Humor, a difícil arte de caminhar no arame
Deve o humor ter limites? Poderíamos debater este assunto durante dias e, seguramente, ficaríamos no mesmo ponto de partida, porque cada cabeça, sua sentença. Mas antes de irmos a esta questão, arrumemos outra, bem mais simples: a liberdade de expressão. Querem alguns convencer-nos de que há uma nova censura e que “já não se pode dizer nada”, apesar de vivermos numa sociedade em que se pode dizer quase tudo. Mas é nesse quase que está a chave desta conversa. A liberdade de expressão é um direito humano fundamental, mas não absoluto, como é, por exemplo, o direito à vida. Cessa quando se traduz numa ofensa à integridade moral, à honra ou ao bom nome de outra pessoa. Quando se ofende, calunia, difama ou promove o discurso de ódio, atacando pessoas com base na sua identidade ou raça, por exemplo. Temos liberdade de expressão, mas não podemos, de facto, dizer tudo o que nos apetece.
A questão dos limites do humor é bem mais complexa, não convocando nem consensos, nem verdades absolutas. Como qualquer expressão artística, o humor tem de ser livre, porque só assim pode atingir o seu objetivo: fazer-nos rir. E rimo-nos muitas vezes à custa de outros, é essa a sua natureza. Por isso, não há para o humor nem tabus nem questões fraturantes, até porque, quando ele é inteligente, ajuda a desmistificar ou aligeirar realidades mais cinzentas. Uma piada bem contada e oportuna sobre um defunto pode quebrar o gelo num funeral, da mesma forma que uma piada inteligente sobre cancro pode fazer rir crianças que estão na pediatria do IPO. “Obrigado pela tragédia. Preciso dela para a minha arte”, já dizia o Kurt Cobain. Que se possa fazer humor — e nos possamos rir — em relação a qualquer tema é sintoma de uma sociedade livre e saudável.
“O humor não é um álibi para alguém se comportar como um imbecil. As gargalhadas de uns não são mais importantes do que a dor de outros. A piada não está acima da humanidade, da empatia ou da decência.”
Os humoristas trabalham em cima do arame, num equilíbrio periclitante, olhando constantemente o abismo. E, como qualquer um de nós, também dão passos em falso: há piadas que, efetivamente, não têm graça nenhuma. É possível fazer comédia com os milhares de crianças mortas em Gaza, por exemplo? Se aceitamos que o humor tem de ser livre, em tese valerá tudo, mas se essa piada servir não para aliviar a dor, mas para reforçar o sofrimento de famílias enlutadas, então não é comédia, é barbárie. As gargalhadas de uns não são mais importantes do que a dor de outros. A piada não está acima da humanidade, da empatia e da decência.
Ricardo Araújo Pereira (RAP), um dos mais brilhantes comediantes nacionais, defende que “uma piada não aleija”, o que é difícil de desmentir se a compararmos com um cancro ou uma bomba. Tenho, porém, dificuldades em subscrever esta posição porque ela tende a transformar quem faz humor em inimputável e responsabilizar quem se possa sentir magoado ou ofendido. O problema estaria não na piada em si, mas na hipersensibilidade de uns choninhas incapazes de se rir, uma atitude que denota uma certa incapacidade de alguns humoristas se colocarem no lugar do outro. As experiências de vida de muitas pessoas, sobretudo aquelas que possam estar numa posição de fragilidade, podem condicionar a forma como se identificam com o alvo de uma piada e se sentem atingidas por ela.
“Há piadas que podem servir de combustível a discursos discriminatórios e alimentar estereótipos que devemos combater. O humor não é (ou pelo menos não deveria ser) uma espécie de estado pária.”
Obviamente, não podemos esquecer que uma piada não é necessariamente o reflexo do que um humorista pensa, mas também temos de admitir a hipótese contrária: a de que, na comédia, como em todas as outras áreas da sociedade, há pessoas que são sexistas, homofóbicas e/ou transfóbicas, por exemplo. E que há piadas que podem servir de combustível a discursos discriminatórios e alimentar estereótipos que devemos combater. O humor não é (ou pelo menos não deveria ser) uma espécie de estado pária.
Volto ao RAP, para quem o humor “não serve para nada”, a não ser para fazer rir. É uma posição perfeitamente defensável, mas, como consumidor, gosto de olhar para o humor como olho para o jornalismo, que é o ofício que conheço melhor. Há uma visão do jornalismo com a qual me identifico muito, ainda que não falte quem possa discordar dela: ele serve para dar voz a quem não a tem, para dar palco às pessoas que tantas vezes ficam esquecidos nas franjas da sociedade. Entendido desta forma, o jornalismo almeja contribuir para um certo equilíbrio de poderes. Olho da mesma forma para o humor: aquele que mais aprecio é o que tenta vingar as vítimas da sociedade. O que lhes devolve alguma justiça. O que as olha com empatia. E lhes arranca um sorriso num momento de dor. Não o humor do vale tudo, até tirar olhos.
“O humor que mais aprecio é o que tenta vingar as vítimas da sociedade. O que lhes devolve alguma justiça. O que as olha com empatia. E lhes arranca um sorriso num momento de dor. Não o humor do vale tudo, até tirar olhos.”
Sim, não há temas tabu para o humor, mas a forma como um comediante os aborda também pode defini-lo. Se podemos rir-nos às custas de quem pratica violência doméstica, porquê fazê-lo à custa das vítimas? Se podemos ridicularizar alguém que é intolerante, porque havemos de arriscar magoar ainda mais quem sofre a intolerância na pele? Uma piada pode ser só uma piada. Mas, se em vez de risos, o que provoca é dor, valerá mesmo a pena?
Por fim, uma evidência que parece escapar a certos “defensores da liberdade”: se o humor tem de ser livre para que se possa exprimir sem amarras, não deve ser livre de crítica e de escrutínio. Aqueles que reclamam total liberdade não podem depois negá-la a quem não goste de uma piada, porque “já não se pode brincar com nada”. A liberdade de expressão não é um “joker” a que recorremos quando nos dá jeito. Está sempre em jogo. Para nós e para aqueles que discordem de nós.