Guardar o medo

Estou sentado no sofá a ver a segunda meia-final do Festival da Canção. Tocam os Bombazine, de camisa aberta e calça à boca-de-sino, com uma canção diletante e alegre. “Apago tudo”, canta o vocalista, e é o que apetece: apagar tudo o que se tem passado fora daqui, desta sala e desta casa, deste pequeno bairro lisboeta encalhado entre calçadas, becos e ruas com mais pinta que muitas das avenidas que por aí andam. O estado do país e do mundo podia ser apagado, reiniciado. Talvez assim a nossa sorte mudasse.
O narcisismo económico-autoritário do novo executivo norte-americano vai-se revelando pior a cada dia que passa, quer para a Ucrânia, quer para o resto do mundo. A Europa continua a desafinar no posicionamento que deve adotar perante as novas movimentações geopolíticas, sobretudo agora que o império dos EUA caminha para a ruína moral. A cimeira de Londres e os novos acordos de coligação para governo alemão apontam para um tempo de conflito, com um futuro industrial, de armamento, e com menor pendor social. Os mercados reagem a uma e outra coisa, porque é isto que os mercados sabem fazer, reagir, face ao que há e ao que pode ser, e com isso dar sinais sobre a verdadeira violência que está por vir.
Por cá, as coisas são mais simples, porque não queremos deixar de ser um país simples e despreocupado no meio deste rodopio internacional. Por outras palavras: as coisas não mudam. O custo de vida continua alto, o estado social frágil, e a esperança política inexistente. O primeiro-ministro acha que não somos sérios (pior: acha que somos tontos), e diz-nos que não há problema nenhum em ter uma empresa familiar enquanto se está no cargo, a receber avenças de clientes privados no que parece ser uma violação clara do princípio da exclusividade. E assim se queima uma imagem e uma reputação, e assim vai cair mais um governo.
As coisas vão mudar para melhor? Os prognósticos não são animadores. Ninguém queria eleições porque ninguém quer arriscar o cenário de que fique tudo como está, ou seja, na mesma – um sinal terrível para o regime. Um regime composto por partidos mais preocupados na sua sobrevivência do que no bem comum, entrincheirados numa mentalidade clubística e adversária, sem capacidade de construir pontes nem acordos. O que interessa é lixar o próximo que se segue, sem visão estratégica para lá de uns meses e de uns anúncios simpáticos. Em suma, os partidos estão a jogar um jogo pelo poder de ter poder, e não para ajudar o país a ser outro, melhor, mais justo e mais próspero, num tempo difícil.
Nestas eleições, devíamos votar em quem pretende defender o paradigma de defender os valores democráticos de exigência, transparência, e solidariedade, respondendo com critério e sagacidade aos desafios enormes que enfrentamos. Mas quem pode ser? Qual é o partido, para lá daquele que claramente não é, que apenas quer dividir, sujar, provocar e denegrir; qual é o partido democrático que pode concretizar a mudança, que pode fazer pelo melhor?
Volto à sala, mas não ao festival. As noites de fevereiro são húmidas e as de março para lá caminham. Leio um poema que uma amiga publicou, um poema que fala sobre o amor, sobre insónias, e sobre guardar o medo. É uma frase bonita, uma pergunta honesta, e uma tarefa complicada, ainda para mais agora. Voltei a tirar fotografias analógicas e a interessar-me por carros. Sonho com tartarugas e com o verde minhoto, e deixo cair a mão, durante a madrugada, sobre a barriga da Carolina. Sinto-o a mexer-se, com um pontapé ou um “fist-bump”, um toque para me recordar que já falta pouco. Quando acordo quero escrever, não sobre os Bombazine, nem sobre o problema de governo que este país atravessa, mas sobre o mar. No fim de uma serra, num dia de verão, um personagem vê o mar e deixa-se levar pelas memórias do que foi um dia um desejo. Sem medos.
Sugestões do cronista:
Segui mais atentamente a segunda meia-final do Festival da Canção do que a primeira. Torço pelos Bombazine e pela Margarida Campelo. Tenho lido dezenas de catálogos automóveis, mas nenhum que mereça particular destaque – destaque esse que talvez fique para algumas canções que me alimentaram o verão de 2021: “21/04/20” dos Kero Kero Bonito, “Honesty Bar” dos D’alva e da Cláudia Pascoal, e o bom estilo de Tex Crick. Na televisão, para além de telejornais, vi o primeiro episódio da terceira série de “The White Lotus”. Como todos, senti falta da música do genérico da primeira temporada.