Guiné Bissau. Uma terra abençoada num estado amaldiçoado
Memórias, saudades e esperança, em imagens analógicas de África.
Nunca sabemos se captamos o essencial de uma viagem ou das especificidades de um país enquanto o vivemos. Olhamos, retratamos, absorvemos, escrevemos, refletimos, mas, anos mais tarde, desconfiamos que o recolhido poderá não ter captado tudo, ou o bocado que pode ser tudo. Que algo está em falta. Voltamos a recordar. Recolhemos, novamente. Encaixamos as peças no puzzle. O tempo ensinou-me que muitas vezes o olhar do viajante, próprio do imediatismo, pode deturpar mais e eis-me então, passados oito anos e depois de uma experiência de dois, entre idas e vindas ao Senegal e a Portugal, a retratar um pouco do muito que vivi neste pequeno país da África Ocidental.
Foi a 28 de junho de 2009 que comecei a compreender alguma da essência da Guiné Bissau. (Assim acredito, pelo menos.) Coincidiu ser no dia em que assistia à primeira tomada de posse de um presidente em África. O dia em que Malam Bacai Sanhá foi eleito, poucos meses depois do barbárico assassinato do ex-presidente Nino Vieira e do bombardeamento ao quartel general das forças armadas, que também levou a vida do chefe de Estado Maior das Forças Armadas, Tagmé Na Waié. Juntaram-se em Bissau – com mais de 30 graus -, fula’s, papeis, balanta’s, mandinga’s, manjacos, bijagós, e muitos outros oriundos das diferentes etnias do interior da Guiné. O ambiente ao contrário do que esperava, era bastante festivo.
Na altura, já conhecia um pouco da extraordinária riqueza do interior do país e das ilhas dos bijagós, que viria a explorar de forma mais intensa ao longo de muitos e muitos fins-de-semana. Mas, foi em Quinhamel, a quinze quilómetros de Bissau, que nasceu um amor maior pelas ostras. Raramente voltei a encontrá-las tão boas noutros lugares. Das ostras para o olhar, deparei-me com uma pobreza crua e condições de saúde em muitos casos desumanos, mas longe da fome que, propriamente dita, não existe.
Aquele que é considerado o quinto país mais pobre do Mundo, poderia depender quase em exclusivo de um plano ordeiro para a agricultura e do seu vasto território marítimo, propicio às pescas. No lugar da fonte praticamente exclusiva que é o cajú, exportava-se de forma sustentada as caraíbas virgens que são as mais de 80 ilhas dos bijagós e apresentava-se toda uma amálgama de costumes e etnias, que faz deste pequeno país, um dos mais interessantes de África.
A realidade é que, no dia 28 de Junho de 2009, era difícil a um estranho aceitar este clima num país que tão recentemente tinha vivido acontecimentos trágicos e de pouca tolerância para quem quisesse acreditar nos seus políticos. Da enchente no estádio 24 de Setembro às ruas inundadas da Avenida 3º de Agosto e à Praça Central de Bissau, acenavam-se cachecóis do PAIGC e convivia o citadino de Bissau, o soba de Cachéu, Varela, Bafatá, e o bijagooense. Entre mais ou menos funcionários de organizações internacionais e ONGD’s, vivi sempre isso em toda a Guiné. Onde quer que fosse, nunca vislumbrei qualquer violência entre os cidadãos deste país e raramente vi revolta.
É, sem dúvida, outra das coisas que mais impressiona quando se está na Guiné. A violência dos últimos vinte anos foi quase sempre circunscrita aos jogos sujos entre políticos e militares. Num qualquer outro país, isto já teria dado uma guerra civil interminável e criado todo o tipo de milícias. O próprio estado de guerra em alguns dos países francófonos que a ladeiam é ignorado pelos guineenses.
Após o longo discurso do novo presidente, perguntei a um dos locais que parecia travado entre a emoção e a efusão, o que era que eles festejavam, afinal de contas? A resposta deixou-me desarmado entre a contradição de uma aparente inocência africana e a minha falta dela. Isso e uma crença na humanidade de quem todas as razões tinha para acreditar muito pouco nela. Numa mescla entre o crioulo e o português, lá me disse: “Se Sanhai vir que estamos com ele, se os políticos sentirem a nossa crença, também eles vão querer o bem da Guiné. Garandi kuma i ka un pe son ku pui kaminhu limpu”.
O guineense não perde a esperança. Basta escutar outros ditados neste crioulo, alguns que me foram ditos noutras circunstâncias e apercebemo-nos da raiz dessa força.
Os bijagós dividem-se entre ilhas de todo o tipo de dimensões e ao gosto de qualquer viajante. São um refúgio único e de pesca abundante e rara. Rubane representa a ilha sagrada, de segredos, mitos e tradições seculares. Não se pode derramar sangue ou enterrar um corpo, muito menos os de animais. Não é permitido que se façam construções, nem que alguém se envolva numa luta de qualquer tipo. Quem violar uma destas regras terá que se submeter ao ritual, fazer oferendas e pedir desculpa às entidades superiores. Caso contrário, e segundo a crença bijagoeense, o prevaricador será punido pelo poder divino. Classificada pela UNESCO como Reserva da Biosfera e Património da Humanidade, a Ilha de Rubane é considerada a reserva agrícola dos bijagós, uma vez que é lá que se produz parte dos alimentos do país – arroz, milho, melancia, abóbora, inhame – e que serve para o ano todo.
Bubaque é a mais “comercial” das ilhas e a primeira com que nos deparamos quando saímos do barco vindos de Bissau. Para encontrarmos o deserto que encontramos noutras ilhas, é preciso percorrer cerca de dezoito quilómetros para chegar à praia de Bruce. Há quem venha em avioneta directamente de Dakar sem passar por qualquer outro lugar da Guiné. As más línguas diziam (segundo percebi, ainda se diz) que o tráfico de droga (outro dos flagelos do país é o narcotráfico) é realizado tanto por avioneta como de barco, longe de qualquer controlo marítimo ou aéreo, e ajudado pelo labirinto geográfico que também define este lugar. Assim chegaram a Orango, um dos poucos lugares no mundo onde ainda se encontram hipopótamos marinhos.
Depois de deixar Bissau, mantive sempre um olhar de saudade na terra e outro na política do país. A violência estadual deixou de ser a de outrora, mas a iminência de qualquer conflito é constante. Continua a ser o lugar em que nenhum presidente chegou ao final do mandato, mas onde ainda se dança a vida. Por mais cruel que ela seja. Num país de contrastes sagrados e de cor, de musicalidade sem som, de paisagens deslumbrantes e outras chocantes, o maior deles todos está por resolver: o de uma terra abençoada que se mantém refém de um estado amaldiçoado.
Este artigo foi originalmente publicado na VICE Portugal, e é da autoria de Gonçalo Ribeiro Telles tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.