“Get Ready for the Bacanais”: uma tragédia grega e um ritual sensorial para se ver com os ouvidos
Nove pessoas em palco atiram para trás os seus cafetãs bege, revelando, por baixo, fatos de festa. São as bacantes, dançando em poses coordenadas para adorar o deus Dionisus, ao som de Beyoncé. A música aumenta gradualmente de volume, tornando-se ensurdecedora, e a dança complexifica-se. Uma voz descreve incessantemente todos os movimentos que ocorrem em palco. O ritmo estonteante envolve-nos no êxtase do ritual, e vemo-lo com os olhos e os ouvidos, sentindo com o corpo todo. Esta é uma das cenas de TzumTzumtzurum Tzum Pose – Get Ready for the Bacanais. A adaptação da tragédia grega “As Bacantes”, de Eurípides, foi criada e apresentada por uma turma de 3º ano da Escola Superior de Teatro e Cinema de 3 a 9 de Julho no Auditório João Mota da ESTC.
Num dos primeiros momentos do espectáculo, um homem e seis mulheres avançam em linha até junto da plateia. Fitam-nos, em silêncio, de postura levantada e braços ao longo do corpo. E, depois, desmontam verbalmente esta tensão: “Tenho cabelos castanhos, compridos, dezassete piercings nas orelhas e um no nariz, uma tatuagem na barriga, várias nas pernas. Visto uma túnica branca, como todas as outras bacantes ao meu lado”, diz uma actriz. Seguem-se os restantes cinco, apresentando-se semi-informalmente. A dado momento, a quantidade de detalhes ressente-se na minha atenção e questiono se toda esta informação não será um pouco excessiva. No entanto, existem variações e pequenas doses de humor que adicionam interesse e, mais tarde, em fascínio, venho a perceber que alguns destes detalhes voltariam a ser citados. As descrições caracterizam, já não só os actores em si, como também as personagens.
Um destes pequenos detalhes é o cabelo de Penteu. Diz Marine, apresentando o colega João Santos: “Ele é o Penteu, tal como eu. Tem uns grandes caracóis e usa um perfume da Schlein. Quando lhe perguntei a que cheirava, ele disse:”, e responde o actor: “Sei lá!”. Também Dionisus é representado por três actores: Inês Gonçalves e Jet Vos apresentam-se a si próprias e a João Ilunga, que se encontra a dançar sozinho no fundo do palco: “tem uns olhos pretos, muito bonitos”. Mais um pequeno detalhe que fica para nos lembrarmos de quem são.
É este actor, que ainda não se tinha aproximado da audiência, que se apresenta na cena que se segue. “Sabem quem eu sou?”, pergunta – uma questão que voltará a ecoar noutras partes da peça. “Sou Dionisus”, diz ele, vestido como se fosse para uma festa, de fones, roupas brilhantes e maquilhagem dourada – e apresenta-se como um Deus que veio à terra, mascarado de homem, para se vingar e não ser esquecido.
Mais tarde, aproxima-se Tirésias – que não nasceu mulher, tornou-se mulher, como dizia Simone de Beauvoir. Tirésias, vestido de vermelho da cabeça aos pés, é representado por Matilde Cancelliere, que nem por um segundo é capaz de perder a minha atenção. Com grande expressividade corporal, vocal e verbal, agarra-nos por completo para contar a sua história, narrando como nasceu homem e se tornou mulher depois de matar uma serpente fêmea, e como consultou um oráculo para saber como voltar a tornar-se homem. Conta como matou a serpente macho para o fazer: “peguei num pau, como estou a fazer agora, e, pum!, que nojo, matei”. No seu monólogo, fala também dos deuses Zeus e Hera, da sua ira, e dos incestos no Olimpo, com os quais “não compactuo, atenção, que nojo; mas já sabem como são os Deuses”. É uma maravilhosa aula de história sobre os mitos gregos reflectida pela sua perspectiva pessoal num carrossel de emoções, numa narrativa que poderia ter continuado pela noite fora sem que se tivesse tornado cansativa.
