‘Happy End’, de Michael Haneke, e o charme indiscreto da burguesia
Haneke serve-se do Live do Facebook para conferir um lado algo creepy a um estudo de personagens que acabam nos fazer recordar alguns dos seus filmes anteriores. E assim pisca o olho à Palma e a Almodóvar.
Quem não esboçou um sorriso suspeito e enigmático ao saber que Michael Haneke preparava um filme com o título sugestivo Happy End? E quem não desejou conscientemente que se concretizassem todas as fortes ironias que se antecipavam? Seguramente, muitos de nós. Ainda que o mestre austríaco, nascido na Alemanha, estivesse preparado para nos tirar o tapete a todos aqueles que já começavam a construir o seu filme mental. Mesmo sem satisfazer todos, obteve o aplauso no final da projeção e coloca-se no pelotão da frente para a shortlist dos potenciais candidatos a Palma. Ao lado de Loveless, do russo Zvyaginstev e do arrebatador 120 Battements Par Minute, de Robin Campillo. Pelo menos, na nossa lista, em que também o sueco The Square, de Robert Ostlund também espreita.
Desfolhando este prenunciado ‘final feliz’, percebemos como Haneke se serve da comunicação século XXI para nos envolver no seu casulo de intriga familiar, suavemente burguesa. São os chats no Face, os vídeos no youtube, as falsas confissões de amor para ver ‘quem pica’. De resto, a imagem inicial (e a final também) é ocupada com o ecrã vertical de um smartphone que deixa impressa alguma inquietação juvenil. De resto, este será o confronto entre várias as gerações de uma família burguesa de Calais.
Percebe-se esse discreto charme, essa discreta sobranceria social, de certa forma evidenciada já em O Lenço Branco, a primeira Palma de Ouro de Haneke, em 2009. Tudo segue num crescendo até ao choque final. Há também a revisão da matéria dada em Amor, a segunda Palma de Ouro, em 2012, com o intenso e enigmático Jean Louis Trintignant a regressar para preparar o opus da sua personagem.
Naturalmente, Haneke prossegue num registo naturalista em que tudo parece correr bem, embora se pressinta aquela inquietação miudinha. Aqui dada pela intensidade do olhar (mas não só) da jovem promissora atriz Fantine Harduin, no papel de neta do patriarca, com quem consegue manter uma certa afinidade. E, claro, temos também Huppert a fazer de Huppert, o que significa aquela energia intermitente, por vezes incontrolável.
Happy End mostra-nos como no meio do abismo social e moral, há quem consiga manter uma cara limpa. Mas isso vem com algum custo.
Crítica escrita por Paulo Portugal, publicada no nosso parceiro Insider Film