Homenagem a Barbara Hammer: “History Lessons” e a história do cinema
No passado dia 16, à tenra idade de 79 anos, o mundo perdeu Barbara Hammer, uma das mais importantes cineastas norte-americanas do século passado. Se no começo da sua carreira a sua obra era vista como marginal, o mesmo não pode ser dito sobre os dias de hoje. Com o tempo, o reconhecimento da sua obra foi crescendo e prova do seu estatuto de referência na atualidade é a sua participação nos filmes Carolee, Barbara and Gunvor (2018) de Lynne Sachs e Vever (2018), curiosa triangulação das obras de Hammer, Maya Deren e Deborah Stratman, ambos sendo perfeitas ilustrações da sua influência nas gerações de cineastas que lhe seguiram. Barbara Hammer foi uma das primeiras e mais proeminentes vozes a trazer ativamente o lesbianismo para o cinema com filmes como Dyketactics (1974) ou Sisters! (1974), mudando, desta forma, a história do cinema, levando-o a sítios onde ele outrora raramente estivera. A subvalorização do trabalho desta cineasta, confinando a sua relevância ao universo falsamente apartado do cinema queer não lhe faz jus; se alguma coisa, a balcanização cultural que esta atitude evidencia – trata-se de um discreto homólogo do chavão “não tenho nada contra homossexuais, desde que não seja à minha frente!” – dá-nos a ver como a sua luta persiste.
A própria Hammer apercebeu-se da necessidade de reescrever a história a fim de albergar as perspetivas de grupos identitários até então negligenciados pelo domínio masculino, branco e heterossexual e colocou em prática esta reescritura na sua longa-metragem de 2000, History Lessons. Consistindo quase inteiramente em imagens de arquivo, o filme pretende atacar a narrativa que desde sempre e, no caso do cinema, desde a sua invenção, tentou esconder do olhar público o lesbianismo, recentrando as imagens para se focar na perspetiva destas mulheres – parafraseando Hannah Gadsby em Nanette, não bastou Picasso para abrir a cultura a outras perspetivas. O anacronismo da organização das imagens, que mistura tudo desde revistas dos anos 40 a filmes pornográficos dos anos 60, revela uma estagnação de uma atitude condenatória relativamente às lésbicas e às mulheres de um modo geral. Contudo, History Lessons é igualmente celebrativo de cada momento de emancipação e mostra até algum sentido de humor.
Ousadamente, Hammer não se limita à utilização de recursos dos arquivos de temática lésbica, mas também encena alguns momentos e apropria-se de imagens de temática diversa, desde logo nos primeiros momentos do filme, onde uma voz off torna o discurso de abertura de Eleanor Roosevelt de um congresso de mulheres num discurso sobre um congresso de lésbicas. Noutro momento, um vídeo educacional sobre um pelotão de aviadoras é alternado com um filme pornográfico com três mulheres de uniforme. History Lessons é, como grande parte dos filmes do seu género, um filme centrado na montagem – as imagens de arquivo são apresentadas não unicamente pela sua relação ao centro temático transcendente, como também pelas relações mais imediatas que estabelecem entre si. Um caso mais sombrio deste exercício prende-se com uma reencenação de uma operação policial que desmantela um bordel, sendo toda a operação acompanhada de perto por um fotógrafo, que é subitamente interrompida por um enforcamento capturado no final do século XIX, servindo assim como uma crua lembrança de que a fotografia e, por extensão, o cinema são meios que beneficiam sobretudo o agressor, pois as vítimas, por norma, estão do outro lado do olhar.
O que este filme exprime é, sobretudo, uma vontade de mudar a história. Olhar para trás e modificar o seu rumo em direção ao que se julga ser bom porto. A obra de Barbara Hammer é vasta e eclética: incluindo filmes mais ensaísticos como este ou Resisting Paradise (2003), interventivos ao nível direto da representação como os invocados no primeiro parágrafo ou ainda Multiple Orgasms (1976) e até obras cujo principal foco é a Natureza e a paisagem, como Pond and Waterfall (1982), o que dificulta, se não impossibilita, o seu resumo. History Lessons não é, pois, esse resumo, mas, a meu ver, reflete um ideal, uma forma de pensar e agir e espelha o impacto que o olhar de Hammer teve no cinema.