Gosto de pensar que o tempo pára

por Hélder Verdade Fontes,    9 Abril, 2025
Gosto de pensar que o tempo pára
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Prestes a terminar o almoço, olhei, pela primeira vez desde que entrei, para o espaço que me rodeava. Entre os rojões, as notícias na televisão e as mensagens no telemóvel, finalmente tive tempo para observar, ainda que por uns segundos, as paredes, a decoração e as pessoas. Um restaurante igual a qualquer outro, pensei. Até que me deparei com o relógio na parede e não consegui fixar os olhos em mais nada.

Enorme e de madeira envernizada, como mandam as regras de etiqueta dos restaurantes tradicionais portugueses, ocupava uma boa parte da parede. Fiquei surpreendido por não ter reparado nele antes, dado o seu volume. Mas o que captou a minha atenção não foi o seu aspecto ou o enquadramento com o restante espaço, antes uma pequena grande diferença: o ponteiro dos segundos. Ao invés do clássico “anda-pára”, este não parava de rodar. Era enorme, vermelho e irritantemente em contínuo movimento — e isso atormentou-me mais do que alguma vez pensei.

Não foi a primeira vez que vi um relógio deste tipo. No fundamental, é em tudo igual ao que existe na maioria das plataformas das estações de comboio. Mas até hoje nunca tinha prestado a devida atenção aos diferentes tipos de relógios — e a este em particular. Fiquei a conhecer, depois, as diferenças entre cada um deles. Uns com mecanismo de quartzo, outros eletrónicos, outros mecânicos. Dentro de cada um dos grupos, variações e cruzamentos entre as “espécies”. Apesar da formação em engenharia, a parte mecânica e física aborreceu-me. O que me atormentava era mesmo como me sentia pelo perpétuo movimento do raio do relógio.

Não esperava que essa diferença me tocasse de forma tão grande. Mas a verdade é que estava tão distraído e habituado ao movimento “pára-anda” dos relógios analógicos que acho que dei por certo que o tempo passasse assim. Todos os que tenho, não gostando de relógios digitais, são assim. Gosto da pausa que existe nesses relógios. O movimento de pára-anda faz parecer que o tempo se retém por micro-instantes, deixando-me respirar, só para voltar pouco depois, num pulo, como se de um ímpeto nervoso se tratasse. Como se me dissesse: “já tiveste a tua pausa, já paraste, agora temos de ir”. E eu, alegremente reconfortado por ter tido o meu momento, continuo para o segundo seguinte.

Cheguei à conclusão que odeio o tipo de relógios que estava a ver naquele momento. Na realidade, nem sei bem se era aquele momento, porque não existe tal coisa com esse relógio. Quanto mais penso, mais odeio o relógio que constantemente me atira à cara que o tempo não pára. O ódio vem da angústia de ver o tempo passar diante de mim, entre meros piscar de olhos, sem poder respirar, saborear, sentir, existir.

O perpétuo movimento do relógio acelera o tempo. Não fisicamente, porque isso seria impossível, a menos que girasse à velocidade da luz, mas porque ver o tempo constantemente a passar causa-me angústia. Faz-me perder o sabor que existe no próprio tempo, nas suas pausas e passagens. Atomiza-nos, porque só nos faz pensar “o que estou eu a perder?”.

A ditadura do tempo que não pára causa-me ansiedade. Relembra-me tudo o que estou a perder enquanto olho para aquele ponteiro. Relembra-me tudo o que devia estar a fazer enquanto vejo o tempo a passar. Mesmo estando preso à ditadura do relógio, gosto de pensar que o tempo pára. E que eu paro com ele.

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