‘Hereditary’: e assim nasce um clássico do cinema de terror
Hereditário, ou em inglês Hereditary, tem o hype que merece, mas não precisa do estardalhaço dos slasher movies ou navegar no alguidar do torture porn, pois nas veias corre-lhe já o sangue de um clássico. Se bem que beba de forma hábil em Exorcista, Shinning, Rosemary’s Baby ou mesmo O Sexto Sentido e até Babadook. Sim, doravante quando lhe perguntarem what’s your favourite scary movie, esta estreia de Ari Aster promete baralhar as coisas.
O jovem realizador americano Aster confunde-nos ao confessar que se inspirou mais no clássico de 1989, de Peter Greenaway, O Cozinheiro, o Ladrão, a Mulher e o Amante Dela. Por esta não esperávamos! Quem sabe não estamos em presença de um novo Shyamalan? Curiosamente este filme mantém estranhos laços com esse ramalhete, mesmo que não ouse pedir-lhes vassalagem. Mas vamos com calma, sim? Convém manter alguma frieza ao descobrir este medo hereditário. Até porque pode apetecer voltar a ver.
Quando se aborda o género do cinema de terror, pretende-se almejar aquela centelha de medo genuíno, aquilo que nos faz vacilar. Nada melhor que um drama psicológico claustrofóbico no interior da família para apimentar as ideias. Um conceito que Aster parece dominar, desde logo bem ilustrado logo no plano inicial em que a câmara avança lentamente para uma casa em miniatura que se dissolve no quarto do jovem Peter (o multifacetado Alex Wolff, lembram-se dele no recente Jumanji?), um adolescente perturbado que prefere dissimular as suas angústias numa nuvem de fumo de cannabis. Aliás, será durante uma festa em que é obrigado a levar a irmã mais nova, Charlie, numa prestação incómoda e arrepiante de Milly Shapiro, que algo de indizível acontece. E depois há Toni Collette, numa torrente de energia, capaz de demonstrar o maior amor, mas também raiva. A Gabriel Bryne compete o papel de equilíbrio familiar nesta família muito disfuncional. Vá, quase uma espécie de Família Adams, se quisermos acrescentar mais uma referência.
De resto, é mesmo pelo lado hereditário que tudo começa. Ou seja, com a notícia no jornal do óbito da matriarca, uma mulher espiritual e espirituosa. Uma médium. Se bem que os genes passaram para os descendentes. Desde logo para a filha Annie (Toni) cujos acessos de insónias a levaram a quase matar os filhos pelo fogo durante uma deambulação nocturna, mas também a estranha Charlie que não se parece sentir bem no seu corpo. E Peter a quem está reservado um final inesperado, embora talvez a parte menos conseguida do filme. Felizmente sem gritar que vem aí uma sequela, embora, como se sabe, tudo é possível, sobretudo depois do assalto às bilheteiras para ver (e rever) esta história de terror psicológico familiar.
É quase tudo muito bom em Hereditário. Desde logo, a robustez narrativa que entrelaça um belo exemplo de terror old school ancorado na perda e na culpa, subjugado pelo score arrepiante de Colin Stetson (assinou O Primeiro Encontro ou 12 Anos Escravo) e até pelo aconchego de Ann Dowd (a tia Lydia da série The Handmaiden’s Tale). Embora a certa altura apeteça perguntar: mas isto está mesmo a acontecer ou estamos a viver uma espécie de pesadelo com corpos decapitados, transformados em formigueiros. Ou será que fumámos também aquelas coisas? É que, só para baralhar, há ainda a considerar um lado de tragédia grega de Sófocles, em que essas miniaturas acabam por revelar os cenários ideais. Se calhar tudo se passa em casas de bonecas onde o sobrenatural acaba por se agigantar.
Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt