‘Locker Room Talk’ denuncia as conversas que nem no balneário interessam

por Daniel Dias,    7 Outubro, 2019
‘Locker Room Talk’ denuncia as conversas que nem no balneário interessam
Fotografia: Teatro Nacional São João
PUB

A história já foi contada várias vezes. Gary McNair, encenador escocês, viu o célebre vídeo em que Donald Trump profere a expressão “grab her by the pussy”, e, a partir daí, teve a ideia de conversar com uma série de homens – “de médicos a taxistas, de culturistas do corpo a trabalhadores fabris”, assinala-se no comunicado de imprensa –, pedindo-lhes apenas que “falassem desassombradamente sobre mulheres”. Horas de entrevistas foram transformadas em Locker Room Talk, uma peça de teatro que bem podia ser uma conversa entre aqueles tios irritantes, que passam os almoços de família a dizer barbaridades, mas que ninguém tem a coragem de mandar calar.

Esta “conversa de balneário” encontra a sua genialidade na inversão de papéis: em palco, quatro mulheres são chamadas a reproduzir os comentários machistas, misóginos ou homofóbicos que McNair registou. O texto, conforme a folha de sala sublinha, é transposto para “um ‘lugar de fala’ feminino, fazendo-se coincidir a locução das palavras com o seu objecto”. É como se, de repente, o horrendo e o repulsivo se percebessem à lupa.

A actriz Isábel Zuaa, que revelou a dificuldade em decorar o texto devido à sua violência. Fotografia: Daniel Dias / CCA

A mala voadora traduziu o guião original, e, a 4 e 5 de Outubro na Sala do Tribunal do Mosteiro de São Bento da Vitória, as actrizes Crista Alfaiate, Isábel Zuaa, Mariana Magalhães e Tânia Alves dialogaram entre si como se fossem os homens que o artista escocês abordou. Discutiram, por exemplo, sobre o número de cervejas que precisariam de beber antes de falarem com aquela tipa que é, “no máximo, um 3”, ou acerca da maneira como lhe devolveriam a virgindade para a tirarem “como deve ser”. Mas calma, que, no fim do dia, estas coisas todas que saem da boca para fora são só uma brincadeira… Certo? E ao fim ao cabo, diz-se, durante o espectáculo, “toda a gente pensa assim. O que é que se pode fazer? Gajos.”

À hora do início da apresentação, as pessoas começam a aproximar-se da Sala do Tribunal, e, antes de entrarem, já se ouvem à distância os acordes de “Money For Nothing”, dos Dire Straits – essa música com o verso sobre as “chicks for free”. Daí passamos directamente para uma sessão de “tagarelice vil e violenta”.

Se a “conversa de balneário” fosse uma masterclass, estas seriam algumas das principais lições. Número um: há comentários que até podem ser porcos ou inapropriados, mas eles não fazem mal a ninguém desde que as mulheres de quem estás a falar não os ouçam. Número dois: se estiveres na brincadeira com os teus amigos e achares que um deles ultrapassou um limite, ignora. Não tentes dizer “olha, será que agora não foste longe de mais?”. O pessoal começa logo a gozar contigo e alguém vai falar que és gay. Número três: isto do feminismo é uma treta, porque as mulheres só se lembram dele quando lhes convém. Querem igualdade salarial e de oportunidades, mas depois esperam que os maridos ou namorados sejam cavalheiros e abram a porta do carro, ou que as outras pessoas lhes deixem passar à frente na fila das compras.

Crista Alfaiate, Tânia Alves e Isábel Zuaa em ensaio. Fotografia: Daniel Dias / CCA

Um monstro perigoso habita por detrás das excelentes interpretações em Locker Room Talk. O público dá aquele riso nervoso, de quem sabe que há algo de perverso e de desconfortável no que está a ser dito. Antes de as actrizes começarem a conversa, os espectadores são confrontados com uma provocação: será que Donald Trump é só um idiota que não sabe o que diz, ou será que fala por uma maioria silenciosa? Calma que alguns piropos são indecentes mas não fazem mal a ninguém e isto é tudo uma brincadeira… certo?

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados