueles que estão à caça de qualquer sinal de hipocrisia da parte do futebolista, por outro temos a turma daqueles que sentem obrigação política de defendê-lo, mesmo quando são ativamente críticos da indústria do futebol e de tudo o que ela representa, roçando muitas vezes a condescendência e a altivez sobre o verdadeiro desporto das massas. São duas formas de estar, no mínimo, caricatas.
Bem vistas as coisas: afinal, quem é que esteve verdadeiramente mal neste caso?
Apresento os candidatos:
- Aqueles que lançam notícias destas e não procuram saber junto do atleta ou dos seus representantes até que ponto é factual a “informação” que obtiveram e que, mesmo sem atualizações durante mais de duas semanas, continuam calados e sem desmentir o que anteriormente avançaram como exclusivo;
- Os caçadores da hipocrisia que pularam para os teclados dos seus telemóveis e fizeram questão de mostrar a Francisco Geraldes que a Arábia Saudita não era um regime propriamente progressista e revolucionário e que ele, para além de refém das suas palavras, era um impostor por criticar a atribuição do mundial ao Catar mas, ao mesmo tempo, aceitar ir jogar num país que é a cara mais óbvia do fenómeno que apelidamos de sportswashing;
- Os defensores universais do progresso que correram aos livros que tanto gostam de citar para defender de forma quase contorcionista que o jovem de 28 anos ia só vender a força do seu trabalho, o que não colocaria em causa as suas crenças e posições políticas.
Não posso deixar de olhar para esta polémica e sorrir. As duas posições antagónicas sobre o tema não procuraram esclarecer o mais básico e talvez o mais importante ponto: esta notícia é ou não é verdadeira? Preocupamo-nos mais em ter razão e fazer de tudo para confirmar essa razão que passamos a falar com tanta propriedade e conhecimento de uma situação que nem sequer existe. Discutimos cenários com força de factos e caímos no ridículo de não admitir que talvez possamos estar enganados.
No final de contas, parece-me que não terá muita importância saber se Francisco Geraldes irá ou não para a Arábia. Este tipo de polémicas habituou-nos a normalizar que as notícias a montante são sempre mais relevantes do que aquelas que surgem a jusante. Mesmo que agora se saiba que isto não passou tudo de uma manobra de clickbait, as notícias que desmintam o exclusivo inicial, ou mesmo as que o confirmem, nunca passarão de notas de rodapé. Ninguém que tenha insultado o futebolista nas redes sociais vai fazer o mea culpa e admitir que errou, assim como o seu contrário nunca acontecerá.
O que nós gostamos mesmo é de criar narrativas que corroborem tudo o que sempre achámos sobre x ou y, mesmo que não exista qualquer tipo de confirmação ou investigação. O que nós gostamos mesmo é da dopamina que nos alimenta a alma quando escrevemos um tweet que tem muito alcance, seja ele qual for. Não importa bem o alvo ou o tema da polémica. Hoje foi o Geraldes, amanhã pode ser o Manel ou o algodão doce. Desde que a roda continue a girar, a guerra de trincheiras digital continuará a alimentar muitas bocas. É o que é, no final do dia.