“Grand Tour”, de Miguel Gomes: carta ao cinema português
Este artigo pode conter spoilers.
Edward e Molly são o gato e o rato numa aventura pela Ásia filmada por Miguel Gomes. Um filme que vai à raiz do cinema: iludir as massas.
Caro Miguel Gomes,
Encontro-me na situação embaraçosa de lhe estar a escrever sabendo que só nos encontrámos uma única vez recentemente para uma entrevista na Cinemateca. Partilhei consigo que, estando agora a especializar-me na área do cinema, era-me cada vez mais difícil criticar um filme à medida que vou sabendo mais sobre a sétima arte. A tarefa torna-se mais árdua quando o Miguel é o realizador que venceu o prémio de Melhor Realização no Festival de Cannes pelo seu “Grand Tour” e que vai tentar um lugar nos Óscares, sendo um dos grandes nomes do cinema português depois dos três volumes de “Mil e Uma Noites” ou “Meu Querido Mês de Agosto”. Não é medo ou insegurança, é só porque depois de ler quase todas as críticas ao filme – genericamente satisfatórias – não sei o que haverá mais a acrescentar.
Encontrei, no entanto, um ponto. Disse na conferência de imprensa que o filme é sobre crença. “Sobre acreditar”. Edward, cobarde funcionário público do Império Britânico, anda a fugir de Molly, a sua mulher teimosa, pelo continente asiático. Ele não acredita no casamento. Ela, sim e envia-lhe cartas sobre os pontos por onde anda atrás dele. Há sete anos que não se vêem. Estamos no início do século XX. Um jogo de gato e de rato pintado por imagens de arquivo, filmadas pela equipa de Miguel Gomes, que mostram – e não descobrem – a Ásia das rodas gigantes empurradas pela mão humana, dos karaokes tristes ao som de Frank Sinatra ou do frenesim do trânsito que se transforma num baile. Há também marionetas a torto e a direito, porque o cinema manipula, encaminha para um qualquer lugar que o Miguel quer que seja, acredito, muito menos controlado do que tanto cinema confortável que existe para aí.
“Miguel Gomes mostra-nos em “Grand Tour” uma grande vontade de, sendo português, criar um universo. Estão lá as marionetas, as cores, o género e a comédia. Não a que faz cócegas. A que nos faz rir e agarra no braço para dizer: ri-te, ri-te, estás a olhar-te ao espelho, seu palerma.”
Ao ver “Grand Tour” no cinema Nimas, pude, de facto, acreditar. E ser surpreendido. Não que tenha um qualquer preconceito com o cinema português, repleto de dúvidas quanto ao seu financiamento anual, como lembrou o Miguel em Cannes. Que vence prémios lá fora e não atrai espectadores dentro de portas. Vive nesse limbo, de andar a fugir à crise e a usar como género que seduz o crítico internacional. Mas porque, habituado às peripécias que constrói através de personagens que reagem, tal como o Miguel reage, à realidade que o circunda, tinha outra expectativa. A de ver uma sátira ao colonialismo. Uma provocação ao nosso olhar condescendente para com a cultura oriental. Uma cedência ao algoritmo, aquele que obriga à produção de filmes bem limpinhos, que agradasse à presidente do júri Greta Gerwing. Nada disso. “Grand Tour”, com um orçamento bem mais chorudo que os demais filmes compatriotas (acima dos quatro milhões de euros), é um espectáculo para entreter as massas. Devolve-nos o olhar infantil de quem vê imagens em movimento pela primeira vez. Quer acreditar que o cinema ainda serve para não deixar morrer a ilusão.
Daí a minha estranheza no fim dos créditos. Sente-se o espírito de descoberta cinéfila quando Edward, depois de ter tido um acidente de comboio, se pasma com o pôr do sol no meio da floresta. Sabemos que estamos muitas vezes dentro de um estúdio, quase sempre em close up, convidados a entrar numa daquelas caixas mágicas que esconde uma bailarina. É aí que “Grand Tour” se torna puro entretenimento, não daquele que nos puxa da cadeira e atira o pacote de pipocas pelo ar. Mas do que nos deslumbra sem explicação. Mais do que a viagem documental que nos propõe ao Vietname, à Tailândia, às Filipinas ou a Singapura, toda ela disposta a ficar tempo suficiente para não perturbar o modo de vida, mas que serve mais para nos deixar com saudade do toca e foge das personagens principais.
Não tenho intelecto suficiente para me colocar na posição desconfortável de fazer referências a cineastas a quem o Miguel Gomes foi beber, sabendo que se inspirou numa pequeníssima parte do livro “The Gentleman in the Parlour: a Record of a Journay from Rangoon to Haiphong” de Somrset Maugham. Guardarei essa conversa para quando for o único crítico vivo no país ainda a trabalhar, pretensão ambiciosa ao nível da de Molly, que não desiste, mesmo doente, enquanto não encontrar o marido. Também não entrarei pela literatura, já que estou há anos para ler o livro “No Fio da Navalha”, do mesmo autor, emprestado pela minha tia, que, entretanto, já se deve ter esquecido que nunca mais o devolvi. Sei que daria uma boa história porque fala sobre o mistério da morte. Mas o cinema vive agora sobre esse augúrio e de nada nos serve ficar de cabiz baixo. Sei que tal como Tim Burton, Wes Anderson, Pedro Almodóvar ou Jean-Luc Godard, o Miguel Gomes mostra-nos em “Grand Tour” uma grande vontade de, sendo português, criar um universo. Estão lá as marionetas, as cores, o género e a comédia. Não a que faz cócegas. A que nos faz rir e agarra no braço para dizer: ri-te, ri-te, estás a olhar-te ao espelho, seu palerma. E que não haja dúvidas da portugalidade desta história. Está no riso de Molly. Está no “vamos sair daqui [da Ásia] sem saber nada”. Está no olhar cândido e triste de Edward, estático mas a mover-se contra as obrigações matrimoniais.
“Não terá tido também esse pensamento de um acaso embaraçoso qualquer que aconteceu diante dos seus olhos. Anda sempre à procura desse acaso. Daí que o Miguel Esteves Cardoso lhe tenha apelidado de larápio siciliano? Talvez.”
É pouco habitual um crítico dirigir-se ao realizador, mas desde que li que o Augusto M Seabra, conhecido por ser duro e cáustico, se sentava à mesa com os artistas, que achei que podia abrir essa porta. Talvez consigamos encontrar espaço comum onde caibam mais espectadores. No dia da entrevista que fiz ao Miguel, estava vento. Muito vento. Disse-me que essa cena podia ser filmada por si. Imagino a quantidade de vezes que, tendo em conta o que já se sabe da trabalheira que é filmar em Portugal, e, sobretudo, da trabalheira que terá sido filmar na Ásia um filme português, não terá tido também esse pensamento de um acaso embaraçoso qualquer que aconteceu diante dos seus olhos. Anda sempre à procura desse acaso. Daí que o Miguel Esteves Cardoso lhe tenha apelidado de larápio siciliano? Talvez. Também me avisou que essa cena dos chapéus a caírem lhe fazia lembrar um filme de Manoel de Oliveira. Fiquei sem saber qual é. Não sei se vai ser possível fazer um filme destes outra vez, tal começa a ser o seu sucesso lá fora. Vamos ver na estreia por cá. Mas do seu “Grand Tour” não me esquecerei.