Francisco Paulino, da SOS Voz Amiga: “A crise é de saúde mental, mas já está a haver uma parte económica”
A Associação SOS Voz Amiga foi criada há 42 anos. Francisco Paulino entrou na associação há 23 anos, esteve vários anos no atendimento, passou para coordenador de voluntários e é o presidente da associação há seis anos. Embora não esteja no atendimento, mantém contacto com as problemáticas com as quais os cerca de 40 voluntários da associação se deparam todos os dias. Ivo Canelas contou com a ajuda da associação para trabalhar o monólogo “Todas as Coisas Maravilhosas”, de Duncan MacMillan, e foi como agradecimento que Ivo Canelas e a H2N direccionaram os fundos do espectáculo de dia 20 de Novembro para a Associação SOS Voz Amiga, por ajudar, nas palavras do actor, “a olhar para isto, não como uma ferida, mas como uma questão que não tem razão alguma para se esconder, nós não pretendemos que seja um sítio de salvação no sentido literal, mas de partilha.” É neste sentido também que partilhamos a entrevista com Francisco Paulino, onde falamos dos tempos que foram e dos tempos que virão.
Entre a realização desta entrevista e a sua publicação, Francisco Paulino informou-nos de que existe um número cada vez maior de contactos de pessoas que estão a passar fome e que têm vergonha ou não sabem onde pedir ajuda. A Associação SOS Voz Amiga irá reunir entidades e contactos para ajudar pessoas com este tipo de carência, que publicaremos também.
Ao longo destes 20 anos, acha que existem diferenças sobre a forma como as pessoas vão percepcionando a sua própria saúde mental?
Para dizer a verdade, a tipologia das chamadas não tem tido muita alteração ao longo dos anos, ainda assim, a alteração mais acentuada é que durante muitos anos, até há 10 anos, praticamente eram apenas mulheres que ligavam, muito naquela linha de cultura que o homem tem de ser forte e não falar daquilo que o faz sofrer. É interessante observar que, nos últimos 10 anos, os homens ligam mais. Não ligam mais do que as mulheres, mas ligam bastante mais. De resto, nós funcionamos como barómetro da economia do país. Sempre que há uma crise, as nossas chamadas aumentam, porque crises económicas representam situações de quebras de rendimentos, falhas de compromissos, desespero, ideias suicidas e por aí fora. Cada vez que há uma crise económica temos mais gente a bater-nos à porta.
Não deixa de ser curioso que nos fale em 10 anos, quando há 10 anos tivemos uma das maiores crises económicas mundiais.
Nós somos uma linha generalista, nós estamos abertos a todo o tipo de situações que nos queiram colocar. Em termos de ideação suicida, normalmente rondam os 5-6% do total de chamadas. Cada vez que há uma crise, como essa que aconteceu, estas sobem bastante, como aconteceu nessa altura e agora ultimamente também. A crise é de saúde mental, mas já está a haver uma parte económica aí a provocar muito sofrimento nas pessoas.
A ideação suicida é mais masculina ou feminina?
Depende da idade, entre os 18 e os 35, que é faixa que mais nos liga com ideação suicida, são mais jovens do sexo feminino que colocam situações. Sabemos que nos casos consumados são mais os homens que têm mais “êxito”. Em termos de chamadas, a faixa etária que mais nos liga é entre os 18 e os 35.
Durante estes últimos meses, que calculo que tenham sido rigorosos ao nível da saúde mental, precisamente pelos problemas económicos que surgem, de que forma é SOS Voz Amiga consegue dar resposta?
Isto é bastante desgastante do ponto de vista emocional. Em Março não se notou muito, porque foi o primeiro mês de pandemia e as pessoas ainda estavam na expectativa de que isto ia passar. A partir de Abril, subiu exponencialmente. Estamos a atender uma média de 1000 chamadas por mês quando daí para trás a média era de 600. Mas há um outro pormenor, estas 1000 seriam muitas mais se tivéssemos mais voluntários. Nós até temos um grupo razoável de voluntários, são quase 40, mas o desgaste emocional de algumas chamadas, não de todas, obrigam que um voluntário possa fazer apenas três ou quatro sessões ou atendimentos de serviço por mês. Cada turno tem quatro horas, temos um máximo de 16 horas, e [o voluntário] precisa de intervalar e de ter acompanhamento por parte das psicólogas para conseguir libertar-se do desconforto que algumas chamadas deixam. De vez em quando há abandonos, há pausas, o número de voluntários baixa, e não conseguimos dar resposta a tantas chamadas.
O atendimento é todo feito por voluntários?
Somos todos voluntários, desde a direção ao atendimento, os únicos que são contratados são as duas psicólogas que dão apoio ao atendimento. O resto são pessoas generosas que roubam tempo à família e à profissão. Mas isto também é gratificante, não é só desgaste. Senão não valia a pena cá andarmos, ninguém anda por aí para se desgastar eternamente. Já imaginou o que é atender alguém em choro compulsivo e daí a 15 ou 20 minutos a pessoa está calma e tranquila e ganhou forças para enfrentar o que quer que seja. Dá-nos vontade de continuar. Isto para não falar noutras mais complicadas. Nós vamos ter uma formação agora de mais 17 voluntários, mas é uma formação que é demorada por dois motivos. Primeiro, como somos voluntários, não podemos disponibilizar aquele horários que fariam com que a formação acontecesse mais rápido, depois é uma formação específica. Lidamos com pessoas muito fragilizadas e por muito boa vontade que o voluntário tenha, tem de passar por algumas etapas até estar preparado para lidar com estas situações. Antes de Março não teremos este grupo a atender.
A peça “Todas as coisas maravilhosas”, com Ivo Canelas, é incisiva e fracturante também, e pode eventualmente ajudar aqueles que têm uma certa hesitação em procurar ajuda…
Não é fácil. Uma das características do nosso telefone é as chamadas funcionarem de uma forma confidencial e em anonimato. Tanto de quem liga como do voluntário. Fomo-nos apercebendo ao longo dos anos que o anonimato faz com que as pessoas falem mais à vontade com um estranho do que com os amigos ou familiares. Existe uma dificuldade em assumir o próprio sofrimento. E sentem-se muito mais à vontade falando connosco porque é uma chamada em que ninguém é identificado, nunca nos vamos encontrar, mesmo que nos cruzemos na rua, não sabemos que aquela pessoa nos ligou há um ano ou dois e isso facilita a chamada. Essa é uma das componentes em que nós acreditamos. Pelo anonimato, pela confidencialidade, há coisas que nem ao psiquiatra contam.
Acha que é importante tocarmos na ferida repetidamente?
De que maneira. E cada vez é mais importante falarmos de saúde mental. Por um lado, há um estigma enorme porque muitas pessoas com depressão ainda são olhadas como preguiçosas. A pessoa que está em sofrimento e ouve uma coisa destes ainda fica pior. Há que falar cada vez mais nisto. Pode ser que agora a saúde mental, que tem sido maltratada por sucessivos governos, tenha mais importância. Existe um plano nacional para a saúde mental que foi criado em 2006 e que era muito ambicioso, mas por isto e por aquilo, e normalmente por manifesta má vontade dos políticos, nunca foi aplicado. Quanto mais falarmos nisto, mais pressão fazemos sobre aqueles que podem decidir. A saúde mental tem de ser olhada de outra maneira. E esta pandemia que estamos a atravessar vai fazer muito sangue. As pessoas que já sofrem de alguma forma, estão piores. Nós percebemos isso por telefone, temos um número considerável de pessoas que liga há vários anos, mas o que temos notado é que estas pessoas, além do discurso repetitivo, trazem uma carga de ansiedade tremenda provocada por toda esta situação que estamos a viver.
Antes da pandemia já se falava na depressão como a doença do século, agora ganha outra dimensão.
E cada vez mais, posso dizer que na nossa linha, a maior parte das chamadas, envolve situações de saúde mental. Com a depressão e ansiedade à cabeça.
Não é só o estar triste e precisar de falar?
Não, é tudo associado. Anteriormente, antes desta situação de pandemia, a maior parte das chamadas tinha que ver com a solidão. Por telefone, sempre desbloqueia um bocado, há um contacto e a maior parte das chamadas era sobre solidão. Agora não. Ainda são bastantes, mas a parte da saúde mental está a aumentar cada vez mais cada vez mais em termos de apelos.
Nós temos uma grande população idosa e que sabemos sofrer de solidão crónica. Também se verifica nos contactos?
Sim, principalmente as mulheres e à medida que a idade avança. Com menos de 18 anos não temos praticamente ninguém a falar de solidão. Dos 18 aos 35 já aparece, depois vai subindo, e com mais de 65 é exponencial em termos femininos e muito pouco em termos masculinos. Em termos de solidão e de idade, muitas mulheres acima dos 65 e muitos poucos homens. A nossa preocupação é falarmos com as pessoas. Tivemos uma senhora idosa com mais de 70 anos, que ligava quase todas as noites por volta das 10 da noite, só porque vivia sozinha e ia deitar-se e queria ter alguém a quem dizer “até amanhã”. A solidão, por arrasto, pode chegar ao caminho final. Uma solidão que não tem solução cria tristeza, pode ir à depressão. Uma pessoa sente-se abandonada, sente-se alguém que vive no meio dos outros mas abandonada, é de uma tristeza enorme.
O atendimento da Associação SOS Voz Amiga é diário, das 16 às 24 horas, é gratuito e confidencial. Os números de apoio são: 213 544 545 – 912 802 669 – 963 524 660. Para mais informações, para inscrição como voluntário ou para donativos, consultem aqui.