Há uma direita civilizada — juro, Joca
Joca está em cima do telhado. Quer saltar, mas está a dois Jocas de altura. Tremem-se-lhe as pernas. No chão, triunfante, está o amigo, acabado de aterrar em estilo, jurando pela sua «morte» que o salto não «dói». «Juras?» «Juro, Joca.» Joca confia no seu cúmplice. Salta — mas aterra de cabeça.
«Oh Jocaaa!…»
Tento convencer com frequência os meus amigos de que existe uma direita civilizada: a que fundou o estado social moderno, no século XIX; a alemã, que abriu a porta a um milhão de refugiados aquando da crise síria; a inglesa, que legalizou o casamento gay em 2014.
As suas cabeças abanam: dizem-me que essa direita já não existe, que caiu nas mãos da extrema-direita, que secou, ou, pior, que defender isto é «ser de esquerda».
Discordam do que lhes digo. Mas sei que estou certo — que só posso estar certo —, que vi Merkel e Cameron, que li Sá Carneiro e Amaro da Costa, que Adriano Moreira não foi líder de um partido de esquerda e que T.S. Eliot nunca foi camarada. Que podem confiar em mim, que percebo mesmo do assunto e lhes garanto que a esquerda não tem o monopólio do coração. Que o juro: pela minha morte.
Eis, então, que a direita democrática portuguesa ganha as eleições. Está finalmente no telhado e pode mostrar o que vale: saltar — e aterrar no espaço da noção, cosmopolitismo e empatia.
Mas também se lhe tremem as pernas. Em cima do telhado, com a pressão de aterrar em popularidade, ouve o diabinho que lhe sussurra ao ouvido: «Olha que os outros estão a crescer!»; «olha que já valem um milhão!»; «devias ser mais como eles!». E como o espírito é fraco e o músculo cresceu atrofiado, a insegurança fá-la atirar-se à primeira oportunidade:
«Vamos reforçar o cultivo dos valores constitucionais e libertar [a disciplina de cidadania] das amarras a projetos ideológicos», disse Montenegro.
Catrapum: cara no chão. «Oh Luísss!…»
O problema não é dizer que a disciplina de cidadania tem pendor «ideológico» — que tem, como tudo na política, desde os «valores constitucionais» que quer cultivar à escolha da sua gravata nesse dia —; o problema é vermos a direita democrática ser contra o que lá se ensina, cedendo ao amadorismo intelectual, ao discurso enlatado da extrema-direita e ao provincianismo.
No seguinte dia, Paulo Núncio, líder parlamentar do CDS, numa fabulosa demonstração de capacidade para decorar siglas, deu o golpe final no espírito da velha Aliança Democrática:
«Para nós, CDS, a cidadania não pode ser ideologia de género. Não é aceitável que a escola se torne numa extensão do ativismo LGBT», disse.
Catrapum: outra marretada no chão. «Oh Paulooo!…»
(Agora, nas aulas de Matemática, aprende-se: L + G + B = T)
O CDS ignora-o, mas os Tories — antigo farol da direita tradicional, onde o primeiro se inclui — têm um grupo interno, chamado LGBT+ Conservatives, dedicado às lésbicas, gays, bissexuais e trans conservadores. Pela Europa fora — e é exemplo disso a CDU alemã —, não faltam casos de partidos do espaço político do PSD e do CDS que são favoráveis aos direitos LGBT.
Cá, a direita democrática prefere o cheiro a mofo e a insensibilidade, rejeitando ensinar aos adolescentes que a homossexualidade não é uma doença, que o género e o sexo são coisas diferentes e que estas pessoas se matam por outras não perceberem que isto as faz sofrer. Sou favorável a um Estado que ensine a tolerância nas escolas, possibilitando o único contraponto da visão cruel e desinformada que muitos jovens ouvem à mesa de jantar.
A suposta direita civilizada teve a sua oportunidade — saltou: mas aterrou de cara no chão. Os meus amigos seguram o riso e afagam-me o espírito: «Não dói, não dói.» Mas dói, Joca — e muito.
Esta crónica foi originalmente publicada no Instagram do Henrique Pinto Mesquita e, com a devida autorização do autor, foi aqui reproduzida.