Francisco Miranda Rodrigues: “Há 24 mil psicólogos em Portugal e só mil se encontram no Serviço Nacional de Saúde”
Há 24 mil psicólogos em Portugal. Desses 24 mil, só mil se encontram no Serviço Nacional de Saúde [SNS] e, desses mil, só 250 nos Cuidados de Saúde Primários. Quem o avisa é Francisco Miranda Rodrigues, Bastonário da Ordem dos Psicólogos, para quem a oferta pública de auxílio psicológico é, claramente, insuficiente, tendo em conta a crescente procura da população, em tempos de pandemia, de apoio profissional — o que provocou um agravamento das listas de espera. Tem havido um esforço, por parte dos psicólogos, para continuarem a acompanhar os casos que já necessitavam de ajuda, mas tem se tornado cada vez mais difícil admitir novos casos, ou seja, pessoas que, pela primeira vez, entram no sistema para serem acompanhadas. “Há serviços que tinham dois a três meses de espera para uma determinada consulta e, neste momento, já passa de um ano. Ou seja, significa que pararam naquela altura e, como tal, deixaram de ter condições, desde a pandemia, para terem as primeiras intervenções”, refere. Os problemas referentes ao estado da psicologia em Portugal não são, só, de agora, lembra, já vêm de longa data, antes da pandemia — frisa que havia locais em que os tempos de espera chegavam a 4 anos.
Entre várias críticas à falta de sensibilidade para a resolução do problema, que acicata as desigualdades sociais entre quem pode e não tem recursos financeiros para aceder a um serviço de psicologia, ressalva, pelo menos, dois aspectos positivos: são eles a criação da linha de acompanhamento psicológico do SNS 24, que conta com 70 mil atendimentos num ano ainda não concluído, e o reforço dos psicólogos na comunidade escolar. A seu ver, o pós-pandemia terá, essencialmente, estas frentes — o apoio dos alunos carenciados, quer a nível económico, quer a nível do seu desenvolvimento; o apoio da população que se viu afectada pela pandemia; apostar em respostas de saúde mental (algo que deixou bem vincado) que se alicercem na prevenção e não na posterior remediação de perturbações mentais e, também, uma maior aliança entre a psicologia organizacional e estratégias de criação de emprego. Este será um ponto muito importante, as empresas, se quiseram sobreviver, e, a seu ver, esta é uma tendência que tende a crescer, terão de admitir nos seus quadros, ou externamente, psicólogos. Terá de haver uma admissão da importância científica destes profissionais, em detrimento da chancela que tem sido dada a “coachs“. A ler na entrevista que se segue.
Ainda no ano passado, em Setembro, o bastonário chamou a atenção para a falta de psicólogos na DGS e nas reuniões de peritos com o Governo para se debater a pandemia. Quer explicar um pouco melhor o porquê dos psicólogos fazerem falta nessas reuniões?
Se estamos a falar de comportamento, se estamos a falar de como as pessoas se comportam, a razão pela qual as pessoas saem ou não saem, têm mais ou menos cuidado em termos das suas movimentações ou dos seus hábitos de higiene, estamos a falar de comportamentos não estamos? Se a psicologia é, por definição, a ciência que estuda o comportamento e os processos mentais, então não se entende. Nós temos matemáticos com modelos sobre como o vírus se propaga ou não, temos virologistas que conhecem como funciona o vírus, temos médicos de saúde pública, e quanto aos profissionais do comportamento das pessoas, que é aquilo que mais se tem falado? Diz-se muito, “porque é que as pessoas isto, porque é que as pessoas aquilo, porque é que as pessoas não entenderam a mensagem, porque é que as mensagens não funcionaram.” Mas, então, quem percebe de percepção, de tomada de decisão, de motivação e de comportamento, de emoções? São os psicólogos. Portanto, essa é a razão. Qual o sentido que faz trabalhar nestas áreas interdisciplinarmente e não ter lá os profissionais que mais treino e formação científica têm para lidar com as questões do comportamento?
Acha que a falta de profissionais da psicologia e do comportamento humano se repercutiu, por exemplo, em algumas possíveis falhas na transmissão da mensagem para a população, também? Faço esta questão pegando na deixa da mensagem que focou na sua resposta.
Há uma coisa que posso garantir, há alguns erros que foram visíveis e que poderiam ter sido evitados se se tivessem seguido contributos de profissionais que não estavam lá para os dar e que, consequentemente, saberiam que essas mensagens, pela forma como foram passadas, nunca deveriam ter sido assim abordadas porque seriam contraproducentes. A forma pela qual se optou trabalhar essas mensagens contribui para maiores problemas do que vantagens. Posso dar vários exemplos, se nós escolhermos culpabilizar as pessoas e dizer que não se podem sentir cansadas, ou dizer que as pessoas são responsáveis pelos seus familiares mais vulneráveis ficarem doentes, mostrar imagens de spots televisivos que têm, na sua base, essa culpabilização, isso são estratégias que não mostram qualquer evidência científica de promoverem a mudança de comportamento. São baseadas numa lógica de “achómetro”.
Está estudado, por exemplo, que não há qualquer evidência que aquelas imagens chocantes nos maços de tabaco funcionem para a mudança de comportamento. Elas estão lá, elas existem, mas não há evidência de que funcionem. Nós habituamo-nos a um conjunto de coisas, mais no aspecto publicitário da comunicação, até, mas isso não significa, necessariamente, que existam evidências de que essas estratégias funcionem. Se calhar, podiam ser outras quaisquer e teríamos o mesmo resultado, ou seja, não promover a mudança comportamental. Se existissem profissionais a dar esses contributos, entendidos nessa matéria, e se esses contributos fossem seguidos pelos decisores, pois certamente que alguns dos erros que foram cometidos não teriam tido lugar.
A individualização da culpa, a culpabilização não foi, a seu ver, uma estratégia acertada.
Uma coisa é nós apelarmos ao sentido de solidariedade, cooperação, àquilo que nos une. Apelarmos à nossa capacidade de sermos capazes de dar ao outro, de fazer pelo outro, fazermos algo por uma causa maior e, todos nós, nos responsabilizarmos por isso. Isto é diferente do que, de repente, estarmos a culpabilizar cada uma das pessoas porque não fez isto ou não fez aquilo – são coisas diferentes. Uma coisa é apelarmos ao altruísmo das pessoas e à sua capacidade de fazer parte de um colectivo; termos força suficiente para, todos juntos, lutarmos e fazermos esforços para ultrapassarmos esta crise. Outra coisa é nós apontarmos o dedo e dizermos, “por tua causa, por tua culpa é que estamos assim.” Quanto a esta segunda hipótese, esta segunda forma, não há evidência de que resulte para mudarmos os comportamentos das pessoas.
Houve, durante este tempo, algum incentivo ou tentativa para se criar um plano estratégico geral capaz de fazer face aos problemas psicológicos lançados pela pandemia? O que era necessário fazer?
Não tenho conhecimento de qualquer plano dessa natureza. Julgo que a única coisa de que tenho conhecimento é que existe uma tentativa ou uma intenção de, finalmente, concluir-se algumas das acções que estão previstas no programa nacional de saúde mental mas que, diga-se, estão por concluir há muitos anos. Não foram concluídas, quer seja porque o prazo já terminou e não foram finalizadas ou, então, porque algumas dessas medidas nem iniciadas foram. Acontece que grande parte destas medidas, sendo muito necessárias, são parciais quanto àquilo que, hoje em dia, é a melhor prática recomendada — práticas, essas, que têm de ser sustentadas no tempo. Estamos a falar do quê, portanto? São medidas que, na verdade, estão assentes na remediação e estão focadas nas pessoas que têm uma doença, ou seja, que têm uma perturbação mental. Não são medidas de promoção e prevenção e há razões para isso. Para se trabalhar a promoção e prevenção, é preciso que existam profissionais no SNS que tenham sido formados num modelo que lhes permita trabalhar a promoção e prevenção – a promoção da saúde e a prevenção da doença. Esses são modelos psicológicos ou biopsicossociais e não modelos biomédicos. Cerca de 95% dos profissionais do SNS, para não dizer mais, são profissionais que têm como base de formação os modelos biomédicos. Os psicólogos são uma esmagadora minoria e, portanto, não há, particularmente, nos serviços de proximidade, nos centros de saúde, um número de psicólogos mínimos que permita que este trabalho seja feito sistematicamente.
Portanto, neste momento, não só não está a ser demonstrada uma visão promotora da saúde, como quando se fala em saúde mental, infelizmente, quando se vai a ver o que está por trás, não é saúde. É, apenas, um remediar da doença mental e não prevenir, de modo a evitar que aconteçam mais situações de doença. Estamos, basicamente, a colocar prioritariamente os recursos na remediação. Só estamos a colocar recursos na remediação, praticamente. A única excepção, nestes anos, na área da tutela do ministério da saúde, foi a criação da linha de apoio psicológico do SNS 24 — esta linha foi a única excepção que tivemos de uma aposta na promoção e prevenção. Tudo o resto que está a ser, neste momento, anunciado para o plano de recuperação e resiliência é para remediar a doença. São tudo coisas importantes que tinham de acontecer e que já estão muito atrasadas, mas não chega, não é parcial e não é sustentável. Enquanto só apostarmos na remediação, nunca mais chegamos lá. Precisamos de prevenir, temos de evitar que as situações aconteçam. Um bom exemplo, foi o que aconteceu na tutela do Ministério da Educação com a contratação de psicólogos para as escolas, em que aí o modelo inclusivo, de autonomia e trabalho foi, prioritariamente, preventivo. Aí sim, acho que vamos obter cada vez mais resultados, a longo prazo, se continuarmos a insistir nesse modelo.
Acha, então, que em Portugal se olha para o psicólogo de uma forma, ainda, muito clínica? Faço a questão, porque insistiu na prevenção e refutou a remediação.
Também, mas ainda há um problema muito maior do que esse. Na área da saúde, por vezes, ainda não se olha, sequer, para o psicólogo. O que se está a olhar é para outros profissionais, desde o médico de família ao enfermeiro, até ao psiquiatra. São esses os únicos que lá estão. O problema é esse, são os únicos que lá estão. Há muito poucos psicólogos no Serviço Nacional de Saúde. Repare, nós temos no Serviço Nacional de Saúde, nos centros de saúde, um rácio de 2, 5 de psicólogos por 100mil habitantes.
Os tais 250 psicólogos nos cuidados de saúde primários, sim. Já ia abordar a questão.
Exactamente, é muito insuficiente. Ou seja, é verdade que há uma imagem dos psicólogos ainda é uma imagem, como diz e muito bem, muito clínica, muito voltada para esse trabalho remediativo. Mas a questão principal não é essa, a questão principal é que, muitas vezes, nem lá estão os psicólogos e, portanto, o que se faz, depois, é por via da medicação.
Mas, por exemplo, fala-se muito dos centros de saúde e compreendo a razão, mas não seria igualmente bom colocar psicólogos nos hospitais, por exemplo? Estou a pensar nas urgências e nas crises que podem surgir nos internamentos prolongados.
Sim, sim. Claro que sim. Mas nós falamos, primeiro, nos centros de saúde por uma razão. Do ponto de vista prioritário, de prevenção e promoção da saúde mental, é onde faz mais sentido, é onde é mais sustentável. Isso não significa, porém, que não sejam muito importantes nos centros hospitalares, nomeadamente nos serviços de urgência dos centros hospitalares. É algo que está, por exemplo, a ser alvo de um projecto-piloto no Centro Hospitalar de São João: a existência de psicólogos nos serviços de urgência, de modo a prestarem apoio a quem passe por situações dessas, mas também por situações de crise, onde é preciso uma estabilização psicológica e onde os psicólogos são os profissionais mais competentes e habilitados para a fazer.
Digo isto porque poderiam, por exemplo, fazer a diferença nas agressões a profissionais de saúde que, por vezes, acontecem e são noticiados.
Exacto, também, também!
Relativamente à falta de psicólogos nos centros de saúde, é interessante que alguns dos psiquiatras com quem já falei reiterem que fazem mesmo falta, até por uma questão de uma melhor gerência dos casos. Ou seja, a partir do momento em que um paciente já não necessite tanto de um psiquiatra, poder passar a ser seguido de forma intercalar e mais regular por um psicólogo ou, então, os casos mais graves passarem a ser seguidos por psiquiatras e os que não necessitem de acompanhamento médico ou farmacológico, por psicólogos. Ou seja, levaria a uma melhor cooperação entre as várias áreas da saúde mental, da qual o paciente beneficiaria.
Pois, isto não tem que ver, na verdade, com o impacto para a classe. Existe quem olhe para isto, os psicólogos nos centros de saúde, como se estivéssemos a ter uma posição corporativa mas os factos não demonstram nada disso. Existem em Portugal 24 mil psicólogos. Acha que faz grande impacto estarmos aqui a discutir se vão entrar 40, 50, 60 ou mesmo 100 psicólogos para os centros de saúde? Não tem grande impacto. Mais de metade da profissão não trabalha para o sector público, não trabalha para o Estado. Isto não é como os médicos ou enfermeiros, cuja maior parte trabalha para o Serviço Nacional de Saúde. Sabe quantos psicólogos, deste 24 mil, trabalham para o SNS? 1000. Sabe quantos enfermeiros trabalham para o Serviço Nacional de Saúde, ou mesmo médicos? Estamos a falar de muitas dezenas de milhares. Muitas dezenas de milhares. Portanto, não há comparação nenhuma.
Repare bem, acusar os psicólogos ou a ordem de favoritismo de classe quando se aborda a questão dos centros de saúde, é, até, ofensivo para com as pessoas que procuram os serviços dos psicólogos e têm de ir pagá-los para o privado. É como se nós disséssemos a um país, em África, que não tenha sequer saneamento básico, “pois vocês estão a olhar para o vosso interesse”, quando pedem ou recebem um investimento dos mecenas internacionais para o investimento de infraestruturas. O interesse dos psicólogos estarem nos centros de saúde não é um interesse para os psicólogos em primeira mão. É um interesse para as pessoas que precisam dos serviços dos psicólogos em primeira mão. Quanto aos tempos de espera que tínhamos antes da pandemia, agora é muito maior. Tínhamos, antes da pandemia, locais em Portugal onde se esperava, atenção, onde se esperava 4 anos para uma consulta, no SNS — 4 anos. Portanto, dizer que nós estamos a olhar para o interesse dos psicólogos quando falamos da sua contratação é capaz de ser um bocadinho exagerado.
Há uma crescente desigualdade social, portanto, entre quem pode pagar o privado e quem não pode.
Sem dúvida. Com esta situação, nós estamos a aumentar, tremendamente, as desigualdades. Dupla e tremendamente. Duplamente porquê? São os mais pobres, aqueles em risco de exclusão, que não conseguem ter acesso aos serviços prestados por psicólogos, enquanto que os outros que conseguem pagam e vão. Os psicólogos têm tido um crescimento de procura muitíssimo grande no privado. Essas pessoas que podem ir ao privado pedir apoio vão e, com isso, recuperam, estão em melhores condições de trabalhar e, como tal, têm melhores condições de vida, porque podem ter mais sucesso profissionalmente. Podem ter, consequentemente, mais recursos financeiros e, portanto, viverem melhor e com mais bem estar. Por outro lado, as pessoas que estão em situações de maior dificuldade financeira e que não têm essa possibilidade, vão prolongar a sua situação porque estão em dificuldade, numa posição de maior vulnerabilidade, tomam piores decisões e estão emocionalmente frágeis. Devido a esses problemas emocionais, por vezes, tomam piores decisões porque é sabido que há uma correlação entre os erros de tomadas de decisão e o estado emocional em que a pessoa está. Sabe-se que há uma deterioração intelectual, por vezes, devido a problemas de saúde mental. Isto é algo que não é invertido nas pessoas, não se inverte a tendência. Não se previne que o problema não evolua para coisas mais graves.
O problema é que essas pessoas não só estão numa situação, neste momento, pior e de maior exclusão — numa situação mais desfavorável sócio e economicamente — como vão ficar piores a seguir porque não têm o acesso que os outros têm para poder melhorar. Mas há uma outra situação ainda mais perniciosa e que é grave, é que o único acesso que têm, é um acesso que não é potenciador de autonomia. Quanto muito, é-lhes receitada uma medicação que vai funcionando ou vai ajudando a manter a pessoa à tona enquanto a medicação dura, e, depois, vão-se aumentado a doses e isso aumenta a dependência, não aumenta a autonomia. Para termos pessoas mais autónomas e mais capazes, temos de as desenvolver. Não se desenvolvem pessoas à custa de drogas, desenvolvem-se pessoas a custa do trabalho de uma intervenção psicológica que apoie as pessoas a ultrapassarem os seus problemas e a desenvolverem as suas competências. Ajudá-las a tornarem-se mais resilientes para que, no futuro, não precisem mais desse apoio. Esta autonomização é essencial e constitui uma grande diferença face ao modelo biomédico que também tem o seu objectivo, mas que não tem as mesmas ferramentas. O efeito da ferramenta clínica para muitas destas situações só se mantém enquanto dura a própria medicação.
