Ida à bola
No sábado fui à bola. Sozinho, ela não quis ir. Não a levo a mal, fora comigo na semana anterior à pré-eliminatória da Liga dos Campeões. A primeira vez que fomos juntos ao futebol. Ela não gosta, mas acho que até se divertiu. Tirando as partes que achou uma seca e em que, confesso, me condenei por ter gastado aquela quantia no bilhete — não estou orgulhoso disso, mas “sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?”.
Não tínhamos ainda assistido a um jogo por várias razões: a arrebatadora paixão inicial fazia-me esquecer quando o meu clube jogava; por outro lado, naquela altura as exibições da equipa não apaixonavam ninguém; além disso, a pandemia contribuiu: foi ela que nos juntou enquanto retirava o público dos estádios.
Este ano as coisas estão bem melhores: novo treinador, contratações sonantes e a promessa de um futebol entusiasmante. O promissor início de época motivou-me a ir mais vezes ao estádio. Esta era a minha segunda deslocação, e ainda estamos em Agosto.
Nesse sábado fui à bola sozinho. Ao meu lado esquerdo sentaram-se dois rapazes de Aveiro. Um deles tratou de avisar: “Sofro de uma espécie de maldição. Já vi mais de dez jogos ao vivo, nunca uma vitória do nosso clube.”
Teve início a partida, bancadas cheias, muitos adeptos dos nossos, apesar de jogarmos “fora”. O adversário não ajudou à festa. Defendendo num bloco baixo acirrado não deixava criar situações de golo. E os seus contra-ataques foram sendo cada vez mais perigosos. “Olha a maldição”, agoirava “Aveiro”, sempre que o número 7 dos oponentes disparava em direção à nossa baliza.
Finda a primeira parte, o resultado mantinha-se inalterado. “Não está fácil”, comentei com quem me ladeava. “A culpa é desse rapaz”, disse “Guimarães”, um calmeirão sentado do meu lado direito, que se apercebera, entretanto, do anátema proveniente da terra dos ovos moles.
Segunda parte, minuto 58: eis finalmente o golo. Festejei como um louco agarrado aos aveirenses e ao vimaranense, quatro irmãos desconhecidos filhos do mesmo amor incondicional. O tempo depois seguiu devagar, travado pela ansiedade ancorada na diferença mínima do marcador.
Um consócio amigo costuma dizer: “não gosto nada quando estamos a ganhar por um a zero”. A frase fará pouco sentido para um leigo: há inúmeros resultados piores que uma vantagem de um golo — quaisquer derrotas ou empates, como é óbvio. Mas basta ser um adepto sofredor do meu clube para entender perfeitamente o desabafo. Uma vitória por um golo, num jogo a decorrer, não é menos que um constante sobressalto. Basta o adversário empatar para ficar moralizado e, assim, em vantagem face à equipa que acabou de sofrer. Foi neste espírito que eu, os “Aveiros”, o “Guimarães” e duas dezenas de milhar de pessoas, sobrevivemos aos restantes minutos, ameaçados pela fraca exibição (nossa), boa organização (deles) e, claro está, pela terrífica maldição. Lá chegámos ao fim, com o triunfo no papo, por um tentinho sem resposta, uma goleada das modernas. Vitória sofrida, porém, que a pré-temporada não auspiciava. Quebrado enfim o feitiço, dei os parabéns ao companheiro de bancada que viu cair-lhe dos ombros um enorme peso. Despedi-me com votos ambidestros de boa viagem.
Regressei a casa, feliz pelos três pontos e a confraternização inesperada. Ela estava a ver a sua série preferida. Jantámos, contei-lhe as peripécias da partida, dentro e fora do campo. A tudo ouviu sem grande entusiasmo.
Quando me deitei (hora de ponta para um overthinker) revi o jogo, a minha relação com o futebol, a minha relação com ela, a relação entre estas relações. Talvez por excesso de jogos, quiçá por falta de treinos, noto que a equipa está a perder fulgor. Por este andar, lá para o Natal, terei menos vontade de assistir às partidas. Passaremos com certeza mais tempo juntos. Estou certo de que o relacionamento vai melhorar, quando os rivais tiverem pontos de avanço e o campeonato for uma miragem. Sim, regressaremos aos dias de paixão assolapada do início, em que esquecerei o clube, o plantel, a tática, as dúvidas quanto ao onze titular. Estou mesmo a ver que não vamos aguentar-nos, ainda por cima se formos à Liga dos Campeões. Esperam-nos, contudo, domingos melosos de sofá, manta e séries policiais. Mais vale viver o presente esquecendo sofrimentos inúteis. Sim, segurar a vantagem, mesmo que diminuta. Beijos doces e mãos entrelaçadas em silêncio, ao invés de barulhentos abraços a desconhecidos barrigudos. Libertar-me de falsas esperanças para não me desiludir a meio da época, e focar-me no principal. É. Isso. Mais um ano para o galheiro.