Há mar e mar, há ir e, consoante o semáforo, voltar
Com os dias a aproximarem-se de Junho, o regresso do sol e das temperaturas mornas faz surgir o desejo da praia e, nomeadamente, do mar. Contudo, o sonho de descontracção na toalha estendida sobre o areal quente em frente ao mar, que serve de alimento aos meses de trabalho durante o Inverno, acarreta agora um enorme potencial de pesadelo e de frustração. Lembrei-me de um slogan antigo de protecção banhista, criado pelo poeta (que também trabalhou como publicitário) Alexandre O’Neill: Há mar e mar, há ir e voltar. Recordo-me também das bandeiras com três cores distintas, que funcionam com a mesma lógica dos semáforos de trânsito, e que, na infância, nos causavam ansiedade no caminho até chegar à praia e verificarmos se tínhamos o dia livre no mar arruinado perante a exibição da cor vermelha ou se teríamos a alegria de ver esvoaçar na brisa leve e quente o pano verde anunciando liberdade plena. Todavia, se desde a época em que só cobríamos a parte de baixo do corpo na praia (porque ainda não tínhamos crescido, tal como a nossa noção de pudor) sempre estivemos habituados aos perigos do mar e a respeitar, por exemplo, só mergulhar os pés havendo bandeira vermelha içada ou ter de aguentar na areia as intermináveis horas do mito da digestão, nunca nos ocorreu ter outro tipo de temor no perímetro do areal. Tirando algumas ondas de assaltos anunciados na imprensa, a vontade de praia sempre correspondeu ao desejo simples e tranquilo da infância e da idade adulta, em que apenas nos preocupavam os perigos do mar e, a alguns, a irritação com o sacudir da areia à saída da praia, ou com o trânsito já esperado no regresso a casa. Mas, cá está, tudo contrariedades diminutas e há muito conhecidas.
Bastam duas estações de frio e de chuva para logo nos parecerem distantes esses tempos de férias na descontracção da praia. Nos tempos que correm, tornam-se cada vez mais desejos longínquos de um cenário, para já, impossível. Foi comunicada há uns dias, como solução para esta época balnear com características tão especiais, a possibilidade da existência de um semáforo à entrada da praia, anunciando a lotação da mesma, e o direito a dez metros quadrados por pessoa no areal: dois metros entre toalhas de praia, três metros entre chapéus. Decoraram?
Foi também anunciado que será criada uma app para consultar o semáforo antes de sair de casa a caminho da praia, mas quem não tiver acesso correrá o risco de ser burro de carga em vão, de chegar à praia e de bater com o nariz no semáforo. Ou seja, este ano, além do chapéu-de-sol, dos bonés nas cabeças dos miúdos, das toalhas, do protector solar, da geleira do campismo com a fruta e as sandes e a água, do moinho de areia em plástico mais o balde e a pá e as formas para os bolinhos de areia, não nos podemos esquecer da fita métrica e das máscaras, claro, que não são obrigatórias no areal ou no mar, mas imprescindíveis caso decida ir beber um sumo à esplanada. Ainda não consigo realizar como. Comer e beber de máscara numa esplanada junto ao mar, não parece concretizável. Para quem tem família, por exemplo, ter de acartar com tudo o que é necessário, com a sensação premonitória de ir ao forno devidamente mascarado, é já um esforço que se prevê hercúleo – refrear pela mão o entusiasmo febril dos miúdos perante o semáforo de entrada favorável, que anuncia o chapinhar até mais não, ou, pelo contrário, acalmá-los de uma birra até as lágrimas secarem, caso não seja favorável o dito semáforo que anuncia a lotação, e os garotos terem de se contentar fechados em casa com a água salgada que destila. Qualquer destas possibilidades nos soa, claramente, a pesadelo.
Sabemos que talvez seja a solução possível, parodiar a situação não é de todo criticá-la ostensivamente. Não há soluções ideais para este período tão inédito. E, obviamente, há problemas mais graves neste momento do que não termos uma época balnear de jeito. Outros verões virão, certamente sem semáforos, excepto os de trânsito; e esses que sempre nos pareceram infernais, durante uns tempos vão parecer contrariedades de meninos, coisas menores e simples de aguentar em nome dos prazeres da praia. A toalha estendida, a leitura de um bom livro, o mar a chamar ininterruptamente para um mergulho. Tornaremos a viver com parcimónia e respeitando o slogan “há mar e mar, há ir e voltar”; a ter direito ao areal sem limites por pessoa, sem máscaras, sem medo. Para já, é atentar aos dias, aos semáforos e ao espaço que, com sorte, nos cabe no areal. É o que temos.
Crónica de Cláudia Lucas Chéu
Escritora, poeta e dramaturga. Escreve contos semanalmente para o Jornal Público. Colaborou com as revistas Vogue, Elle, NIT, Gerador, entre outras. Tem publicados os textos para cena Poltrona – monólogo para uma mulher; Glória ou como Penélope Morreu de Tédio, pelas edições Bicho-do-Mato/ Teatro Nacional D. Maria II; A Cabeça Muda, pela Cama de Gato Edições; Veneno (Coleção Curtas da Nova Dramaturgia – Memória), Edições Guilhotina, 2015. Em prosa poética, publicou o livro Nojo, (não) edições. E em poesia, o livro Trespasse, Edições Guilhotina, 2014 e Pornographia, Editora Labirinto, 2016. Em 2017, foi publicado o seu livro Ratazanas (poesia), pela Selo Demónio Negro, em São Paulo (Brasil). Publicou, em 2018, o seu primeiro romance Aqueles Que Vão Morrer, Editora Labirinto, e Beber Pela Garrafa (poesia), pela Companhia das Ilhas. Acaba de lançar os livros A Mulher-Bala e outros contos, Editora Labirinto (2019); Confissão (poesia), Companhia das Ilhas, 2020.