“Hipertexto” – Festivais Gil Vicente, por Bruno dos Reis e Guilherme Gomes

por Cronista convidado,    17 Junho, 2025
“Hipertexto” – Festivais Gil Vicente, por Bruno dos Reis e Guilherme Gomes
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Bruno dos Reis e Guilherme Gomes escrevem, depois de verem “Viagem a Lisboa”, Joana Cotrim e Rita Morais, no dia 13/06/2025 no Centro Cultural Vila Flor, Guimarães.

Guilherme: Antes de me despedir, Bruno, gostava de te mostrar umas fotografias de família. Este sou eu quando tinha dez anos. Estes são os meus avós. Os meus pais. O meu tio Paulo. O meu avô Hermenegildo e a minha avó Ausenda, que não cheguei a conhecer. Estão aqui com a minha mãe e a minha tia. Na casa que tinham em Moçambique. A minha mãe nasceu lá. Às vezes falava-me da sua infância. Das colegas de turma, dos recreios, da fruta. Havia saudade e mágoa nas histórias da minha mãe. Viajar para Portugal foi o fim de uma vida, o início de outra. E foi só o princípio de uma série de perdas na vida da minha mãe: o lugar da infância, as suas referências, a sua própria mãe. Não é incrível como tanto da nossa vida é semeado por outros? Agora vais entrar no carro, e vais conduzir durante não sei quanto tempo. E sabes para onde vais, ou pelo menos decides o caminho. Às vezes, parece que vamos no lugar de passageiro com um volante nas mãos. E já não sabemos se acreditamos que conduzimos porque o carro vai para onde queremos ou se queremos ir para onde o carro foi.

Ontem estava a tentar adormecer o meu filho, e não conseguia. Ele ainda não aprendeu palavras para me dizer, e eu ainda confundo por vezes os olhares e os choros dele. Se ele falasse, seria tudo mais fácil. Não é? Poderia dizer o que quer, o que acha, o que o inquieta. Mas será que dizemos sempre o que pensamos? Nós passámos a tarde toda a falar sobre o espectáculo “Viagem a Lisboa”, que é sobre tanta coisa que nem sei ao certo sobre quê afinal. Sobre tantas dores e aflições e contradições. Mostrar-te a casa da minha família, falar-te da minha mãe e avós e tia, do Sebastião e seus sons antes das palavras é uma forma de te falar do espectáculo. Dizer, sim, mas também mostrar o que penso. Mas não te quero atrasar. Conto-te mais a meio da tua viagem. Páras para descansar. É bom. Não me disseste: para onde vais, afinal?

Bruno: Não sei para onde vou, sei que não conduzo. E talvez seja por isso que gosto tanto de ir. Entendes? Não é nada poético isto, é bastante simples. Gosto de andar à passageiro. Mas vou contar-te uma história, que é a minha forma de te devolver a gentileza de me teres falado sobre as tuas fotografias. Eu não tenho muitas fotografias de que me lembre. Talvez nem tenha muitas, de facto. Até o 5º ou 6º ano tenho uma anual, durante o Carnaval. Irremediavelmente mascarado, irremediavelmente triste. O Luís Araújo uma vez disse-me: “o meu crescimento foi-me dado pelas minhas fotografias de carnaval”, e sinto essa frase como minha, e talvez seja por isso que o sinta como meu amigo. Mas em frente: o que te queria contar é que o meu Padrinho, que em muitas medidas foi o meu pai, ou um dos meus pais, ficava horas inteiras à janela, em pé. Às vezes fumava, às vezes não, embora estivesse sempre a fumar. Sempre assumi que estivesse a pensar em Angola, onde terá deixado mais do que aquilo que lá ficou. Nunca lhe perguntei em que pensava, e nunca assumi que fosse simplesmente a paisagem à sua frente, embora julgue que a paisagem o ajudasse em alguma coisa. A relação da minha família com o retorno sempre foi essa: ninguém fazia muitas perguntas, ninguém falava muito do assunto, mas a paisagem das pessoas à mesa, durante o Natal ou as festas dos miúdos, ajudava em alguma coisa. Entendes? Não é nada poético isto, é muito simples. E acho que o espectáculo “Viagem a Lisboa” pode ser mais ou menos a mesma coisa. Ao meu lado alguém conduz e eu não lhe falo, nem penso nela: penso em ti e na tua criança e na tua família. Não sei o que isto quer dizer, mas enquanto espero pela tua resposta vou olhando para a paisagem.

