Futuro do Jornalismo? Parar de financiar os negócios do costume
Propostas Fumaça-Divergente.
Após o anúncio do Governo, feito em abril, sobre a compra antecipada de publicidade institucional em órgãos de comunicação social, no valor de 15 milhões de euros, o Fumaça e a Divergente, que partilham a redacção e um modelo de jornalismo de investigação, feito com profundidade, tempo para pensar e sem publicidade, pediram uma audiência com a Ministra da Cultura, Graça Fonseca e com o secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média (SECAM), Nuno Artur Silva. Após várias trocas de email, acordou-se que o encontro se realizaria com o SECAM, que tem a tutela da Comunicação Social, e o mesmo ficou agendado para dia 7 de maio de 2020, pelas 15h, através de videochamada.
Na reunião, que durou cerca de uma hora e 45 minutos, estiveram presentes o SECAM e o assessor, José Machado, da parte do Governo; Nuno Viegas, Pedro Miguel Santos e Ricardo Esteves Ribeiro, pelo Fumaça; Diogo Cardoso e Sofia da Palma Rodrigues, pela Divergente.
Entre outras preocupações, expusemos o seguinte:
- Que a medida ajuda apenas órgãos de comunicação social (OCS) que tenham o seu “modelo de negócio” assente na publicidade. Entendemos que a crise do jornalismo é, também, a crise de um modelo de negócio que se apoia na publicidade e que, como temos presenciado nos últimos anos, não tem ajudado a fazer melhor jornalismo;
- A medida não é inclusiva, deixando de fora todos os media independentes que não tenham como base um modelo de negócio assente na publicidade;
- É uma medida que apoia os órgãos de comunicação social e não os jornalistas;
- Os apoios anunciados podem ajudar a resolver problemas pontuais, mas não as necessidades estruturais das organizações que fazem jornalismo;
As nossas visões sobre qual deverá ser o papel do Estado na sua relação com a Comunicação Social não são novas. Na conferência “Financiamento dos Média”, organizada pelo Sindicato dos Jornalistas na Cidadela de Cascais, nos dias 2 e 3 de dezembro de 2019, que contou quer com a presença do secretário de Estado Nuno Artur Silva e do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, Ricardo Esteves Ribeiro, jornalista do Fumaça, deixou isso claro, numa posição que ambas as redações partilham e que aqui recordamos:
“(…) Não será com certeza o Estado a resolver por si o problema do jornalismo, mas terá de ser parte da solução. Se rejeitarmos à partida esta possibilidade, não chegaremos sequer a discutir como desenhar regras que impeçam a interferência editorial; como condicionar quem recebe financiamento a oferecer condições dignas aos seus trabalhadores; como garantir que existe transparência nas estruturas que mandam nestes projetos e em como este dinheiro é utilizado; como criar organismos independentes de coordenação e execução destas políticas e como aprender com os erros feitos no passado em instituições com linhas de financiamento público, como os apoios às artes e à cultura da DGArtes, ou os apoios às PMEs do IAPMEI (…) A ideia de que são os cidadãos ou os jornalistas a ter de resolver os problemas de financiamento do jornalismo tem por base o mesmo business as usual que tem moldado a resposta aos grandes problemas das últimas décadas: soluções individuais para problemas globais. Não. Perante uma crise democrática é preciso uma resposta da Democracia: precisamos de outro modelo. Incentivos à leitura, vouchers para cidadãos, assinaturas pagas pelo Estado, incentivos fiscais à compra de jornais, incentivos fiscais aos grupos que detêm os média, entre tantas das propostas apresentadas durante o dia de ontem podem até ter algum efeito – paliativo, sobretudo – mas têm sempre o mesmo fim: a manutenção do mesmo modelo de jornalismo. Um modelo baseado na precarização do trabalho de jornalistas e na procura desenfreada por mais clicks, mantendo a dezena de pessoas que manda na comunicação social deste país um pouco mais segura e confortável fazendo exatamente o mesmo de sempre. Estas são soluções que têm como objetivo resolver o problema do modelo de negócio dos média, e não resolver o problema da sustentabilidade do jornalismo. Mas, como dizia ontem a investigadora Elsa Costa e Silva, nós precisamos de salvar o jornalismo, não as empresas (…)”
Serve esta longa citação como ponto de partida para as propostas que abaixo detalhamos e que apresentámos de forma genérica ao Secretário de Estado. É também importante, para evitar equívocos, salientar que defendemos políticas públicas que apoiem o jornalismo e não o setor da comunicação social lato sensu, que congrega inúmeras formas de se expressar e apresentar às populações, mas não se limita ao jornalismo nem à produção de informação mediada, verificada e feita por profissionais.
Entendemos que a criação de uma secretaria de Estado do Cinema, Audiovisual e Média é uma decisão política com um significado que não pode ser ignorado. Desde os anos 80 do século passado que a estrutura orgânica de um Governo nacional não tinha uma pasta dedicada ao setor, pelo que entendemos a sua existência como o reconhecimento, por parte do atual poder executivo, da necessidade de implementar medidas públicas que o fortaleçam.
Consideramos que o jornalismo é um bem público e deve ser acessível a todas as pessoas. Não o vemos como um negócio. Se assim fosse, daria lucro. E não dá. O modelo baseado em publicidade morreu e não há um único órgão de comunicação social em Portugal que pague o jornalismo que faz com as receitas da “venda” desse jornalismo. O jornalismo paga-se com outras coisas: eventos, parcerias, venda de produtos associados, chamadas de valor acrescentado ou com as receitas provenientes da produção de entretenimento dentro de grupos empresariais que detêm títulos jornalísticos.
Nesse sentido, defendemos que as medidas a tomar devem garantir que os apoios públicos do Estado não financiam a manutenção do status quo mas, antes, canalizam fundos para organizações de produção jornalística cujo fim último não seja o lucro, priorizando a produção de informação por profissionais com condições de trabalho dignas. Assim, propomos:
A) A Criação de uma nova categoria de pessoas colectivas com regime especial de utilidade pública específica para organizações jornalísticas.
À semelhança do que acontece com Instituições Particulares de Solidariedade Social, Organizações Não-Governamentais para o Desenvolvimento, Organizações Não Governamentais das Pessoas com Deficiência, escolas particulares e cooperativas, associações de imigrantes e até de imprensa regional, entre outras, deve ser criado um estatuto específico para entidades jornalísticas coletivas sem fins lucrativos (associações, fundações ou cooperativas). O objetivo é garantir condições de manutenção das estruturas produtivas e dos postos de trabalho.
Além das regalias e benefícios fiscais já consagrados no Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro, e sem prejuízo do disposto nos códigos de cada imposto, na Lei n.º 151/99, de 14 de setembro, e no Estatuto dos Benefícios Fiscais, devem ouvir-se as associações representativas do setor, os sindicatos e comissões de trabalhadores, bem como meios independentes, locais e regionais para a determinação das medidas específicas mais apropriadas ao setor e a cada meio, nomeadamente: sobre a isenção de pagamento de taxas a entidades reguladores (ERC, ANACOM); o pagamento a 100% do Incentivo à Leitura de Publicações Periódicas (conhecido como “Porte Pago”); a sujeição à tarifa aplicável aos consumos domésticos dos contratos de telecomunicações ou, por exemplo, a entrega do pagamento do IVA da publicidade ao Estado apenas quando os valores são recebidos e não quando são faturados, uma vez que há, por vezes, vários meses entre um ato e outro (o que acontece amiúde com entidades públicas).
O estatuto de utilidade pública permitiria ainda a obtenção de financiamento através de mecenato, o que faria com que as organizações pudessem criar estratégias de captação de investimento privado e empresarial, diminuindo ou eliminando a dependência das flutuações do mercado publicitário. A somar a isto, o apoio de pessoas singulares poderia ser dedutível em sede de IRS e, ao mesmo tempo, as organizações jornalísticas poderiam ser elegíveis e beneficiárias para a consignação de 0,5% do IRS na declaração anual dos contribuintes.
À semelhança do que acontece com a RTP1, por exemplo, nada impediria que os média continuassem a vender publicidade ou a procurar outros meios de financiamento.
O acesso ao estatuto deveria ser acompanhado, a bem da transparência, por um contrato de serviço público (a determinar) entre a entidade beneficiária e o Estado.
B) Plano público de reconversão de empresas jornalísticas em organizações em jornalísticas sem fins lucrativos.
Assumindo que as políticas públicas de apoio devem garantir o acesso ao bem público – o jornalismo – o Estado deve criar um plano público de apoio a esse bem. Como hoje este não está sustentado num modelo de negócio lucrativo, deve apostar-se na reconversão de entidades coletivas cujo fim é o lucro para organizações cujo fim não o seja. São inúmeros os planos governamentais de apoio à reconversão/modernização de setores económicos, pelo que esta prática não é nova.
Propõe-se que um dos futuros programas de qualificação profissional e modernização tecnológica dos fundos europeus 2021 – 2027 auxiliem a transformação de empresas jornalísticas em associações, fundações ou cooperativas. A adesão seria voluntária e teria como condição duas premissas:
- a criação/manutenção de postos de trabalho (permitindo absorver centenas de pessoas formadas todos os anos, em todo o país, em licenciaturas e cursos profissionais ligados aos média), garantindo os seus direitos laborais e travando a precariedade no setor;
- a formação profissional dos trabalhadores mais antigos (através de ações de qualificação e atualização profissional focadas na adaptação às evoluções tecnológicas que o setor vive), uma medida especialmente importantes para centenas de meios locais e regionais.
A reconversão daria acesso ao estatuto de utilidade pública.
C) Reativação do Instituto da Comunicação Social
É fundamental que o Estado reative um organismo público capaz de centralizar os apoios públicos a conceder aos órgãos de comunicação social, permitindo uma maior eficiência e transparência. No fundo, uma nova versão do extinto Instituto da Comunicação Social (ICS). Hoje, inúmeros apoios são atribuídos por diferentes entidades – das várias Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, a outros ministérios, como o do Trabalho ou da Economia –, o que não permite avaliar a real subsidiação estatal (ao nível central, regional ou autárquico) de cada órgão de comunicação social. Resulta uma patente falta de transparência, não sendo possível analisar o real peso que o dinheiro público tem em determinadas empresas. Deveria ser público quanto cada órgão recebe em ajudas, sejam estágios do Instituto do Emprego e Formação Profissional, publicidade institucional ou ajudas à modernização tecnológica. Algo parecido com o que o Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas faz com quem recebe ajudas da Política Agrícola Comum.
Defendemos também que este “novo ICS” desenvolva uma ação de atribuição de apoios semelhante aos que a Direção-Geral das Artes (DGArtes) e o Instituto do Cinema e do Audiovisual realizam. Independentemente dos aperfeiçoamentos a fazer e das críticas que anualmente se ouvem aos resultados dos concursos, a verdade é que a razão pela qual foram criados para as artes e cinema segue a mesma lógica que preconizamos acima: apoie-se a produção do que não teria viabilidade seguindo uma lógica meramente comercial e mercantilista. É esse o caso do jornalismo de investigação, do jornalismo local e regional.
Assim, entendemos como fundamentais a criação de duas linhas de apoio distintas:
- a) Bolsas de apoio à produção individual – seguindo, por exemplo, o modelo já criado pelas Bolsas de Investigação Jornalística da Fundação Calouste Gulbenkian. Permitiriam a jornalistas no desemprego, freelancers ou quaisquer outros com ligações a redações, gerirem um projeto de investigação autonomamente. O ICS poderia até promover a criação de uma grande “bolsa nacional” de bolsas, que congregasse as iniciativas de várias fundações privadas e as iniciativas públicas;
- b) Bolsas de apoio à produção de longa duração – seguindo o modelo da DGArtes, apoiar-se-iam as organizações, segundo um caderno de encargos (orçamentos, número de pessoas envolvidas, formatos, datas de publicação) proposto pelos OCS, dos temas e das investigações a desenvolver num determinado espaço de tempo (1 a 3 anos, por exemplo), mediante contrato e o respeito pelos direitos laborais e criação/manutenção de postos de trabalho.
O acesso aos apoios deveria seguir todas as regras de transparência e divulgação públicas, sendo os concursos abertos. As avaliações e resultados seriam da competência de um júri independente, composto por profissionais da área.
D) Atualização urgente da legislação do setor dos média.
É urgente que a SECAM, no uso das suas atribuições legais, promova discussões públicas alargadas e proponha mudanças legislativas para o ecossistema mediático. Há uma confusão de atribuições entre o papel da Entidade Reguladora para a Comunicação Social e o da Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas. A Lei da Imprensa, o Estatuto dos Jornalistas e toda a panóplia de legislação dos média tem de ser atualizada para o século XXI, acompanhando os avanços digitais e permitindo a criatividade e a experimentação, mas deixando muito clara a distinção entre o que é informação e entretenimento; o que é jornalismo; o que são meios que produzem jornalismo; o que são meios de comunicação social; como se qualifica alguém a ser jornalista; o que é desinformação.
As medidas propostas acima devem ser colocadas à discussão pública e são um princípio de conversa. No entanto, estamos certos de que alguma coisa tem de ser feita rapidamente. Consideramos que a missão do Estado não é fazer política pública para alimentar modelos de negócio e de jornalismo gastos, que não garantem o acesso à informação, nem a uma vida democrática sã. A sua obrigação é precisamente a contrária.
As redações do Fumaça e da Divergente
Lisboa, 4 de junho de 2020