Geração manteiga?

Às vezes penso, e posso estar enganado, mas ler um livro ou ouvir um disco já não é, como outrora, ou pelo menos não é como as gerações mais antigas pintam, um exercício de introspecção.
Tornou-se, para muitos, um simples passatempo, algo que preenche o nosso dia a dia, mas raramente nos interroga.
O gesto de parar para absorver o significado de uma letra ou mergulhar nas entrelinhas de um parágrafo foi engolido pela espuma dos dias. Será que vivemos numa época em que a distração é preferida à profundidade das coisas?
Temos uma viagem? Colocamos os auscultadores, deixamos que a música nos acompanhe por alguns quilómetros, mas como banda sonora de fundo, não como experiência emocional que mereça tripla atenção.
Com os livros, o fenómeno pode repetir-se, apesar de ser diferente. Procuramos algo leve, que se “barra como manteiga”, fácil de consumir, sem grandes exigências. Lemos algumas páginas, e dias depois já estamos completamente “noutra”.
Não, não é só efeito das redes sociais, porque, em tom comparativo, mesmo na música e nos livros, tendemos a saltar de conteúdo em conteúdo com a mesma superficialidade com que se navega numa rede social. Deixamos de mergulhar, passamos só a molhar os pés.
Segundo dados da Chartmetric (2024), cerca de 35% das músicas no Spotify são ignoradas antes de completarem os primeiros 30 segundos. Há prioridade de playlists em relação a álbuns, o que, por si só, explica um factor óbvio: a primazia dos singles face aos álbuns é natural. Ouvir um álbum do início ao fim já não tem o mesmo simbolismo.
O que é curioso, porque, tal como um livro tem os seus capítulos, um álbum tem as suas músicas, e, se um livro não funciona sem uma parte da história, visto que não daria nexo à narrativa, um álbum também é assim.
A música, e os livros, também mudaram, mas como apelo às novas gerações. Tendem a cumprir certos requisitos-chave para alcançar o suposto sucesso. O problema é que a profundidade desta arte também fica pelo caminho. O ceticismo da arte nunca foi um caminho fácil, nem será, mas disfarçar a mesma em entretenimento, cumprindo requisitos, tira-lhe a piada toda.
É possível voltar a reaprender a ouvir e a ler, não como uma forma de escapar ao dia a dia, mas como apreciação da arte, como quem se senta à mesa com uma história.
Father John Misty, em entrevista ao Público (2017), disse: “A arte existe para resolver a vida. O entretenimento para nos fazer esquecer dela, nem que seja apenas por momentos. Mas é importante estarmos dentro das coisas para termos consciência delas e contribuir para a sua transformação.”
O que antes parecia um esforço para uma geração mais antiga transformou-se em prazer. E percebemos que o problema nunca esteve no conteúdo. Provavelmente, faltava-nos era tempo.
Neste ritmo acelerado em que tudo se quer leve e sem chatices, corremos o risco de nos tornarmos uma geração que consome sem digerir. A tal “geração manteiga”: tudo passa suave, mas nada fica.