“Hamnet”, de Maggie O’Farrell: na dor há matéria-prima

por Mário Rufino,    25 Setembro, 2021
“Hamnet”, de Maggie O’Farrell: na dor há matéria-prima
PUB

A ficção navega entre os espaços deixados pela escassez de informação. No seu esplendor, aproveita-se de um pedaço de verdade e constrói, sobre essa pedra angular, uma realidade possível. 
Quando nessa factualidade existe uma pessoa reconhecível, a atenção inclina-se para o que vai ser dito. Depois, depende da história. Poderá subsistir somente por causa de um nome, ou ser construída em volta desse nome, tornando-o uma sombra.  
O texto mais bem conseguido consegue emancipar a história e generalizá-la quanto baste para caber na vida de todos os leitores. 
Em Hamnet (Relógio d’Água; trad. Margarida Periquito) Maggie O’Farrell (Irlanda do Norte, 1972) depara-se com essas duas opções. E é claro o caminho escolhido. 

Dizer que Hamnet é sobre o filho de Shakespeare é reduzir de tal forma o tema que quase parece uma falsidade. Hamnet é o ponto de partida para uma história dependente do laço mais íntimo entre pais e filhos. Os gregos chamavam-lhe “Storge”. 
É uma obra de ficção, é certo, mas a semente está na curta vida de um rapaz que morreu em Stratford, no Verão de 1596. 

Maggie O’Farrell / DR

Agnes (ou Anne) teve três filhos com William Shakespeare: Susanna e os gémeos Judith e Hamnet. 
Em nenhum momento do livro, o nome do pai é mencionado. A visão da autora incide sobretudo na mãe e na sua prole. O pai é definido pelas suas actividades; professor de latim, luveiro, artista. No entanto, está muito longe de ser uma personagem plana. A sua ausência cava mais fundo o desamparo de Agnes. E será crucial para uma das mais belas e impactantes conclusões romanescas. 
A sua viagem de negócios a Londres, impulsionada pela mulher, será crucial para a vida familiar. E muito se debaterá Agnes com essa decisão motivada mas não tomada por ela. É um exemplo de que na rama o poder é masculino, é o homem que decide, mas o verdadeiro poder, como se vê ao longo do romance, é na essência feminino.  

Agnes é o principal pilar a sustentar este romance de vários acordes: 
A relação de Agnes com os irmãos e com a madrasta; a relação de Judith com o seu irmão gémeo; a do luveiro com o pai e com a sua esposa, Agnes. 
O´Farrell calibrou até à perfeição o envolvimento destas relações intercalando-as na narrativa sem prejuízo da unidade. Estas variações de ritmo e de subenredos prendem a atenção do leitor, mas é a capacidade de desenvolver personagens que traz o drama e o impacto. 
Maggie O´Farrell não construiu um livro-tese, ou um romance histórico apostado em descrições minuciosas de ambientes e factos. 
O leitor é envolvido magistralmente pela prosa da escritora irlandesa. Mais uma vez, o equilíbrio sustenta informação e emoção. O leitor está no meio das personagens, liga-se a elas, sofre com elas. Não fica do lado de fora a assistir.  

Quem leu “O Espelho e a Luz”, da inglesa Hilary Mantel, perceberá os radicais contrastes entre os dois livros. O de Mantel entrega-se a descrições minuciosas; está impregnado de excessiva preocupação em retratar personagens e época. Tanto assim é que as personagens não causam empatia, não caminham entre nós. O leitor observa, de longe. O´Farrell consegue o equilíbrio. As descrições existem para dar complexidades às emoções. Sem abrandar em excesso a narrativa nem cair num dramatismo estéril. 

Mesmo num momento prescindível, como é a descrição da viagem da peste que viria a matar Hamnet, a prosa é de tal forma envolvente que agradecemos por a autora não o ter cortado. 

O falecimento e o funeral de Hamnet (ou Hamlet, como também era chamado) são dos momentos mais intensos do livro. O leitor poderá pensar que é mais fácil demonstrar emoção através do terror de qualquer pai e mãe. É um tema sempiterno, mas são precisas mãos hábeis para ministrar ritmos, provocar dissonâncias sem abdicar da homogeneidade, provocar os sentimentos do leitor e puxá-lo para dentro do texto. Em suma, é necessário ter profunda compreensão da inimaginável dor de se perder um filho e de como demonstrá-la em prosa.
Maggie O’Farrell vingou-se da morte de excelsa forma: pegou na literatura, resgatou o nome e deu-lhe vida.  
“Hamnet” é um dos melhores livros que lerá em 2021 e ficará na sua memória durante muito tempo. É Literatura em elevado grau de pureza.  

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados