“García Márquez. História de Um Deicídio”: uma brilhante carta de amor
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Houve um antes de tudo, um período anterior antes de terminar com um murro que deixou Gabriel Garcia Márquez com um olho negro. Este duelo Perú-Colômbia, em 1976, teve mulher pelo meio, segundo consta. Suspeitas.
O longo texto de amor a um homem e à sua obra, por Mário Vargas Llosa, é monumental.
“García Márquez. História de Um Deicídio” (Quetzal; trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra) é a tese de doutoramento do Nobel da Literatura peruano, apresentada em Madrid.
A obra de Gabo começa na infância. São as histórias da avó, a figura paternal do avô, e as circunstâncias sociais que vão formando a imagética que virá a ser realizada em “Cem Anos de Solidão”, O Outono do Patriarca” ou “Crónica de Uma Morte Anunciada”, entre outros livros.
A análise desde a raiz ao fruto acontece com paciência de Penélope e o carinho de um grande amigo. Vargas Llosa começa exactamente na infância, dá o contexto social e analisa as questões estilísticas do texto.
“À falta de melhor, Aracataca vivia de mitos, de fantasmas, de solidão e de nostalgia. Quase toda a obra literária de García Márqueza é elaborada com esses materiais que foram o alimento da sua infância. Aracataca vivia de recordações quando ele nasceu; as suas ficções viverão das suas recordações de Aracataca. (…) Nos arredores da povoação havia uma quinta de bananeiras que se chamava Macondo. Este será o nome que dará mais tarde à terra imaginária cuja «história» Cem Anos de Solidão relata, do princípio ao fim.”
A intertextualidade é descodificada sem ponta de arrogância. Está lá, clara e sem metalinguagem académica. Até numa tese de doutoramento Vargas Llosa sabe como envolver o leitor numa história bem contada.
As ferramentas utilizadas para clarificar a textualidade em Gabo vão da vertente sociológica, familiar, política, influências literárias, o contexto universitário até à idade adulta. Os anos de pobreza e os empregos ténues e instáveis são difíceis, mas também proveitosos. As oportunidades para escrever e “fazer a mão” vão surgindo até o traço que conhecemos estar formado. Para essa formação, o jornalismo foi essencial. García Márquez trabalhou como jornalista no período designado, pelos sociólogos, como “a primeira onda de violência” na Colômbia. Os diversos trabalhos deram-lhe mundo para além de Barranquilla, e reportagens como “Relato de Um Náufrago” não seriam possíveis sem essa experiência.
No entanto, é na rebelião contra a realidade, contra a divindade, contra a criação de Deus, que se situam os seus romances.
“A base da sua vocação é um sentimento de insatisfação com a vida; cada romance é um deicídio secreto, um assassínio simbólico da realidade.”
Depois de “García Márquez. História de Um Deicídio”, a experiência do leitor das obras do autor colombiano vai ser diferente. Aquelas camadas que até então estavam interditas, por falta de conhecimento, estarão expostas à luz de Vargas Llosa. O leitor ganha com isso, o leitor ganha com a leitura deste livro extraordinário que revela tanto do autor como do tema estudado.
“García Márquez. História de Um Deicídio” é uma longa carta de amor a um autor, a um amigo, à literatura.
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