‘Humanz’ e a festa de fim do mundo que não é cumprida com mestria
O episódio “Jurassic Bark” da quarta temporada de Futurama tem um momento bastante emocional na história das séries de animação. Neste episódio descobrimos que o protagonista Philip J. Fry (congelado durante mil anos no século XX por criogenia) deixou no presente tornado passado o seu cão Seymour, e ao som de “I Will Wait for You” de Connie Francis somos confrontados com a espera paciente e penosa de Seymour pelo seu dono. Esta dicotomia entre a imagem animada e a música é também fielmente encarnada pela banda virtual Gorillaz. No entanto, o percurso musical deste grupo elevou os personagens fictícios Murdoc, 2-D, Noodles e Russel a um patamar quase de existência, como se por trás dos rostos pincelados existissem mesmo aqueles personagens, desenhos de pessoas que deixam os rabiscos assumir a sua identidade. Os membros fictícios até já deram entrevistas e a sua aparência foi mudando ao longo da discografia da banda. Não são imutáveis e retratam uma sociedade que não, sendo a nossa, espelha a que habitamos. A música é difícil de categorizar mas fácil de apreciar. O projecto engloba as influências rock com uma sensibilidade pop muito bem desenvolvida, juntando também elementos do hip-hop e da música electrónica, unindo os mais variados géneros musicais.
O projecto de Damon Albarn (um dos membros dos Blur e o músico deste grupo) e Jamie Hewlett (um dos artistas por trás da banda desenhada Tank Girl e o responsável por desenhar os membros da banda) surgiu como uma piada à custa da indústria musical, a resposta cínica de duas pessoas que se cansaram de ver a falsidade construída à volta da música pop, respondendo com a criação de uma banda realmente inexistente. Mas as gargalhadas passaram para segundo plano logo após o primeiro álbum, Gorillaz, que trouxe ao mundo temas como “19-2000” e “Clint Eastwood” que hoje são imediatamente reconhecíveis. Mas foi só no seu segundo álbum Demon Days que a vertente conceptual e de crítica social se revelou, através de temas como “Dirty Harry”, “Every Planet We Reach Is Dead” ou “Fire Coming Out of the Monkey’s Head”. Os temas deste álbum descrevem dias demoníacos e a destruição da Terra pelos seus habitantes. Em Plastic Beach, o álbum que se seguiu, o universo de Gorillaz mais uma vez colide com o nosso ao reflectir sobre a poluição, o desperdício e o desrespeito pelo mundo que habitamos, num projecto que é sem dúvida o auge de Damon Albarn sob a alçada desta banda e o primeiro produzido pelo próprio, repleto de músicas fantásticas como “Plastic Beach”, “Empire Ants” ou “Cloud of Unknowing”. Antes deste projecto mais recente ainda surgiu The Fall, lançado em 2011 e produzido por Damon Albarn num iPad durante uma tour de Gorillaz, um exercício musical do artista que apesar de ter músicas prazerosas (“Hillbilly Man”, “Revolving Doors” ou “Bobby in Phoenix”) não consegue ter o mesmo impacto que os lançamentos anteriores.
Seis anos depois os Gorillaz estão de volta com Humanz. Neste novo projecto o tema é uma festa a solenizar o fim dos tempos, e, tendo em conta a lista de colaboradores extensa e diversificada, toda a gente parece estar convidada. O fim do mundo e a dependência dos humanos perante a tecnologia são referidos ao longo do álbum nos temas e através de interlúdios que vão soando no seu decorrer. O objectivo desses momentos de transição é dar um pouco mais de consistência ao álbum mas isso não é cumprido com mestria. A abordagem conceptual parece forçada e pouco orgânica, os interlúdios não acrescentam praticamente nada à narrativa do álbum e há uma falta de coesão geral a Humanz. As músicas são agrupadas de forma pouco expressiva, sem se notar um fio condutor inerente. A única parte verdadeiramente conceptual é “We Got the Power”, uma mensagem de união e esperança que conclui o álbum. Mas não há um caminho estruturado até chegar a esse momento conclusivo, e a impressão que fica deve-se principalmente à música e ao seu tema sem grande influência das músicas que se fazem ouvir até lá.