Tirésias diz então que vai calçar umas botas prateadas, “para as quais estou agora a olhar”, e sai de cena depois de o fazer. Chega então uma das cenas mais impactantes de todo o espectáculo: o momento de o deus Dionisus seduzir e conquistar a terra. As mulheres que nele acreditaram celebram-no num ritual. São as bacantes. Desenhado em duas partes, antes e depois deste monólogo, os cerimoniais são sentidos como um só – fundem-se e fluem como se nunca tivessem parado. “Poses de vasos gregos”, diz uma bacante, à frente, e todas se colocam em pose, em contra-luz. As vozes juntam-se evocando os coros da Grécia Antiga, e uma bateria junta-se, tocada por Dionisus. Na segunda parte retoma-se o mesmo estado de espírito ritualístico e, progressivamente, as mulheres ensinam-nos a sua coreografia: “as pernas juntam-se, depois flectem. Os braços levantam-se ao nível dos ombros. Os cotovelos e os dedos das mãos apontam para o chão, numa posição a que chamamos «Dâbliu»”. E repetem-na, algo como: pernas, flecte, braços, dâbliu, pernas, flecte, braços, dâbliu, enquanto surge, discretamente e cada vez mais evidente, o ritmo e melodia de Beyoncé, “Run The World”. As bacantes, agora sem as túnicas brancas e vestidas com roupas modernas com brilhantes, performam, coordenadas, uma coreografia conjunta cujos padrões se complexificam cada vez mais, explorando também a criatividade individual de cada um em momentos particulares, enquanto ouvimos cantar, de fundo, uma descrição de quase todo e qualquer movimento que ocorre em palco, num ritmo estonteante que nunca pára. “Sara vem à frente, faz uma pose e baza”, ouço pelo meio uma voz, já mesclada na intensidade da música que passa num volume ensurdecedor, para o qual fomos avisados aquando da reserva do bilhete. Dancei, sentada no meu lugar, abanando a cabeça, genuinamente envolvida e imersa nesta intensa e apaixonante celebração sensorial.
O teatro prosseguiu, então, a seu ritmo. Embora as personagens tripartidas por vários actores tornassem a narrativa mais difícil de acompanhar durante a primeira metade da peça, a confusão não foi suficiente para que não pudesse seguir, mais ou menos, a história que me apresentavam. Há cenas mais tranquilas e pausadas, e outras com toques de comédia, também, embora sem nunca perder uma certa seriedade. As personagens contracenam com uma emoção mais doseada. Percebemos que Tirésias e Cadmo querem celebrar Dionisus, mas que o neto de Cadmo, o rei Penteu, se recusa a acreditar no Deus e quer perseguir quem o adora, bem como o próprio deus feito homem. Representado por dois actores com distintas faces brilhantes, com toques prateados, Penteu tem os fartos caracóis de João Santos e o olhar gelado de desejo de vingança de Marine Arradon.
A tragédia grega desenvolve-se, ainda sem tragédia, ainda que nos tenha sido revelado no início um grande spoiler, para que soubéssemos o que nos esperaria. Vemos cenas marcantes, muitas emanando intensidade e sensualidade, como uma dança num varão ou, mais tarde, numa cena mais sombria, um beijo demorado, “na mão, não; na boca”, entre Dionisus e uma bacante (ou Cadmo?), que se agarram mutuamente em desejo. Outras cenas, conforme o enredo avança, sentem-se como mais cruas e selvagens. Uma bacante (Jet Vos), detida pelo rei e o seu guarda (que masca sempre uma pastilha elástica), é interrogada e gozada; mas, apesar de ter o peito desnudo, não transmite vulnerabilidade, mas uma fortaleza inabalável. Existem também cenas que nos levam ao riso – como a morte do Mensageiro, morto a tiro por Penteu, rebolando pelo chão como um futebolista lesionado à procura de uma falta. Grita de dor, levantando a cabeça, e cai. Novamente, grita, erguendo-se e correndo pelo palco; cai, levanta-se, contorce-se, e rebola, caindo sempre novamente; morre e volta à vida em múltiplos e pequenos short bursts,arrastando-se numa morte muito demorada e teatralizada, até muito depois de os tiros se desvanecerem da nossa memória – enquanto Penteu espera, entediado, e finalmente pergunta “Já acabaste?”.
O final aproxima-se e, com ele, o destino e a tragédia antecipados. Novamente surgem cenas inesquecíveis. No momento que Dionisus dialoga com Penteu e se enfrentam, duas actrizes rodam em círculo em “poses de flamenco”, fazendo pequenos apartes que enriquecem a cena, evidenciando as suas acções: “empurro-te”, “viro-te as costas”, “olho-te nos olhos”. Depois, as cenas seguintes trazem uma energia mais sombria. O deus Dionisus prepara-se para levar Penteu para uma armadilha, e o pressentimento de que será morto é inferido não só pelo anúncio que nos foi feito no início da peça, como pela própria energia que se sente em palco. O deus, sério e sombrio, explica, em metáforas discretas, como morrerá Penteu que, por sua vez, com ar ingénuo e tolo, não se apercebe da verdade, antecipando ser mimado e carregado nos braços da mãe.
É vestido, então, com um vestido branco, uma coroa de flores na cabeça, e uma grande capa dourada que ocupa quase todo o palco, que só lhe permite mexer-se se for levantada por outros cinco actores, como acaba por acontecer. Em apoteose, num pedestal, e com o mesmo sorriso ingénuo, Penteu sente-se como um rei e julga disfarçar-se de bacante. E sentimos de novo este êxtase envolvente no rap de duas actrizes que descrevem, minuciosamente, os figurinos que vemos em palco, enquanto o rei desfila, como se se tratasse de um desfile de moda. São também cantadas as centenas de horas que os actores investiram a criar tudo o que se vê, as dificuldades vividas num curso de três anos, e tantas mais coisas que seria impossível de me recordar ou expressar. Recordo o que senti: a diversão, a intensidade, o fascínio, e a música.
