“Gigaton”: a luz e a raiva de Pearl Jam em tempos de loucura

por Gabriel Margarido Pais,    27 Março, 2020
“Gigaton”: a luz e a raiva de Pearl Jam em tempos de loucura
Capa do álbum
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Em tempos estranhos, com uma pandemia que ameaça a saúde e a estabilidade de virtualmente todos os povos do mundo, aliada aos problemas que assolam os Estados Unidos da América — o alpendre dos Pearl Jam — há já bastante tempo, seria fácil para a banda de Eddie Vedder sair do hiato de sete anos, em que não produziu álbuns de armas em punho e punhos no ar, com um expectável álbum de revolta política. Seria a saída fácil e óbvia, especialmente no ano em que as eleições americanas que se aproximam podem moldar o futuro do mundo ocidental. Não é exatamente com isso que Gigaton nos presenteia. É algo mais.

Esperámos muitos anos para um álbum como este vindo da banda de Seattle, onde o combustível (mas não o destino) é a velocidade da frustração política e a extrema e imbatível determinação. Gigaton é um poço de energia, uma refeição temperada e matizada, cozinhada a lume brando ao longo de vários meses com a ajuda de algumas caras novas. Para trás fica a última tentativa dos Pearl Jam de se adaptarem a um novo ciclo da vida — a qual só posso descrever como “punk fácil e aguado” — que, apesar de nos ter dado uma mão cheia de hinos ao rock em Backspacer e Lightning Bolt, não é onde a banda melhor se expressa. Como contraponto, vem um álbum com uma riqueza de profundidade e experimentação quase inigualável na já longuíssima carreira da banda, e camadas intrincadas que premeiam o ouvinte atento. E se a raiva da banda não é a nota principal, ela está presente. Ao longo das 12 faixas, o grupo soa otimista, envigorado e preparado para a luta. O resultado é fácil e óbvio de descrever: o álbum mais bem conseguido da banda, mais consistentemente potente e completo em quase 20 anos.

Uma das grandes razões que certamente contribuiu para a mudança de som da banda, que se distancia dos já referidos Backspacer e Lightning Bolt, é o facto de este álbum ter sido produzido por Josh Evans, rompendo não totalmente a relação que a banda tinha vindo a formar com Brendan O’Brien nos últimos dois álbuns (aparece creditado como teclista em duas faixas). Com créditos de produtor em álbuns dos Soundgarden, Thunderpussy e Gary Clark Jr., Evans apresenta-se como uma escolha inspirada e certeira para levar o som da banda a um novo (bom) porto.

Para além do panorama social mundial completamente distinto daquele que os Pearl Jam encontraram no seu último álbum, em 2013, algo também se apresentava diferente há algumas semanas: este álbum é precedido pelo single “Dance of the Clairvoyants”, uma peça com um funk delirante que vê Vedder trocar os seus estereotípicos grunhidos por ganidos paranóicos. Com um jeito semelhante a Fear of Music, o terceiro e icónico álbum de Talking Heads, é com um sorriso na cara que nos apercebemos de que os Pearl Jam conseguem ser diferentes. É o melhor e mais inesperado single da banda em mais de uma década, e uma exploração estilística fresca de uma banda que parecia ter-se afastado da experimentação após sair do mainstream (algo que não se pode dizer nos últimos, talvez, dois anos, após a procura pela banda ter sido gigante, muito por causa da expectativa em torno do regresso aos álbuns — regresso esse que demorou sete anos). Era um single que tornava a expectativa em torno deste álbum gigante, e a banda conseguiu corresponder.

Como um todo, Gigaton soa a um álbum de legado de uma banda de rock depois de uma longa e frutífera carreira — tal como deve ser. Não é um grupo de rockers de 50 anos a fazer a mesma música que fazia quando tinham 20.

O álbum arranca com “Who Ever Said”, uma promessa de adrenalina que não deveríamos arriscar pedir a uma banda cujos membros estão quase com 60 anos. Com uma energia de música de início de concerto, esta faixa é agressiva e extravagante, mesmo quando a música “abre” e revela o contraponto da voz de Vedder à velocidade da música. A música cresce sedutoramente até um clímax frenético, enquanto o refrão final caminha em direcção ao pôr-do-sol num delicioso falso final.

Após a já referida Dance of The Clairvoyants”, encontramos “Superblood Wolfmoon”, uma faixa honesta entre as melhores dos clássicos de dance rock da banda, dando aos fãs o estado febril de intensidade que esperavam.

A velocidade narrativa de “Quick Escape” é exoticamente convidativa, uma locomotiva movida a baixo, com linhas de guitarra surpreendentes e violentas com floreados de grandeza, e segundas vozes no refrão que unem este álbum ao já distante Ten — o álbum de estreia da banda. Com contos de pôr-do-sol e noites estreladas aproveitadas, esta música é a paixão redescoberta. Um incendiário solo de guitarra de um minuto de Mike McCready finaliza a música, lançando-nos num foguete para o desconhecido.

Como tinha feito com quase todos os álbuns da banda, Jeff Ament volta a assinar a composição de uma das faixas do álbum. O baixista já nos habituou a que as suas composições sejam uma nítida e bela claridade a emergir em cada um dos álbuns, e as suas prendas são altamente apreciadas pelos fãs: “Nothing As It Seems”, “Sleight of Hand” e “Low Light” estão entre as mais bem apreciadas faixas lentas da história da banda. “Alright”, a quinta faixa do álbum, não difere da norma. A faixa delicada é como um respirar fundo e uma segurança que nos ajuda no meio da fantástica trip de ácidos em que nos vemos inseridos em Gigaton. Enquanto Evans acompanha com a bateria uma caixa de música perdida no sótão há décadas, a calimba e teclados de Ament asseguram-nos e a voz de Vedder relembra-nos gentilmente que não nos devemos perder no barulho, quer o do álbum, quer o da vida.

Vedder é ele mesmo em “Seven O’Clock”, mais uma faixa na carreira da banda que soa a uma composição de Vedder para ele mesmo, com a preciosa ajuda da banda para torná-la algo mais do que uma música digna de Vedder a solo (como acontece, por exemplo, em “The End” ou “Man of The Hour”). Com uma sonoridade comparável a Bruce Springsteen com arranjos musicais mais experimentais, esta música é um lembrete de que não podemos não estar vigilantes apesar da nossa exaustão. Com linhas vocais que parecem evocar o estado de paranoia do mundo, especialmente do panorama político americano, esta ode à esperança pede-nos que mantenhamos os nossos olhos fixos no horizonte. A faixa acaba com um mantra em repetição, implorando “Much to be done… Much to be done…”. Um dos pontos mais altos deste álbum.

Depois do fun punk de “Never Destination” (onde não há muito mais para dizer, e está tudo bem), “Take The Long Way” é uma carta de amor tempestuosa de quase quatro minutos, definida pela energia frenética da bateria de Matt Cameron. Sem a sua hiperatividade e força, esta música seria completamente diferente, talvez uma faixa honesta e solene canção de amor como aquelas a que Vedder nos habituou nos seus esforços a solo. E essa é parte da magia de Matt Cameron na banda — auxilia com uma pulverização de ruídos de fundo que tão bem ajudam a que Vedder consiga declarar a sua dedicação, sem que este fique preso na sua sentimentalidade.

Com letra e música assinadas por Stone Gossard e reminiscente de composições como “Daughter”, “Buckle Up” é uma marcha curva liderada por uma guitarra dedilhada e calorosa, por cima dos tempos de Matt Cameron. É uma faixa encantadoramente única, e encaixa-se entre as oferendas da banda que mais nos deixam perplexos desde “Strangest Tribe”, de 1999.

Mantendo uma linha consistente com os esforços da banda, a reta final de Gigaton é uma mudança para um patamar contemplativo. “Comes Then Goes” faz as perguntas difíceis do álbum por cima de uma só guitarra acústica digna de um western — perguntas para as quais já sabemos as respostas. Apesar de ser uma das faixas mais fracas do álbum, é uma mais que bem-vinda surpresa na contínua experimentação e variedade musical que encontramos dentro de Gigaton, servindo também como uma bela canção de despedida a Chris Cornell.

A explosão mística de “Retrograde” relembra-nos porque Vedder é um dos melhores vocalistas vivos. No final lento da música, a sua voz mostra-se como mais um instrumento que ajuda à contemplação da qualidade gigantesca e expansiva desta faixa.

“River Cross” e o seu hino de encerramento é talvez a única faixa do álbum que não suplica por uma imediata repetição. E já tínhamos estado nesta posição antes com “The End”, uma das faixas mais bem conseguidas de Backspacer e que, em qualquer outro lugar do álbum que não no fim, faria com que a experiência de contínua audição sofresse imenso. É de uma beleza sombria e de uma solidão que nos traz um vento frio ao coração, com uma réstia de esperança. É a luz ao fundo do túnel perfeita para acabar aquele que é, muito possivelmente, o melhor álbum da banda desde o clássico Binaural.

Não correndo demasiados riscos, Gigaton é um portefólio da versatilidade e evolução da banda. Aproxima-se da escuridão e raiva de Riot Act e Binaural, assim como da experimentação de No Code e das arestas apuradas de Vitalogy. Contém elementos de todos esses álbuns, bem como da maneira graciosa como o grupo envelheceu, demonstrada em Lightning Bolt, sendo algo como uma cereja no topo do bolo que é o catálogo dos Pearl Jam.

Se o barco está a afundar, os Pearl Jam têm os botes salva-vidas a postos.

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