O tom apocalíptico é fielmente retratado por músicas como “Ascension”, um tema visceral com um desconforto inerente à sua batida rápida e à entrega quase gritada de Vince Staples, que apresenta um flow meticuloso e uma escrita atenta (destaque para os versos “I’m just playing, baby, this the land of the free/ (…) Where you can live your dreams long as you don’t look like me”), ou “Saturnz Barz”, munida de um teclado “assombrado” que se une bem à bateria digital. A participação do artista dancehall Popcaan neste tema dá a intensidade certa ao instrumental da música, de entrega mais “suplicada” no refrão e mais declamada e contida no verso. “Strobelite” e “Andromeda” representam a festa, o celebrar da calamidade, sendo que a primeira apresenta um bom uso de sintetizadores, frequências diferentes unidas numa exploração sonora apelativa e uma voz suave a acompanhar este instrumental, que questiona a Humanidade com uma sonoridade de quem não se preocupa muito com essas coisas, uma música consciente disfarçada de party anthem. Por sua vez, “Andromeda” e a sonoridade disco contrastam com a voz melancólica de 2-D, que dá um sentimento agridoce à música e descreve um sítio imaginado, um local onde a vida deixa momentaneamente de existir para nos deixar sentir realmente o que é vivê-la.
Além de uma fraca ligação sonora e temática entre os quinze temas que compõe a versão normal de Humanz, o álbum não apresenta a mesma destreza que Damon Albarn já revelou em adequar os artistas à música em que se inserem. Em “Charger”, a artista Grace Jones contribui de forma pacata mas perfeitamente adequada, acompanhada por uma batida munida de uma guitarra “intermitente” e um espaço sonoro construído à volta deste instrumento que é gradualmente enriquecido. Em “Momentz” De La Soul mostram o seu lado mais jocoso, divertido e de acordo com o instrumental, apesar de serem acompanhados por uma batida desnecessariamente abrasiva e berrante. Mas temas como “Submission”, que junta ao doce timbre de Kelela a faceta tresloucada de Danny Brown, ou “Andromeda”, com uma curta, tímida e passageira colaboração do rapper D.R.A.M. engolfado por uma miríade de outras vozes, não justificam a inclusão destes artistas. Há um excesso de contribuições e tendo em conta que os Gorillaz são uma banda virtual talvez faça mais sentido ter um rol de convidados e adequá-los ao seu mundo cartoon, mas neste caso há uma diluição da identidade da banda através da lista infindável de colaboradores e também músicas. “Carnival” ou a aborrecida “Sex Murder Party” não justificam a inclusão no álbum, a primeira porque acaba mal começa e a segunda porque é simplesmente um tema circular frustrante que não desperta qualquer tipo de resposta no ouvinte.
A caminho das duas décadas de existência fictícia, os Gorillaz continuam a tradição de pintar o mundo real na sua viagem animada. Mas a música cuidadosamente construída e com participações que elevam a sua qualidade tem-se vindo a perder. Em Humanz vemos cada vez mais a vontade e empenho de Damon Albarn na produção, mas a banda virtual que o consagrou como um músico à parte parece cada vez mais estar a cair no esquecimento em detrimento de um “elenco de luxo”. É um álbum que desilude, extenso sem nunca o justificar com alguns bons temas que conseguem mostrar a essência de Gorillaz (“Andromeda”, “Charger”, “Saturnz Barz”) mas que perdem preponderância no meio de faixas que estão muito aquém do potencial já demonstrado pela banda. À semelhança de Seymour que espera por Fry, esperamos pacientemente pelo retorno da glória de Gorillaz, sem nunca esquecer que para o melhor e para o pior, esta banda inventada ocupa um lugar bem real no coração.
Músicas preferidas: “Ascension”; “Saturnz Barz”; “Andromeda” e “Let Me Out”
Músicas menos apelativas: “Submission”; “Sex Murder Party” e “She’s My Collar”