O teatro tem então a última grande cena mais intensa: uma dança selvagem e animalesca de Agave (Sara Rio Frio), representando a mãe de Penteu e todas as bacantes numa só pessoa, ao som do rock pesado de Night Crawler, de Judas Priest. Exibindo as mencionadas tatuagens na barriga e nas pernas e o piercing no nariz, semi-nua, gatinha, ajoelha-se, contorce-se no chão, e intensamente dança sozinha em palco durante quase seis minutos, enquanto fumo branco cobre gradualmente a atmosfera. Toda a cena evoca uma sensação de loucura e bestialidade, de Agave e todas as mulheres que, envolvidas pela paixão nos seus rituais a Dionisus, acabam por perder a cabeça e a sensatez. Nos seus movimentos de dança, e na música novamente ensurdecedora, sinto a intensidade da emoção e a inevitabilidade da tragédia.
O teatro traz, então, a concretização do destino que sabíamos avizinhar-se. Em momentos, vemos a mãe carregar nas suas mãos a juba de caracóis de Penteu e encontrar o desespero e o castigo do Deus, percebendo que matou o próprio filho, e sentimos, realmente, o conceito da tragédia grega na nossa pele.
A peça acaba, então, por fechar-se da mesma maneira que, na verdade, começou. As luzes apagam-se, quase todas, para que um foco se dirija a uma cadela preta que usa um laço branco, deitada numa almofada e rodeada de verdejantes plantas; onde esteve durante toda a peça. Alguém aproxima dela um microfone. “Não sei se estou a sonhar, ou acordada”, diz uma voz off, falando por ela. Dá-nos uma mensagem de moral sobre esta peça e celebra o fim deste percurso académico, porque diz estar já “farta de teatro”, e deste em específico, que já viu 30 vezes. E “assim é o desfecho deste drama”.
A cadela é a Luta, cão-guia de um dos três Dionisus – em particular, Inês Gonçalves. A Inês tem deficiência visual, disse-nos, nas apresentações iniciais. A Inês foi guiada pela mão de outro Dionisus três vezes durante o espectáculo e, em todos os outros momentos, guiou-se a si mesma: no duelo com Penteu, com as poses de flamenco; dirigindo-se até nós, sozinha, antes de o levar para o Citéron; e nas suas colocações para todos os lugares do palco. A Inês será, imagino, a personificação de uma das razões pelas quais estes actores, no seu último ano de estudos de Teatro, decidiram fazer esta peça, desta forma.
TzumTzumtzurum Tzum Pose – Get Ready for the Bacanais é um teatro que não discrimina, nem pela negativa nem pela positiva, por ser realmente inclusivo, de raiz. Tipicamente, as peças de teatro não têm audiodescrição e, quando têm, é providenciada através de auscultadores, a pedido, para quem precisa. Aqui, não foi o caso. Numa integração extremamente orgânica, todos podíamos ver e ouvir cada parte, experienciando respeitosamente momentos de silêncio, sem interrupções; mas também percebendo o que se passava em momentos mais movimentados e intensos. Sentíamos de modo muito vívido graças à exploração do impacto emocional não só da imagem como dos sons e da música. Estes enriqueceram a peça em momentos-chave, trazendo quer diversão, quer sobriedade; com êxtases apoteóticos e intensos, em que era impossível não sentir o corpo vibrar, ou com o embalo de uma delicada canção triste. A música teve, assim, um papel principal – e, em conjunto com as coreografias minuciosamente descritas, permitiu-nos viver em pleno a experiência sensorial tão prometida na folha de sala.
E alguém me dizia: “Mas, afinal, eu não ouvi a tal audiodescrição. Não aconteceu?”. Disse-o porque ela esteve lá, de facto, mas parecia fazer parte. E fazia, realmente, parte da peça. Matar a serpente com um pau, como “faço agora”; um duelo com “poses de flamenco” e movimentos anunciados; a descrição dos actores que acrescentou caracterização às personagens; os cabelos encaracolados do rei, parecidos com a juba de um leão, que já tínhamos visto com os olhos e os ouvidos. O intenso e coreografado ritual das Bacantes e o pomposo figurino vestido por Penteu antes da sua morte. Tudo, ou quase tudo, passou pelos nossos olhos e pelos nossos ouvidos. E fez parte integrante da peça, às vezes tornando-se um subtil comic relief, e outras acrescentando uma intensidade estonteante aos momentos musicais. Acima de tudo, enriquecendo-a, e enriquecendo-nos a nós. E fez-nos viver, a todos – pessoas com visão, cegas e com baixa visão – uma experiência verdadeiramente inesquecível.
Intérpretes:
Inês Gonçalves, Luís Ilunga, Jet Vos, Matilde Cancelliere, João Santos, Marine Arradon, Sara Rio Frio, Rita DF, Clara Lourenço, Inês Gonçalves, Luís Ilunga, Jet Vos, João Santos, Marine Arradon, Matilde Cancelliere, Rita DF, Sara Rio Frio.