“How I’m Feeling Now”: manifesto da explosiva quarentena de Charli XCX
O momento extraordinário que vivemos ditou o confinamento de biliões de pessoas ao espaço privado da sua habitação. Foi, e continua a ser, um desafio que cada pessoa vive à sua maneira, com maior ou menor dificuldade, na procura de estratégias que velem pela sanidade mental de cada um e daqueles que nos rodeiam. Para o sector cultural, o golpe desta pandemia vai deixar marcas destrutivas e impossíveis de ignorar.
Mas, no meio de tudo isto, o que acontece à criatividade? Esse estranho bicho, que tantas vezes se manifesta até contra a lei da oferta e da procura. A resposta será diferente para cada artista — amador e profissional. Para a inglesa Charlotte Aitchison, conhecida pelo público como Charli XCX, a quarentena tornou-se fonte de uma profunda fertilidade musical. Não obstante ter lançado o seu último álbum em Setembro passado, Charli anunciou no princípio de Abril que iria aproveitar o tempo de confinamento forçado para criar um novo trabalho de raiz, em mês e meio. E cumpriu não só a promessa, como também a deadline.
How I’m Feeling Now é, pois, um dos primeiros grandes legados musicais criados a partir da experiência pessoal dos efeitos desta devastadora pandemia mundial. Em termos temáticos, o conceito do disco retrata as consequências emocionais do isolamento caseiro de Charli com o seu namorado ao longo dos últimos dois meses, e de como isso aprofundou a sua relação. Mas nos meandros das letras encontramos também os sinais da ansiedade, das dúvidas e das emoções negativas que acompanham este momento absolutamente único nas nossas vidas.
É uma das mais promissoras artistas da sua geração — na música pop e não só — muito graças ao propósito focado de pegar num género musical e o injectar de futurismo e de opções arriscadas, colorindo a realidade e abrindo novos caminhos à expressão artística. Embora tenha iniciado a carreira há já mais de uma década, só nos últimos anos começou a angariar reconhecimento crítico, com o lançamento do EP Vroom Vroom em 2016, e da mixtape Pop 2 no ano seguinte — ambos trabalhos que, quais autênticos manifestos, se propuseram a evoluir a música pop para o nível seguinte, através de produções ultra-açucaradas, usos abusivos e criativos do auto-tune, e uma estética sonora com sabor a novo.
A visão criativa de Charli XCX tem sido comparada a Kanye West e Beyoncé, no sentido de se rodear, qual curadora nata, de equipas criativas escolhidas a dedo, permeando os seus trabalhos com os contributos de diferentes artistas, todos pescados das vanguardas que mais se aproximam da sua intuição musical. Charli faz questão de manter uma direcção criativa apertada no meio de um conjunto alargado de colaboradores, mas os produtores do revolucionário movimento PC Music são o seu braço direito nesta etapa da sua carreira. E isto é evidente, mais do que nunca, em How I’m Feeling Now — o álbum mais violento e explosivo que lançou até à data.
Neste trabalho, o electropop é já outra coisa. Numa fusão com a eurodance e o eurotrance, e com um psicadelismo festivo que em certos momentos se torna quase nauseante — adjectivo que, note-se, se aplica aqui no melhor dos sentidos. Faixas radicalmente electrizantes interagem com outros momentos mais esparsos, em que a edição vocal se torna arma emocional poderosa. How I’m Feeling Now é um acto vencedor na forma como conjuga a natureza açucarada dos temas românticos com a dureza das contradições internas; entre o desejo, o ódio, a devoção e o desespero, Charli XCX expõe de forma vulnerável uma realidade psicológica que consegue ilustrar de maneira impactante.
Foquemo-nos, por exemplo, em “detonate” e em “enemy”, dois dos temas cujo crédito de composição é atribuído exclusivamente à artista inglesa. A primeira tem por corpo um borbulhante sintetizador, brilhante e límpido, circulando velozmente em torno de uma melodia vocal simultaneamente dócil e entristecida. Já a segunda serve-se de uma fórmula assinaladamente diferente, mais lenta e pesada, mas igualmente infecciosa e cativante. A palete de instrumentos de How I’m Feeling Now é, à excepção das vozes, quase exclusivamente electrónica; mas, assumindo a artificialidade dos meios e dos efeitos, procura-se chegar por um outro caminho à humanidade que recheia estes temas. É uma tentativa eficaz.
Autênticas bombas, como “pink diamond” e “anthems”, constituem exemplos extremos dos terrenos em que Charli XCX se quer aventurar. E o último segmento da faixa que encerra o álbum, “visions”, é uma aventura psicadélica e violenta a que a música pop não estará certamente habituada. Mas estas faixas constituem também vislumbres do horizonte de uma carreira que, tudo leva a crer, continuará a desenhar-se sem freios na criatividade. Em entrevista ao The Guardian, Charli XCX confessou que foi estranha a experiência de estar a gritar para um microfone na mesma sala em que o seu namorado montava pacientemente um puzzle. É também nesse sentido que How I’m Feeling Now se assume como um objecto artístico que define este ano excepcional. Em seis semanas, Charli criou o mais focado, intenso e coeso trabalho da sua ambiciosa discografia. Que promessa tremenda para o futuro da música pop.