“Gungrave”: uma das pérolas do anime dramático mascarado de violência e acção
Ao contrário do que o primeiro episódio demonstra, Gungrave é um anime sobre sentimentos e valores como o amor, amizade e lealdade, com um cenário de crime como paisagem e ambiente, conduzindo os personagens através de uma odisseia trágica.
Após o sucesso mundial de Trigun, o seu criador, Yasuhiro Nightow, começou a desenvolver uma nova história de seu nome Gungrave. Produzida também pelos estúdios Madhouse, Gungrave retrata a história de dois amigos, Brandon e Harry, que fazem parte de um pequeno grupo mafioso e sobrevivem graças a pequenos roubos que cometem. Um dia algo acontece e a amizade entre ambos é posta à prova.
O paralelismo com as favelas brasileiras é evidente, assim como a criminalidade infantil e a necessidade de sobrevivência. Assim como em Michiko & Hatchin, os personagens principais são obrigados a uma vida de crime pelas condições em que nasceram e a sociedade que os rodeia, e não propriamente por instintos de maldade ou destruição.
O primeiro episódio de Gungrave foi bastante criticado aquando do lançamento do anime. Este episódio começa no futuro, com Brandon Heat mais morto do que vivo, cabelos brancos e um caixão às costas. Além disso, existem monstros, Harry faz parte da máfia e Brandon e os seus amigos estão a ser perseguidos sem que se saiba realmente o motivo. Embora seja interessante revelar tanto nos momentos iniciais, a forma como o episódio se desenrola atenua mais a confusão da narrativa, sendo difícil de seguir ou de sentir quaisquer emoções por personagens que ainda não conhecemos.
É a partir do segundo episódio que o anime começa verdadeiramente a demonstrar o seu potencial. A história anda para trás e mostra-nos os momentos iniciais da amizade entre Brandon e Harry, no meio de um gueto problemático. O ponto forte de Gungrave é a forma como demonstra o que é a amizade e, tal como Brandon refere várias vezes, a amizade é, acima de tudo, lealdade. Ao longo dos 26 episódios, assistimos à ascensão e queda dos dois amigos, à perda de um amor e, essencialmente, à perda de humanidade por parte da maioria dos protagonistas.
Gungrave é uma reflexão sobre ambição, mortalidade, amizade, amor e as razões pelas quais vivemos cada dia. Ao contrário do que o primeiro episódio ilustra, a série centra-se bastante nas componentes mais emotivas do que propriamente na acção e, sempre que existe acção é mais para justificar esses sentimentos e emoções do que puramente pela violência gratuita.
A série foi, desde muito cedo, posta de parte por parecer, inicialmente, uma cópia/imitação de Hellsing, provavelmente a mais famosa série de vampiros dentro do universo anime a par de Vampire Hunter e de Blood+. A verdade é que Gungrave tem muito mais influências de “Once Upon a Time in America” do que propriamente de Hellsing. A referência ao filme de Sergio Leone e não ao “Godfather”, de Francis Ford Coppola, é meramente porque o filme de Leone centra-se bastante na amizade entre os dois protagonistas e a rivalidade que daí nasce, exactamente tal como Brandon e Harry em Gungrave.
A animação é um dos pontos fortes de Gungrave, mas não é uma surpresa para um estúdio que já nos tinha trazido Trigun em 1998. A banda sonora, sempre com o jazz presente, é também icónica, assim como a montagem de cada episódio. Não há muito espaço para respirar em Gungrave, tudo acontece a um ritmo electrizante e os saltos temporais criam em nós uma certa ansiedade em relação ao futuro dos personagens. Sem nos apercebermos, estes personagens começam a crescer dentro de nós e o contraste vilão/herói começa a diminuir cada vez mais até ao ponto em que chegamos a questionar quem é o bom e quem é o mau nesta história.
Yasuhiro Nightow criou uma pérola do anime dramático, mas mascarado de acção e violência. Caso sejam capazes de ultrapassar essa primeira camada, é praticamente garantido que os personagens terão um grande impacto na percepção de cada espectador em relação ao que é a amizade, amor, confiança e lealdade. Quantas vezes não agimos como um Brandon Heat, ou quantas vezes não gostaríamos de ser (ou não) como um Harry Mcdowell. Essa é uma questão pessoal para cada um de nós, mas é, sem dúvida, um dos grandes trunfos de Gungrave, este de nos pôr a sentir algo sem que esse algo seja demasiado banal.