“Hipertexto” – Festivais Gil Vicente, por Aura da Fonseca e David J. Amado

Durante os Festivais Gil Vicente 2025, estará ativo o “Hipertexto”, que nos acompanhará ao longo de duas semanas, colocando artistas (12 vozes do panorama teatral português) a dialogar entre si, em formato de uma imaginada correspondência por escrito, a partir de um espetáculo que tenham presenciado no âmbito do festival. É assim esperado que novas portas se abram para outros mundos, outros modos de ver, num tempo em que escasseia a escrita sobre espetáculos para lá da nota de agenda e da nota de intenções criativa. A Comunidade Cultura e Arte publica dois desses diálogos.
Hipertexto a partir do espetáculo “Corre, bebé!” de Ary Zara e Gaya de Medeiros, apresentado no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, em 06/06/2025, no âmbito dos Festivais Gil Vicente, de Aura da Fonseca e David J. Amado.
[08:51, 07/06/2025] David J. Amado: Bom dia Aura! Espero que tenha chegado bem no Porto! 💜🌻 Quais são os seus pronomes?
[10:21, 07/06/2025] Aura: Bom dia, David! Cheguei sim. Os meus pronomes são ela/dela e os teus?
[11:19, 07/06/2025] David J. Amado: Eu uso ele 👦🏾 Quer começar? Podemos escrever ao longo do dia.
[14:54, 07/06/2025] Aura: Desculpa a demora em responder-te, estive numa reunião, mas podemos começar sim 🙂
[14:56, 07/06/2025] David J. Amado: Fico matutando essa ideia de “quebrar o vínculo com o pai” na performance…mas no momento de tristeza e solidão, a Gaya acaba voltando pro mesmo pai que negou ela a vida toda.
[14:58, 07/06/2025] David J. Amado: Aí fiquei pensando, no fim das contas, mesmo depois da destruição do que a gente era, e de todos os jeitos novos que a gente inventa pra existir, será que no fundo a gente vai ser sempre filho dos nossos pais?
[15:06, 07/06/2025] Aura: Eu acho que depende bastante de cada pessoa, tenho amigues, sobretudo queer/trans, que quebraram mesmo os laços com a família e outres que não, acho que também depende das fases da vida em que nos encontramos.
[15:08, 07/06/2025] Aura: No meu caso eu precisei de alguma ruptura e afastamento quando emigrei aos 18 anos, mas foi engraçado que ao voltar a Portugal e ao conviver com a família do meu namorado, isso levou-me a reconectar com a minha.
[15:14, 07/06/2025] Aura: Acho que apesar de todas as complexidades e dificuldades em lidar com famílias biológicas, existe um laço e um crescimento que fizemos ao lado delas que é difícil apagar que me leva a pensar que no fundo a Gaya, como a maioria de nós, procura o reconhecimento, orgulho e até mesmo o afeto que teve em bebé/criança.
[15:28, 07/06/2025] David J. Amado: Reconhecimento, orgulho e afeto. Eu também precisei dessa ruptura que você falou.
[15:30, 07/06/2025] David J. Amado: E é curioso, no contexto da peça, como tua volta pra Portugal te fez reconectar com a sua família mesmo estando rodeada de outra família que não era a biológica. Porque no fundo, Portugal também é teu berço, né?
[15:31, 07/06/2025] David J. Amado: Do mesmo jeito, na construção daquele futuro a três, com Ary, na construção do berço do bebê, a Gaya foi puxada pra infância. E no fim, tudo que ela queria era a aprovação e o aconchego do pai.
[15:47, 07/06/2025] Aura: Exato, eu nasci numa cidade perto do Porto… não foi o melhor contexto, mas também não o pior.
[15:49, 07/06/2025] Aura: É engraçado que tenhas pensado que tudo o que ela queria no final era a aprovação e aconchego do pai, eu acho que estava lá isso, mas o que mais ressoou em mim, para além das famílias biológicas, foi a importância das famílias escolhidas, o Ary e aquela possibilidade de bebé representam isso para a Gaya e vice-versa.
[16:08, 07/06/2025] David J. Amado: Claro! Eu também pensei muito na força das famílias escolhidas. Mas confesso que esperava que a possibilidade (nesse caso, de um bebê) e, mais amplamente, de um futuro nos próprios termos da Gaya de do Ary, fosse suficiente pra substituir a família de origem e toda a dor que vinha com ela.
[16:10, 07/06/2025] David J. Amado: De certa forma, gostaria de acreditar que, ao criar um novo futuro totalmente desligado do passado, a gente tem o poder de reescrever o que ficou pra trás. Ou se não reescrever, ao menos redistribuir o peso que o passado carrega.
[16:11, 07/06/2025] David J. Amado: Só que, não dá para escapar das nossas origens. Nem da família que deixamos pra trás. Essas pessoas continuam vivas dentro da gente, mesmo quando a gente tá ali, inventando um novo amanhã que, na superfície, parece não ter nada a ver com eles.
[16:20, 07/06/2025] Aura: Acho que há um trabalho grande das nossas gerações, mas que já vem doutras anteriores, de tentarmos não cair nos mesmos erros que os nossos pais cometeram… contudo está no nosso sistema. Ainda assim, acredito que é possível com muito unpacking, terapia e vontade de sermos melhores versões de nós mesmes
[16:27, 07/06/2025] Aura: Mesmo quando essas pessoas da nossa família já estão mortas elas podem ter um grande poder sobre nós. Existem fatores incorporados em nós sim, mas mesmos esses podemos escolher trabalhá-los e não reproduzir.
[16:32, 07/06/2025] Aura: Acho que a Gaya e o Ary fazem-no na peça. Existem várias relações que mesmo estando prestes a terminar, decidem ter filhes às vezes como tentativa de resolver o casamento. Isso pode levar a várias consequências negativas e, inevitavelmente, a um divórcio a meu ver. Elus optaram por reimaginar outras formas de família em que es progenitores podem ter vidas com outras pessoas e ainda assim criarem e amarem sue bebé.
[18:28, 07/06/2025] David J. Amado: A morte da minha mãe no ano passado me mostrou o quanto dela vive em mim. Depois de tanto tempo dentro de uma relação muito conturbada, eu cheguei a pensar que o câncer, de forma irônica, ia nos salvar. Ia abrir uma brecha, criar uma nova possibilidade pro pouco futuro que a gente ainda tinha.
[18:28, 07/06/2025] David J. Amado: Mas como o Ary disse na peça: “a fantasia era melhor que a realidade.”
[18:29, 07/06/2025] David J. Amado: Já agora, tem outra coisa que me pegou muito na peça: a colocação do corpo grávido como objeto de desejo sexual. Ainda mais nesse contexto: o corpo de um pai grávido.
[18:32, 07/06/2025] David J. Amado: Do meu ponto de vista (bem homossexual, rsrs), quando penso no corpo cis-feminino grávido como objeto de desejo, vejo muito essa fantasia dum corpo “já conquistado”, “domado” pela ação dum homem viril e cis. Um corpo num estado de vulnerabilidade, que reforça essa ideia tradicional da “mulher” enquanto objeto reprodutivo e disponível.
[18:34, 07/06/2025] David J. Amado: Como é que você, sendo uma mulher trans, percebe essa representação do corpo grávido, do pai grávido na peça e o desejo ao redor disso? Te atravessa de algum jeito específico?
[18:45, 07/06/2025] Aura: E não criou? Às vezes momentos de fragilidade podem ajudar as pessoas a se unirem, mas nem sempre…
[18:53, 07/06/2025] Aura: Eu achei piada a essa cena, acredito que para várias pessoas seja objeto de fantasia e, como mencionas e bem, em certos casos, de controlo também que pode ser exercido por ambas as partes. Enquanto pessoa trans e queer ter uma gravidez biológica sempre ficou fora das possibilidades. Ainda que não seja impossível, decidi que não quero. Preferiria mil vezes adotar. A única fantasia que tenho em relação a isso é a impossibilidade de eu engravidar kkk
[20:01, 07/06/2025] David J. Amado: Não criou, não…Porque essa fantasia de nos reunirmos era só minha. E no fim das contas, a realidade que a gente de fato compartilhou era muito pior do que qualquer sonho que eu tenha inventado.
[20:03, 07/06/2025] David J. Amado: Essa questão de sentir-se empoderade por ser o objeto desejo é mesmo central quando a gente fala sobre “male gaze”. Mas num contexto trans, com a possibilidade de um pai grávido numa relação com uma mãe trans, aí já vira outra coisa. Porque ali já não é só subverter o olhar, é construir um novo.
[22:05, 07/06/2025] Aura: Sinto muito.
[22:11, 07/06/2025] Aura: Sem dúvida, essa construção de um novo olhar estava também presente na terceira pessoa / bebé crescide que filmou o espetáculo todo, apesar de só no final ser partilhada essa visão e que terna foi!
[11:29, 08/06/2025] Aura: Lembrei-me também do título da peça, “Corre bebé” que é curioso, pois ume bebé no máximo gatinha ou começa a caminhar, que me leva a dois pontos: um de fuga, como quem foge de algo; e outro de aceleração, como alguém que tem de amadurecer rapidamente. Eu acho que fui um pouco de ambas as versões, não logo em bebé, mas em adolescente. Tu sentiste o mesmo?
[11:41, 08/06/2025] David J. Amado: É muito interessante essa pergunta porque, quando vi o título pela primeira vez (sem ter assistido à peça e sem ler a descrição) eu logo associei a uma corrida de fuga. E como não sabia que o espetáculo era sobre maternidade/paternidade, achei que “bebê” era só um apelido carinhoso entre dois adultos.
[11:43, 08/06/2025] David J. Amado: Mas depois de assistir, concordo muito com o que você disse, da fuga e da aceleração, mas acho que tem uma terceira camada também no título. Algo do tipo: “corre, bebê, e chega logo. A gente precisa de você aqui.”
[11:45, 08/06/2025] David J. Amado: Tem uma urgência aí que não é só o desejo de ser mãe ou pai. Como Gaya disse no início havia um elefante entre eles, e acho que a ideia de ter ume bebê, de criar uma nova família, um novo futuro, acabou surgindo também como tentativa de cura.
[12:33, 08/06/2025] Aura: Verdade, também pode ser isso! Tu já consideraste ter filhes?
[12:33, 08/06/2025] Aura: Eu sinto que é algo muito colocado de parte tanto pela sociedade como pelas próprias pessoas queer, contudo pode haver uma cura coletiva aí que nos permite visionar esse acontecimento fora de um padrão normativo, com uma nova visão de futuro, em que realidades de mono ou multiparentalidade fazem parte.
[14:24, 08/06/2025] David J. Amado: Sempre quis ser pai desde muito cedo. Porque nunca tive um, e também porque nunca tive uma família nuclear sólida. Mas apesar desse desejo, nunca consegui me imaginar casado com um homem, com filhos e uma casa. Esse tipo de sonho é tão tradicional. Se nem as mulheres cis heteros da minha família conseguiram realizar esse sonho, como é que eu (sendo gay, num mundo gay muitas vezes tão homofóbico e anti-negro) conseguiria? Sinceramente, por muito tempo pareceu mais fácil eu engravidar mesmo do que viver essa utopia doméstica.
[14:25, 08/06/2025] David J. Amado: Sempre pensei em adotar, ou então criar jovens em situações de risco como eu fui. E isso ainda é mais do que um desejo, é uma dívida cívica.
[14:26, 08/06/2025] David J. Amado: Entretanto, recentemente uma amiga lésbica me pediu para doar esperma para ela realizar o sonho dela de ser mãe. Ela está com dois meses de gravidez agora. Então se tudo correr como previsto, vou ser pai biológico. Isso não era nada que eu esperava da vida.
[14:28, 08/06/2025] Aura: Compreendo-te e sinto o mesmo!
[14:28, 08/06/2025] David J. Amado: Esse novo capítulo da minha vida me faz pensar nessa ideia de cura que você mencionou. Talvez ser pai não cure o meu passado, mas poder ser um bom pai pode sim quebrar o vínculo com a paternidade tóxica, e sim contribuir para curar uma pedacinho do mundo.
[14:29, 08/06/2025] Aura: Uau parabéns! É sobre essas novas formas de parentalidade que eu falava que são super bonitas e especiais!
[14:29, 08/06/2025] David J. Amado: E tu? Como imaginas essa parentalidade queer na tua vida, se é que imaginas? Ser pai/mãe na nossa comunidade também tem muitas formas de existir e muitos significados.
[14:34, 08/06/2025] Aura: Eu sou mãe de uma cadela muito fofa que está agora mesmo sentada no meu colo. Tenho dois sobrinhos que já me cumprem o desejo de ser tia/madrinha cool e quero estar ainda mais presente deles.
[14:34, 08/06/2025] Aura: Acho que se algum dia adotasse uma criança seria mais para lhe proporcionar um futuro melhor do que cumprir um desejo meu também.
[14:46, 08/06/2025] David J. Amado: E para ti, como seria esse “futuro melhor”? Achas que se aproxima do que Gaya e Ary queriam construir para o bebê na peça?
[15:17, 08/06/2025] Aura: Acho que a forma como visiono é diferente. Eu estava muito curiosa para ver a peça, primeiro porque a Gaya e o Ary são minhes amigues, mas também porque, por coincidência, tenho vindo a conceber uma peça a partir do livro “Um Apartamento em Urano” de Preciado em que uma família queer foge da Terra num cenário pós-apocalíptico à procura de um lar em Urano. Será uma narrativa bem ficção-científica transfuturista, em contrapartida à que elus criaram que lida com realidades bem atuais e necessárias. Acho que talvez o ponto em que se cruzam é no momento final de proporcionar calma e esperança para as futuras gerações, algo que me relaciono muito e que é o que quero oferecer às pessoas, especialmente às que me são mais próximas.
[16:12, 08/06/2025] David J. Amado: E aí está esse tema da fuga novamente. Sendo assim, você acha que para pessoas queer terem um futuro melhor, o caminho é fugir da realidade presente?
[17:53, 08/06/2025] Aura: Eu acho que o presente já é feito de várias realidades, cada pessoa tem a sua que geralmente está interligada às pessoas que a envolvem e aí temos uma realidade partilhada. Ou seja, não acho que seja necessário fugir do presente, mas simplesmente criarmos a realidade em que nos sintamos confortáveis em habitar.
[17:59, 08/06/2025] Aura: Já o espetáculo que visiono tem o aspeto de fuga porque ele acontece num outro tempo, em que por causa da destruição da Terra a cargo do ser humano, essa família foge para Urano.
[20:39, 08/06/2025] Aura: Tu sentes que é necessário as pessoas queer fugirem da realidade presente para encontrarem um futuro melhor?
[20:44, 08/06/2025] David J. Amado: Sinceramente, não sei se é possível criarmos uma realidade confortável sem algum tipo de fuga, quando vivemos à margem. Porque a estrutura atual foi desenhada para nos excluir. Então acredito, sim, que muitas vezes é uma questão de “correr”, como diz o título da peça. De escapar como se a nossa sobrevivência dependesse disso. Porque, no fundo, depende.
[20:45, 08/06/2025] David J. Amado: E talvez seja nessa fuga que a gente inventa (ou constrói) um novo berço onde possamos finalmente viver e conviver sem medo, com reconhecimento, orgulho e afeto. 💜🌻
[21:14, 08/06/2025] Aura: Sem dúvida! Para acabarmos em modo de invenção, decidi pedir ao Chat GPT para criar uma imagem de como seria ume bebé da Gaya e do Ary, de forma a imaginar essa possibilidade de futuro. Aqui vai, corre bebé!
