Hamlet em Tony Soprano e Tony Soprano em Hamlet
Na quarentena de 2020 vi The Wire pela primeira vez. A série que encantou Barack Obama ou até Slavoj Žižek, que foi utilizada como matéria curricular para cursos de sociologia, advocacia e literatura é, acima de tudo, uma tese sobre como estruturar 60 horas de narrativa sem um minuto inútil. Cada termo burocrático, cada transação, cada relatório: tudo se acumula para criar uma sequência de eventos inescapáveis para as personagens. Através de uma análise literária, começando na tragédia de Sófocles e acabando na alta-fantasia de Sapkowski, chegamos à conclusão de que essa sequência inescapável é, normalmente, identificada como destino. Um conceito tão antigo como a Humanidade que, tal como tantos outros, foi aperfeiçoado por William Shakespeare.
Na quarentena de 2021 estou a ver The Sopranos: também pela primeira vez. Rapidamente se tornam aparentes os paralelismos entre esta obra e uma das mais famosas peças do supramencionado dramaturgo britânico. Tanto em Hamlet como em The Sopranos, o “rei” morre e o tio do protagonista assume o poder. A personagem titular procrastina, refletindo demoradamente nos prós e contras de assassinar o seu inimigo e na relação complexa com a mãe: apoiante do novo rei. Juntando a isto duas personagens traiçoeiras, claramente inspiradas em Rosencrantz e Guildenstern, torna-se óbvio que o criador da série, David Chase, não escapou ao destino traçado pelo Bardo.
Trocaram-se solilóquios existencialistas por conversas com uma psicóloga sobre patos, comares e a lei RICO. Em ambos os casos, são nestes momentos de introspeção que os protagonistas colocam em causa a sua própria capacidade de agir. Ernest Jones, colega e biógrafo de Sigmund Freud, escreveu em The Œdipus-Complex as an Explanation of Hamlet’s Mystery: A Study in Motive: “Há várias razões para acreditar que, à exceção de matar o seu tio, Hamlet é um homem capaz de tomar ações decisivas. Estas podem não só ser feitas por impulso, como o assassinato de Polonius, mas também deliberadamente, como a orquestração da morte de Guildenstern e Rosencrantz.” Tony Soprano, não só encaixa perfeitamente nesta análise sobre a natureza ambivalente das suas (re)ações, como também se vê refletido noutro tipo de devaneios do próprio príncipe dinamarquês:
Hamlet: Well, then it isn’t one to you, since nothing is really good or bad in itself—it’s all what a person thinks about it. And to me, Denmark is a prison.
Rosencrantz: That must be because you’re so ambitious. It’s too small for your large mind.
Hamlet: Small? No, I could live in a walnut shell and feel like the king of the universe. The real problem is that I have bad dreams.
O patriarca da família de New Jersey tornou-se no “pesadelo americano” dos protagonistas televisivos. Substituíram-se os abdominais e sorriso Colgate de David Hasselhoff pela barriga de cerveja e dentes tortos de James Gandolfini. O charme de Fonzie ficou, mas a “coolness” foi trocada por um mau-feitio tempestuoso. Tony Soprano foi o primeiro de uma longa lista de protagonistas anti-heróis na televisão norte-americana: sem ele não haveria Rust Cohle, não haveria Walter White, Dexter Morgan, Don Draper ou Frank Underwood. E ainda assim, de todos eles, o ítalo-americano continua a ser o que mais quebrou o molde. “Tony é demasiado gordo. É demasiado rude. (…) A série não é distópica o suficiente. Tudo é distópico na televisão atual.” Afirma Chase em entrevista ao The Guardian, quando questionado sobre como a sua obra seria recebida pela audiência atual.
Nessa mesma entrevista, David confirma que a relação de Tony com a mãe e subsequente ajuda psicológica, foi baseada na sua própria experiência familiar. “A mãe de Chase já tinha morrido quando este escreveu a série; ele duvida que a tivesse conseguido escrever com ela ainda viva.” Numa sombria semelhança, Freud (antes de subscrever à teoria de que Edward de Vere foi o real escriba da obra de Shakespeare) traçou uma ligação “edipesca” entre o processo de escrita de Hamlet com a morte do pai do seu autor: ambos com datas a rondar 1601.
Independentes da inspiração dos seus criadores, sensivelmente 420 anos depois da escrita de Hamlet e 22 anos depois da estreia de The Sopranos, o diálogo sobre a peça e série da HBO volta a ganhar força.
No caso da primeira, irá estrear no dia mundial do teatro, 27 de março, no Teatro Municipal Mirita Casimiro em Cascais (se as condições de segurança assim o permitirem) uma encenação de Carlos Avilez a partir da tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen. Com José Condessa no papel titular e um elenco excecional onde figuram ainda Bárbara Branco (suponho que no papel de Ofélia), Elmano Sancho, Miguel Loureiro, João Gaspar, Diogo Martins, Maria João Pinho e Miguel Amorim.
Quanto à série terá, este ano, direito a um filme-prequela. The Many Saints of Newark, (escrita por Chase e Lawrence Konner, com realização de Alan Taylor) tem data de estreia marcada para setembro: nos cinemas e na plataforma de streaming HBO Max. Com Alessandro Nivola e Michael Gandolfini (interpretando a personagem icónica do seu falecido pai) à frente de um elenco onde também constam nomes como Vera Farmiga, Jon Bernthal, Leslie Odom Jr. ou Ray Liotta. E embora a filmografia de Taylor seja questionável (os seus últimos títulos foram Thor: Dark World e Terminator: Genisys) as expectativas são altas para a exploração de uma linha temporal pouco vista na série: a juventude de Tony Soprano, com as revoltas raciais de Newark em 1967 como pano de fundo.
Crónica de Diogo Simão
O Diogo é autor, realizador e director do Young South Film Festival. É também Licenciado em Ciências da Comunicação e trabalha, desde 2019, na candidatura de Faro a Capital Europeia da Cultura.