Harold Bloom: o homem que ensinou a ler
O problema, em alturas como esta, é sempre o mesmo: como agradecer. Como retribuir o tanto que alguém nos deu sem nunca nos conhecer; como transformar essa dádiva numa proporção justa, benéfica para ambas as partes. Como dizer o que nos aconteceu e como nos aconteceu e como, depois desse acontecer, os nossos olhos se abriram para uma luz que nunca tinham visto e que estava ali, mesmo à nossa frente. E sob essa luz, tantos e tantos mundos à nossa espera.
Como agradecer a quem nos ensinou a ler, outra vez?
A resposta é fácil, de tão óbvia e imediata: todos os agradecimentos serão poucos. Mas são necessários e é isso que agora faço, da forma modesta e muito imperfeita que estas linhas transmitem.
Morreu Harold Bloom. Os factos, a sua vida, por esta hora já os sabemos. Bloom era um extraordinário crítico literário, possuidor de conhecimentos enciclopédicos e alguém que colocava o coração em tudo o que escrevia e defendia. Era também por isso um pedagogo fascinante, maior do que a vida e que transmitia o seu entusiasmo a quem o lia ou ouvia.
Ninguém poderia ficar indiferente a frases como “Shakespeare é Deus”. Uma dessas frases – uma crença profunda que Bloom defendeu contra tudo e todos, usei-a já várias vezes nestas crónicas, reparo agora: Shakespeare, o homem que nos inventou. O inventor do humano, diria o mestre.
Bloom foi também um homem de grande coragem. Desafiou da melhor maneira a ortodoxia académica e cultural vigente, sem medos ou reservas. Não foi fácil proclamar a superioridade de um cânone ocidental que incluía nomes como Shakespeare, Kafka, Chaucer ou Dante (o meu amor por este autor devo-o ao homem) num mundo que crescia cada vez mais para o estudo das minorias deixando para trás um óbvio legado maior. As críticas foram imediatas: todos os autores defendidos por Bloom eram brancos e mortos. A crítica literária, completamente devedora do flagelo francês do estruturalismo e a inanidades como a “morte do autor”, proclamada por Barthes, não via com bons olhos um homem que desprezava a análise do texto pelo texto e incluído nas correntes políticas, sociais e histórico-económicas em que era escrito. A essa “Escola do Ressentimento”, como ele a baptizou – e que incluía multiculturalistas, feministas, marxistas e neoconservadores – Bloom contrapunha a leitura pelo prazer estético, longe da propaganda ou da mensagem. “Politicizing literary study has destroyed literary study, and may yet destroy study itself”, escreveu em 1997 no prefácio a A Ansiedade da Influência (1973), um dos seus livros mais importantes e onde apresentou a teoria de que toda a poesia – e por extensão, toda a criação literária – era uma resposta ou uma defesa a um poema anterior. Uma teoria que deve muito ao Édipo freudiano: escrevemos para matar quem nos antecede e influenciou e encontrarmos enfim a nossa voz.
Mas havia mais: Bloom escrevia sem jargão académico, com uma preocupação pela forma que de imediato criou anti-corpos nos académicos ortodoxos. A sua escrita é reminiscente dos grandes exercícios de estilo e uso da língua que eram os panfletos ingleses no século XVIII – época que, não por acaso, era uma das preferidas do crítico. Todas as suas escolhas pareciam ir propositadamente contra os escolhos da crítica vigente: ao New Criticism de Eliot e outros – árido e analítico – respondia com uma imensa paixão pelos Românticos, então completamente desacreditados. E o que mais doía à comunidade académica: o homem era um best-seller. Os seus livros vendiam e muito – facto absolutamente impensável para os seus adversários, que consideravam que para ter credibilidade era necessário obscuridade.
Ah, Bloom foi um grande homem. Excessivo, polémico, falstaffiano por vezes. A sua velocidade de leitura e de apreensão do texto era lendária, a ponto de vários amigos dizerem que não era boa coisa assistir a Bloom lendo. Sabia de cor muitíssimos poemas, e o Shakespeare todo. Repito: todo.
E faz tanta falta. Há pouco tempo, num festival literário a que tive o prazer de ser convidado, ouvi um poeta que não irei denunciar repetir a velha ladainha estruturalista da “a análise antes da interpretação”, a propósito da forma como deveríamos olhar para um poema. Pensei: “Harold, eles vivem”. O que Bloom combateu está agora no seu auge: a arte tem de ser propaganda, tem de ter uma mensagem política ou social relevante sob pena de não ser considerada arte ou, no melhor dos casos arte menor. A possibilidade de ser apenas arte – arte, prazer estético solitário e inútil – parece estar excluída.
Senhor Bloom, este seu soldado vai tentar continuar a luta com as suas fracas possibilidades. É o mínimo que posso fazer para retribuir quem me ensinou a ler, quem inoculou a paixão sustentada da literatura e dos autores.
Senhor Bloom: obrigado.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.