Guilherme: E se estivéssemos no lugar do nosso pensamento? Estou num restaurante de comida moçambicana. Aqui ao lado, há uma reunião de família. Acho que é a família da companheira do dono do restaurante. Estão aqui como se estivessem em casa. E eu ouço tudo o que dizem uns aos outros. Acho que o irmão dela está à procura de tudo o que lhe faltou a vida toda. Acho que a outra irmã dela está chateada consigo, com a sua vida, com a sua roupa, com os seus pais, com a música que está a tocar, com a comida. Acho que se estão a partir. A partir aos bocados, não a partir para regressar. Estão a quebrar-se. Visto daqui é uma doença estranha, a desta família. São violentos uns com os outros. Alguém ao meu lado está a rir-se de qualquer coisa que um deles disse. Eu vou escrevendo na toalha da mesa algumas frases. Um deles disse que é preciso usar as palavras como os materiais para construir uma casa. A mãe disse que aprendeu a calar, a viver para dentro. O pai conta um sonho terrível ao filho. Um sonho de desolação. De destruição. Há alguém que insiste: isto não é sobre nós. Isto não é sobre nós. Sim, dou-lhe razão: não é sobre eles. Acho que os pais dela vieram de Guimarães. E ocorre-me agora que há uns dias, no dia seguinte a este que te estou a descrever, em Guimarães, precisamente, um homem foi agredido por um neonazi. A notícia diz que a perseguição durava há um ano. O agressor colava autocolantes com discurso de ódio na porta da vítima, fazia vídeos a incentivar ao ódio contra pessoas de origem e religião diferentes. Ao ódio. Que engraçado: percebo agora que esta família aqui ao lado transmite muito mais ódio que amor. Parece que há qualquer coisa subterrânea, qualquer coisa calada, talvez seja o que os está a quebrar, qualquer coisa que se alimenta daquilo que odeiam uns nos outros. Para ser como a história do senhor de Guimarães, só falta que alguém bata em alguém. Esperemos que não aconteça. É triste, ver como um conjunto de vidas pode ser alimentado só por dores e sofrimento. Tento conseguir a atenção do dono do restaurante. Quero pedir a conta e pagar. Mas ele está com o olhar perdido. Vou ter de me levantar e ir até ele. Mas não me atrevo. Se calhar devia. Se calhar isso ia interromper o ciclo de ódio que está a nascer naquela mesa. Se calhar, às vezes é esse o nosso papel: interromper os jantares de família que estão a azedar com uma pergunta banal: desculpe, podia trazer a conta? Se calhar é isso mesmo. Se calhar vou lá. Bruno,

Bruno: deixa-me interromper-te, nesse caso. Uma família não é um pouquinho isso? O que escolhemos calar para garantirmos um determinado nível de companhia? Uma relativa paisagem hipotética? Poesia à parte, pergunto honestamente, porque sinto que é mais ou menos isso que é a minha. Por vezes falam de Angola, sim, mas nunca da experiência de quando voltaram. Falam de correrem para a rua quando chovia, das casas geminadas e dos quintais paralelos sem muros, dos amigos que lá ficaram, mas nunca falam da experiência de voltar. Até porque alguns deles não estavam a voltar para lugar nenhum: iam, e embora lhes dissessem que era para casa, a maioria não sabia para onde. A paisagem, para essa gente, será sempre outra coisa. E imagino que sim, que o silêncio por cima disso acabe por o tornar em ódio. E, de uma certa maneira, mesmo que custe dizê-lo, penso que deve ser dito: um país que vive da saudade, arrisca-se sempre a ser um país que odeia. Repara: no espectáculo que vimos há um momento para mim significativo – quando aparece o vídeo da família feliz, por cima de uma família destroçada, escolhem fazê-lo a partir da estética de 1960 ou 70. E porquê? Parece que a felicidade fica sempre atrás de nós. A Inês Barahona, uma nova amiga que fiz durante os festivais, ensinou-me um adágio: “estamos sempre atrasados para a hora” só que ao invés disso nos fazer sentir urgência, parece que nos empurra, tragicamente, para a inércia da impossibilidade. Parece que baixamos sempre os braços aos nossos fantasmas. E se eles, à nossa frente, são tão translúcidos, porque é que não é através deles que vemos o nosso futuro? Talvez devesse aprender a conduzir, eu. Acho que sim, que é isso que vou fazer. E sabes outra coisa? Eu que nunca gostei de crianças, de olhar para elas, de as tentar fazer sorrir – gostei de te ver a ti com a tua, com o teu. Num festival em que tantos espectáculos parecem ter sido sobre a família, a mais feliz que eu vi foi a tua. E é nisso em que vou tentar pensar, durante a viagem. Ou seja, para onde é que eu irei, quando conseguir ir por mim. Pela minha janela, é o que eu vejo. Antes de fecharmos, diz-me o que vês pela tua a ver se o consigo imaginar.

Guilherme: Da minha janela vejo um jardim. Normalmente é isso que vejo. E quando não há o jardim, tento inventá-lo. E penso sempre na frase com que o Voltaire termina o “Cândido ou o Optimismo”, que nem vou citar por risco de enjoar toda a gente pela repetição. Mas eu ia dizer, Bruno, antes de me interromperes – e talvez tenhas razão sobre as famílias serem todas assim, que sei eu – eu ia dizer, Bruno, parece impossível, agora que tenho um filho, mas, Bruno, desses sentimentos contraditórios que estavam a nascer na mesa ao lado, dos seus gritos e partilhas e sonhos terríveis, disso tudo nasceu uma coisa, um gesto: a mãe bateu na filha. Se calhar normalizámos isto, e uma chapada é até uma coisa didática no entender de muita gente. Mas faz-me impressão, agora que lembro, agora que penso, faz-me impressão. E penso nas agressões que têm nascido do ódio, que se calhar surgem só para calar o desconforto, para acabar de vez com o que nos incomoda, talvez como coisa didática na cabeça de quem o pratica. A de Guimarães, a do Porto, a da Barraca, todas as que acontecem entre as paredes de uma casa.  Vamos lá dar uma lição a esta gente, não é o que se diz? Se ele falasse, era tudo mais fácil, não era?, perguntei-te antes de ires embora sobre o meu filho que ainda não fala. Mas falar é só o princípio. Se eu escutasse, era tudo mais fácil, não era? Afinal, até uma pessoa que ainda não conhece as palavras é possível entender, se soubermos escutar. Já estou a escrever banalidades. Estou a deixar-me levar. Da minha janela vejo o jardim. Muito bonito, é certo, mas é preciso cuidar do – Não vou dizer. Vamos ver como cresce no silêncio. Queres aprender a conduzir, tu? Depois de tudo isto, parece uma grande responsabilidade. Aonde queres ir que não haja quem te leve?

Bruno: Estava a tentar ir para a frente e tu obrigaste-me a ir para trás. Não quero mais falar sobre isso, Guilherme. E sei que parece seguir um bocadinho o costume do silêncio que nos trouxe até aqui, mas é outra coisa: quero ir para a frente. Um jardim imaginado, que seja. Quero lá saber da porrada, dos fachos, da actualidade, do Portugal de uns e da Angola dos outros. Agradeço à Rita e aos seus, que me obrigou a pensar nos meus, mas a família devia ser mais do que a transladação de cadáveres e eu gostava que escrever-te fosse mais do que sobre o espectáculo. Quando duas crianças se encontram e falam sobre a família, inventam. O meu pai é melhor que o teu, bora lá. Um primo meu tem asas e era o dealer do Cobain, bora lá. Ah, o meu joga no Benfica, oupa! É o horizonte. O Teatro preocupa-se tanto com a realidade que às vezes parece que se esquece que não é só na memória que há invenção. E nós, atrelados ao Teatro, vamos nessa bolina. Eu próprio, quando é nostalgia, pareço o homem do tambor. E, portanto, gostava que escrever-te fosse outra coisa. Uma coisa simples. Quando conheci o Sebastião, o teu filho, ele fez-me beicinho. Antes de se irem embora, passado um dia inteiro, abriu-me um sorriso. Pois bem, quando eu souber conduzir, um dia, é exactamente essa a viagem que quero fazer.

Guilherme: É a viagem que interessa.


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