Também iria tocar na questão da medicação de ansiolíticos por parte de médicos de família sem acompanhamento psicológico. É um problema já conhecido, assim como a própria automedicação.
Sim. Portugal tem números assustadores nesta matéria. Quer dizer, há várias causas, mas uma delas é o facto de não haver alternativa. As pessoas, quando conseguem chegar ao seu médico de família, a única resposta que este tem para dar é a medicação, porque não existe um número de psicólogos suficiente. As portas de entrada para o médico de família são os centros de saúde, portanto, teria de indicar a pessoa para um psicólogo. O que é que acontece? Só nas situações mais graves é que, eventualmente, vai acabar por indicar directamente para a psiquiatria do centro hospitalar, até, mas não ali, no centro de saúde. Isto porque, no centro de saúde, a intervenção que deveria acontecer seria a intervenção psicológica, uma intervenção psicológica necessariamente com uma natureza de curta duração promotora, lá está, da recuperação rápida da pessoa, da prevenção da doença mais grave e, portanto, mais autonomizada. É isso que não existe. Enquanto não existir, vai ser difícil para nós, de uma forma real, alterarmos os números dos psicofármacos em Portugal.
Consegue-me dizer de que forma, durante todo este tempo de pandemia, se constatou o aumento da procura de psicólogos? Houve, realmente, esse aumento de pedidos de ajuda psicológica?
Sim, sim. Os sinais que nos vão chegando, as informações que nos vão chegando por profissionais, de uma forma geral, é que, no sector privado, se sente um aumento significativo da procura dos serviços prestados pelos psicólogos, claramente.
E como ficaram os casos que já estavam a ter acompanhamento antes da pandemia? Conseguiu-se salvaguardar, de alguma forma, esse acompanhamento?
Numa primeira fase, no geral, existiu uma capacidade de fazer um acompanhamento à distância dos casos. Isso, na maior parte dos casos, ainda continua a acontecer com as pessoas que estavam a ser acompanhadas, mas que aceitaram, faço esta ressalva, ter um acompanhamento telefónico. Só agora, mais recentemente, é que começa a haver a possibilidade, no SNS, de haver um acompanhamento com videoconferência mas, ainda, com muitas limitações de meios — às vezes, por falta de equipamentos, continua a não ser possível fazer as consultas utilizando o sistema videoconferência. Continua a ser possível por telefone e, muitas vezes em que tal aconteceu nas várias fases da pandemia, foi com os próprios telemóveis dos profissionais, com trabalho feito, desta forma, em casa. Pronto, foi o possível. A verdade, neste momento, é que já há um outro problema, as pessoas que querem aceder ao sistema pela primeira vez — nomeadamente, se estivermos a falar de crianças e jovens, o que torna difícil fazer uma primeira intervenção que seja à distância sem ser presencial — esta pandemia já está a agravar muito os tempos de espera. Há serviços que tinham dois a três meses de espera para uma determinada consulta e, neste momento, já passa de um ano. Ou seja, significa que pararam naquela altura e, como tal, deixaram de ter condições, desde a pandemia, para terem as primeiras intervenções. Consequentemente, as listas estão a acumular.
E como olha para esse aumento expressivo de procura? Poderá ser explicado, só, pelo factor pandemia, ou já existiriam problemas endémicos na nossa sociedade que se vieram a gravar pela realidade dos confinamentos?
Há uma confluência de factores. Não é uma situação causada por um só factor. Primeiro, é preciso ser muito claro nisto. Antes da pandemia, a situação era grave. A situação — os problemas existentes de saúde mental em Portugal — já se caracterizava por ser grave, devido à dificuldade de acesso por parte das pessoas que precisavam de apoio. Já era grave antes, porque já tínhamos, ao nível da depressão, os números mais elevados na Europa. O consumo de psicofármacos já era um problema muito maior em Portugal do que em outros países, e isto antes da pandemia. Depois, já tínhamos igualmente, um problema de literacia nesta área, em Portugal. Falo da literacia de saúde, literacia de saúde psicológica e, portanto, isso não melhoraria num ápice. Depois, como disse há pouco, a situação socioeconómica é um determinante social, ou seja, é uma causa de origem social de problemas na saúde mental — quantas mais dificuldades socioeconómicas existirem na população, maior o número de problemas psicológicos. Portanto, com a pandemia, isto agravou-se mas, independentemente de também ter aumentado a visibilidade, já vinha a crescer. Outro factor foi o aumento da visibilidade, o aumento da importância dada pela sociedade aos cuidados da saúde psicológica, não só da saúde física. Portanto, esta confluência de factores acaba por promover o aumento da procura.
Falou em iliteracia. Em que consiste essa iliteracia? Saber como procurar ajuda nos sítios certos?
Também existe, mas isso não é a única coisa, nem talvez seja a principal. Mas é um problema que ainda existe, sim. Repare que isso acontece, por vezes, em outras áreas da medicina, quando mais com a psicologia que é mais recente do ponto de vista científico e profissional. Mas não creio, porém, que isso seja um principal problema. Isso também acontece no sentido em que ,às vezes, se procura apoio em profissionais que não têm qualificações para dar apoio, mas isso é muito fácil. Trata-se de um problema psicológico? É intervenção psicológica? Bom, então o profissional de referência chama-se psicólogo, não há outro. Depois, existem outros profissionais que são complementados. Se estivermos a falar de perturbações mentais, de intervenções psicofarmacológicas, por exemplo, situações mais graves em que a intervenção junto dos profissionais biomédicos é necessária, claro que sim, claro que sim. Mas o profissional de referência, quando se trabalha em saúde, no seio das equipas multidisciplinares — não é um trabalho isolado, é um trabalho em complemento com assistentes sociais, com médicos, com psiquiatras, com enfermeiros —, mas no seio desse trabalho multidisciplinar, o profissional de referência para a intervenção psicológica, como o próprio nome indica, chama-se psicólogo. Há que ser claro relativamente a isto. As pessoas, se têm um problema, o profissional é o psicólogo e, como tal, devem verificar no directório que a ordem tem se se trata, de facto, de um psicólogo e não é alguém que diz ser mas que depois não é. Podem ir, portanto, à Internet e, com esse directório, conseguem identificar se é um profissional em condições de poder consultar. Esse é um problema que tem essa solução. Quanta mais literacia houver, portanto, nesta área, mais as pessoas saberão identificar os sinais de alerta e por aí em diante. Por isso, a ordem também tem criado muitos materiais, muitos canais de informação para se fazer chegar mais rapidamente, às pessoas, conhecimento que permita contribuir para a redução da iliteracia.
A informação, só por si, não reduz a iliteracia. A literacia implica a compreensão da informação por isso, muitas vezes, significa que tem de haver mais do que, simplesmente, informação. Tem de haver um trabalho de apoio à pessoa na compreensão da informação ou, então, formas de apoiar a pessoa, à distância, no entendimento da informação. Caso contrário, a informação, só por si, não vai permitir coisa nenhuma. É um erro que se comete ainda, por vezes — julgar que se combate a iliteracia dando, apenas, informação. Não se trata de dar informação, trata-se de trabalhar a informação de forma a auxiliar a pessoa na compreensão dessa informação. Se isso acontecer, lá está, a lógica é sempre essa, a autonomização da pessoa. Repare, já deve ter percebido que me refiro sempre à pessoa, não me refiro ao doente, refiro-me à pessoa. Trata-se sempre de uma pessoa, não se trata, necessariamente, de um doente, trata-se de uma pessoa. O que nós precisamos, por isso, é deste trabalho claro de informar as pessoas, de modo a haver um espaço onde possam procurar informação e, rapidamente, perceber quem são os profissionais habilitados.
Precisamos de outra coisa, porém, precisamos que as pessoas — e isso tem vindo a melhorar — tomem uma maior consciência da importância que é cuidar da nossa saúde mental, da importância que é prevenir o aparecimento de problemas psicológicos e prevenirmos que se agravem e se tornem perturbações mentais. Isso tem vindo a melhorar, graças a uma maior visibilidade destes assuntos que a pandemia proporcionou. É necessário que os psicólogos actuem logo no início e se aposte na promoção da saúde. Alguém que esteja com um problema que derive de uma crise de vida ou de uma situação de ansiedade aguda, por exemplo, causada pela crise, isso não é uma perturbação mental, pode ser um problema psicológico de reação a uma situação que nós estamos a viver. O que acontece é que, por vezes, nós não somos capazes, sozinhos, de lidar com essa situação e, então, podemos precisar de apoio profissional, que é o psicólogo. O psicólogo servirá, como profissional que é, para nos ajudar a encontrar estratégias, encontrar os nossos recursos, as nossas competências em resposta ao nosso problema. Servirá, portanto, para servir de apoio nessa descoberta, nessa resposta de modo a que nós possamos, por nós próprios, perante o que estamos a sentir e perante o que estamos a pensar, agir de forma independente se voltar a acontecer a mesma situação. Isso é um trabalho essencial e é um trabalho que só um psicólogo pode fazer.
No primeiro confinamento, vários estudos revelaram que os jovens adultos foram os que mais sofreram a nível psicológico. Neste segundo confinamento, já há outros estudos que corroboram, mais uma vez, esses resultados e enfatizam que esse impacto negativo já está a chegar ou poderá chegar muito brevemente, aos adolescentes e à infância. Como olha para estes estudos e para os seus resultados?
Quanto à questão de quem é mais afectado ou não, acho que a única resposta com menos probabilidades de vir a ser contrariada no futuro, é que as pessoas mais afectadas são aquelas que são mais vulneráveis. Independentemente da idade e do sexo, as pessoas que estão mais vulneráveis, por qualquer razão, são as pessoas que sofrerarão e sofrem mais neste momento. Serão, consequentemente, as mais afectadas ao nível de um maior impacto psicológico desta crise. Já deveríamos estar a preparar o que chamou um “plano estratégico geral”, mas com coisas muito concretas para se fazerem na prática. Algo que fosse dirigido a recuperar, por um lado, — e, de facto, é curioso porque o que vou de dizer pode ser visto como uma redundância com algo que lhe possa ser familiar — mas sim, devíamos ter um plano para recuperar essas pessoas mais afectadas e um plano para tornar mais resilientes aquelas que ainda não foram muito afectadas. O que pode fazer lembrar a existência de um plano qualquer com este nome — o “plano de recuperação e resiliência”, não é?
O “plano de recuperação e resiliência” não tem foco nenhum na resiliência, pelo menos nesta perspectiva. Ou seja, no que diz respeito à resiliência, no sentido de capacitar as pessoas nesta dimensão, julgo que fica aquém. Estamos a falar das pessoas, não estou a falar de outros aspectos da governação, mas, no que toca às pessoas, encontro pouco que tenha que ver com o desenvolvimento das pessoas e das suas competências que não tenham que ver com as áreas técnico-científicas — que é aquilo que vem muito espelhado no documento — quando o que torna as pessoas mais resilientes são aquelas que estão mais preparadas para lidar, particularmente agora, com competências de resolução de problemas, pensamento analítico, expressão emocional e trabalho em equipa, que são quatro exemplos de competências que até o próprio fórum económico mundial, repare — não é, propriamente, a entidade de referência em matéria de psicologia ou saúde psicológica ou de outros aspectos desta área — mas até o próprio Fórum Económico Mundial já alertou, por um lado, para a necessidade de se dar muita mais atenção à área da saúde mental nesta perspectiva da promoção e prevenção não só na doença e, por outro lado, estas competências de que dei agora o exemplo, são quatro das 15 competências que o Fórum Económico Mundial projecta que venham a ser as mais importantes e determinantes no desenvolvimento socio-económico do mundo, até 2025. Ora, não estamos a falar — aliás, se formos ver quais são as competências, salvo erro, 11 dessas 15 competências são competências que se encaixam, vulgarmente, no que as pessoas chamam, às vezes, soft skills (prefiro chamar competências profissionais) — mas são coisas como estas de que estamos a falar. Não são as competências que, por vezes, são mais viradas para as áreas tecnológicas, a informática, não. Essas também aparecem, são as tais outras para compor as 15, mas 11 são destas que têm que ver com o ser pessoa e, isso, continua-nos a passar ao lado.
Há muita pouca sensibilidade de quem nos dirige para conseguir ter uma visão estratégica que esteja assente nas pessoas, ao ponto de olhar para isto nesta perspectiva. Queremos uma economia pujante? Queremos pessoas competentes nas áreas nucleares? São a tecnologia, não, antes disso as pessoas têm de ser capazes de aprender, as pessoas têm de ser capazes de se sentirem emocionalmente bem para poderem desenvolver o seu trabalho e aprendizagem. Para isso, as competências necessárias são as deste tipo que referi — capacidade de expressão emocional, comunicação interpessoal. Isto é muito mais importante e continua à margem dos aspectos centrais das políticas que estão a ser projectadas para a recuperação e resiliência de um país. Não vai haver economia nenhuma recuperada, rapidamente, se as pessoas não estiverem em condições de ajudar a fazer isso. A economia são as pessoas, são as pessoas que fazem as empresas, não há empresas sem pessoas, o capital são pessoas, alguém faz o trabalho, quem toma as decisões são pessoas, quem compra coisas às empresas são pessoas, quem vende são pessoas, não há outra forma de contornar esta situação e continuamos a não olhar para isso.
Então, ainda não lhe foram dadas indicações de um aumento dos psicólogos no SNS, nem de uma actuação estratégica para a resolução dos pontos que focou.
Não vejo isso a acontecer, pelo menos na dimensão que as pessoas precisam e que, estrategicamente, poderia beneficiar, de forma sustentável, o país. Mas não só o país, porque não acho que seja um problema só de Portugal, mas só que há países que conseguiram fazer mais nesta matéria e outros conseguiram fazer menos. Quanto a nós, temos como um bom exemplo, por exemplo, o investimento que se tem feito nas escolas nos últimos anos. Somos um bom exemplo em termos de investimento nesta área. Isso é um bom exemplo, mas é um exemplo que necessita de garantir os recursos necessários para continuar. Não adianta nada, por exemplo, este ano entrarem 400 psicólogos ou mais de 400 para as escolas se, para o ano, saírem esses 400 psicólogos. Isto é um esforço que tem de ser continuado. O trabalho na educação e na intervenção precoce, no qual temos sido um bom exemplo, é um trabalho significativo, mas é um trabalho que exige continuidade.
Até porque os psicólogos vão ser necessários nas escolas quando estas reabrirem na totalidade.
Sim, até porque este número foi muito importante. Volto a referir que já era um número necessário, mais uma vez, antes da crise. Era preciso porque os rácios eram, relativamente, baixos e o aumento era, já, necessário. Há pontos positivos daquilo que tem sido a evolução, mas há pontos que ainda estão muito aquém. Os pontos positivos são o facto de se ter criado a tal linha de acompanhamento psicológico do SNS 24 e os números de crescimento, o papel e o reforço do papel do psicólogos nas escolas públicas — mais uma vez muito importante. Outro aspecto positivo é que as empresas estão a procurar mais psicólogos, e estão a reconhecer que há uma diferença entre contratar psicólogos ou contratar outros profissionais que, às vezes, estão a fazer de conta que têm muito jeito para as pessoas (os coachs desta vida), mas não. Aí, acho que está a haver uma mudança, está a haver uma maior procura de coisas sérias com maior evidência científica, de um trabalho com gente preparada.
Depois, há um lado mais negativo disto que é, por um lado, garantir que, por exemplo, neste trabalho ao nível das empresas, as empresas consigam apostar neste trabalho numa lógica do desenvolvimento organizacional, não numa lógica também remediativa, apenas clínica. Ou seja, uma empresa comprar pacotes de consulta, mas não mexer nada nas práticas organizacionais que causam os problemas que levam às consultas. Isto é algo que ainda tem de mudar muito mais. Outro aspecto negativo é o facto de não se vislumbrar um crescimento significativo e sustentável, que se mantenha no tempo, do número de psicólogos no Serviço Nacional de Saúde, particularmente nos centros de saúde.
Uma questão interessante. Como é que olha para estes novos coachs , muito em voga e impulsionados pela comunicação social e redes sociais?
Espero que isso contribua para que mais pessoas procurem o apoio de profissionais credíveis e menos aqueles que podem ser, até, perniciosos para a saúde mental das pessoas. Mas eu não tenho informação, não tenho dados que me permitam dizer que isso está a acontecer. O que espero é que esta maior visibilidade e informação venha a contribuir, também, para que quem decide, tome melhores decisões relativamente a isto. Acho inadmissível, há que dizer isto, existirem escolas de negócios “xpto” que optam por contratar para as suas pós-graduações de gestão, para falar na área das pessoas, na área humana, gente que vem dos mais diferentes campos de actuação que, depois, são os tais coachs, e porquê? Porque, na verdade, não se olha, verdadeiramente, para a competência no sentido científico do termo e, muitas vezes, acaba-se por optar por pessoas que, até, podem perceber muito das suas áreas de conhecimento de base — às vezes, vêm da economia, do direito, da gestão — podem ser muito competentes nestas áreas, mas, pelo facto de serem bons comunicadores e muito convincentes naquilo que dizem e terem decorado um conjunto de chavões sobre como é que as pessoas funcionam, não passam, por isso, a ser minimamente competentes sobre como é que as pessoas se comportam. Não passam a ser especialistas acerca das dimensões das pessoas ao nível dos processos mentais, nem tampouco mais ao menos. Dizem umas coisas, é-lhes dada a chancela de cobertura por parte destas instituições, sabe-se lá porquê e, ainda por cima, distorcem as mensagens que chegam aos decisores das organizações. Se são estas as pessoas que estão a falar para os decisores e gestores das empresas deste país, o resultado, depois, não pode ser brilhante.
Quais serão, a ser ver, os campos de actuação primordiais num pós-pandemia, para se minimizarem as consequências? E quais as estratégias que necessitam de ser trabalhadas a partir de agora?
Acho que a primeira das coisas a fazer é preparar respostas, ao nível da comunidade escolar, para que aqueles que estão, de alguma maneira, mais prejudicados nas suas aprendizagens e no seu desenvolvimento sócio-emocional por via da pandemia. Depois auxiliar, muito especificamente, aqueles que já tinham vulnerabilidades prévias, sejam vulnerabilidades ligadas ao seu desenvolvimento, sejam vulnerabilidade ligadas à realidade socio-económica, seja pelo facto de estarem já sinalizados como crianças ou jovens em risco ou em perigo. É necessário haver planos preparados para apoiar a sua recuperação, a prevenção do agravamento das suas situações. Tem de se criar, também, a garantia da redução do alargamento do fosso entre os que são mais sócio e economicamente favorecidos e aqueles que têm menos oportunidades e que, com esta crise, terão menos ainda se não lhes for dada a mão com o devido apoio — a redução desse impacto. Julgo que esta é uma das prioridades que temos de ter. Temos que preparar esta situação muito bem. Outra prioridade será a de olhar para este conjunto significativo de pessoas, que já perdeu o seu trabalho ou virá a perder e, como tal, conseguirmos fazer algo que até hoje ainda não conseguimos fazer que é criar, em conjunto, uma estratégia de qualificação que até está prevista e existe uma estratégia de qualificação, aparentemente, no plano de resiliência. Mas, no conjunto dessa estratégia, falta o que há pouco disse, falta uma estratégia que apoie o desenvolvimento pessoal destas pessoas, de modo a que elas sejam mais capazes de fazer uma gestão das suas competências e das suas carreiras. Ou seja, é importante que as pessoas que vão ter de se adaptar a fazer outro tipo de actividades consigam fazer isso.
Eu acho que há muita pouca capacidade de descentração quando se está a elaborar estas medidas públicas ou estes planos e, como tal, não se percebe que alguém que perde ou tem uma perda grande, do ponto de vista dos seus recursos para viver, está afectado nas sua capacidade de tomada de decisão e, portanto, mais dificilmente consegue olhar para as oportunidades e consegue perceber que pode construir um novo projecto de vida ou que a sua vida pode ter outros caminhos. É muito mais difícil, quando alguém cai, é muito mais difícil levantar-se e, portanto, não basta querer. Não adianta nada ter aqueles discursos que, infelizmente, às vezes, aparecem, um discurso de empreendedor ligado aos fortes e aos fracos, “temos que ser fortes, levantar a cabeça e ir em frente”, isso não ajuda. Não ajuda, porque todos nós temos as nossas vulnerabilidades, podemos escondê-las mais ou menos, olhar para elas mais de frente ou não, mas todos nós temos e, em alguns momentos da nossa vida, a maior parte de nós tem trambolhões. E quem tem trambolhões e pensar um bocadinho sobre eles, sabe que não é fácil – para uns, é mais difícil ultrapassar esses momentos. Se nós não tivermos um plano, se nós não tivermos estruturas preparadas na sociedade para apoiar estas pessoas, nestes momentos, a saírem disto, a serem autónomas outras vez, a sentirem um mínimo de bem estar, a reduzir o sofrimento psicológico, torna-se difícil.
Repare, tive um problema no ombro, provavelmente provocado por má postura, mas tive um problema no ombro, fui ao médico, levei uma infiltração e foi-me recomendado fazer fisioterapia. A infiltração foi para reduzir o sofrimento, reduzir a dor porque, sem a redução da dor, eu não consigo fazer fisioterapia. É a mesma coisa aqui, mal comparando. Se eu não reduzir o sofrimento emocional dessas pessoas, se não as apoiar no desenvolvimento da sua capacidade de expressar o que sentem, de comunicar com os outros, de trabalhar em equipa, de conseguir projectar, conhecerem-se a si próprios, por vezes. Conhecer os pontos fracos, os pontos fortes, que competências têm mais ou menos desenvolvidas, portanto, o que é que podem fazer na utilização das suas competências para poderem sair da situação em que estão. Olhar para o que já foi a utilização que fizeram desses recursos, dessa sua capacidade, no passado, e projectar isso no que pode ser o futuro, no que já foram capazes e irão ser capazes de fazer novamente.
Este tipo de trabalho é crítico. Não adianta nada, por exemplo, no instituto de emprego, limitarem-se a fazer uma espécie de emparelhamento de uma qualquer aplicação informática e, depois, a pessoa desempregada é chamada lá (ou agora pode ser online), e dizem, “tem aqui este trabalho, o senhor tem uma habilitação mínima para isto, vá lá”. Eu, que posso estar deprimido, ou nem preciso estar deprimido, mas estou pura e simplesmente com uma reacção mais depressiva (não tenho de ter uma depressão), como é que vou ser capaz de ir a esta entrevista? Primeiro, qual é a motivação que eu tenho? A motivação que eu tenho é que preciso de ganhar dinheiro para sobreviver porque, entretanto, acaba o subsídio ou qualquer coisa assim, mas que motivação tenho eu? Qual é o significado daquele trabalho para mim? É o que eu quero fazer? Consigo olhar para aquilo como o meu projecto de vida? Consigo olhar para aquilo com esperança de que, depois, consiga fazer o que realmente gostaria? Alguém me apoia neste tipo de trabalho? Isto é essencial. E sem isto, vai ser muito mais difícil, vai demorar muito mais tempo, vai haver muito mais sofrimento e vai custar muito mais dinheiro.
Então, em três pontos essenciais e resumindo, a ajuda dos alunos que já precisariam de apoio a qualquer nível e que, actualmente, se viram sem as suas bases de apoio. Falámos, também, do reforço dos psicólogos no SNS e, igualmente, de uma aliança mais forte entre o mundo empresarial e a psicologia organizacional para se reforçar ou não deixar perecer, por completo, a motivação das pesssoas e, com isso, criarem-se novas estratégias de emprego. Estratégias, essas, que têm de ser vistas em conjunto com psicólogos, mesmo, da área da psicologia organizacional e não com coachs.
Sim, sim, e no caso das empresas eu tenho de acrescentar aqui uma coisa. Acho que vai haver uma tendência, que já é visível, que vai ser essencial para as empresas se quiserem sobreviver. As que vão sobreviver são as que seguirem esta tendência. Como aqui, há muitos anos, as empresas foram contratando, primeiro, engenheiros, depois economistas, depois gestores, advogados, juristas e técnicos de contas, hoje em dia, estão a começar a contratar psicólogos. Acho que essa será uma nova tendência. Se as empresas quiserem sobreviver, vão ter de incluir serviços de psicólogos nos seus quadros ou externamente. De forma mais pontual ou sistemática, dependendo da dimensão, dos ramos de actividade, do número de pessoas, dos problemas que têm de gerir, do desenvolvimento organizacional que tenham de fazer, das mudanças de cultura a que tenham de se adaptar, todas vão precisar do trabalho dos psicólogos, porque são, verdadeiramente, aqueles que conhecem como as pessoas se comportam, como tomam decisões, como percepcionam as coisas. Isso vai ser essencial e dependerá muito da resposta, rapidez e eficácia de recuperação. Acho que as empresas estão a começar a perceber isso e acho que as empresas é que devem dar o exemplo e apostar num recurso que Portugal tem — os psicólogos. Existem muitos psicólogos em Portugal, que não se passe aqui uma mensagem a futuros estudantes do ensino superior que o que está a dar é ir para psicologia porque há muita falta de psicólogos em Portugal. Isso não é verdade. De facto, há muita falta de psicólogos em muitos serviços. Os psicólogos são muito necessários e a sociedade precisa de muitos mais psicólogos a trabalhar, mas, actualmente, não há falta de psicólogos no mercado.
Claro, até porque o desemprego em psicologia tem sido bem expressivo.
Alguns estarão no desemprego — neste momento julgo que estarão menos no desemprego do que há alguns anos — mas não há um verdadeiro problema de falta psicólogos no mercado, o que existe é falta de acesso aos serviços prestados por psicólogos. A questão é que os serviços públicos não têm o número de psicólogos de que necessitam. As empresas ainda não fazem a devida aposta nesta área — que acho que, crescentemente, já está a acontecer. A meu ver, não vai ser uma questão de as empresas serem mais ou menos competitivas porque têm psicólogos, o que vai acontecer é que as empresas vão sobreviver recorrendo aos serviços dos psicólogos porque, senão, muito dificilmente sobreviverão no futuro.
Já estamos mesmo no fim, foi uma conversa bastante abrangente, mas gostaria de alertar para mais alguma questão estrutural que ache que deva ser discutida?
A principal importância dos psicólogos nos serviços de saúde, aqueles que actuam na área clínica, por exemplo. Não me estou a referir, agora, às actividades, aos programas de prevenção ou aos programas de promoção da saúde, estou a referir-me a quem trabalha na área científica. É importante que os psicólogos intervenham, logo, no início da existência de problemas psicológicos que ainda não são perturbações. E é muito importante actuar logo aí e, para tal, é necessário que a pessoas tenham acesso a esse apoio logo no início. Gostava de dizer ainda uma coisa. Para quem ainda possa ter dúvidas acerca da importância dos psicólogos nos centros de saúde, “ah, não vale a pena meter psicólogos nos centros de saúde, porque, depois, as pessoas não vão recorrer.” Bom, as listas de espera, por um lado, não dizem isso e, por outro, estigma no acesso aos serviços de um psicólogo? Acho difícil. 70 mil atendimentos num ano ainda não concluído, ainda não chegou a um ano, pelo serviço de acompanhamento psicológico do SNS 24. Acho que é uma prova cabal de que não há estigma quando há acesso. Se as pessoas tiverem como ter acesso aos serviços dos psicólogos, recorrem, porque a melhor forma de acabar com o estigma é ter acesso.