Ida à bruxa

por Leonardo Cruz,    23 Abril, 2022
Ida à bruxa
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Uma aparição na memória a anedota que o pai contava sobre um homem que bate à porta de uma bruxa e desconfia quando lhe perguntam quem é. O que ele riria desta situação. “Apenas vim acompanhar a minha amiga Catarina, pai, que está a braços com um dolorosíssimo processo de divórcio” — seria mais ou menos a sua justificação. O Capitão talvez respondesse, com um sorriso desiludido, “sabes que dia é hoje?”, mas Maria Teresa não se lembrou deste 25 de Abril. E por isso não poderia formular esta pergunta na conversa imaginada que mantinha com o fantasma do pai. Após a sua morte, há quase 10 anos, era a primeira vez que não descia a Avenida da Liberdade nas comemorações da Revolução, sempre com um cravo no braço esquerdo seguro entre a pele e o relógio do pai, que passou a usar de forma religiosa nesse dia.

Fosse pelo esquecimento do relógio, ou pela envolvência na desesperada situação da amiga — que a conseguiu convencer a acompanhá-la até esta “consulta de aconselhamento espiritual” — o certo é que Maria Teresa não se lembrou que se cumpria hoje o marco histórico de 48 anos de Democracia em Portugal. Tantos quantos os que durou a ditadura que o pai ajudou a combater.

Mais do que o descuido com a data, custar-lhe-ia a obliteração da memória do Capitão de Abril José Carlos Correia, que conheceu a sua mãe naquele mesmo dia “inicial inteiro e limpo”. O uso do condicional justifica-se porquanto não podemos arrepender-nos do que não nos lembramos.

Eis, então, aqui, Maria Teresa: 47 anos de figura magra e recta como seus princípios, cabelo curto acinzentado, pondo seu cepticismo um degrau abaixo da amizade, enquanto espera a amiga numa loja descaracterizada dos subúrbios de Lisboa onde uma suposta vidente consulta almas desesperadas.

Eis, então, aqui, Maria Teresa: filha de um Capitão de Abril falecido há uma década, esquecida do dia da Liberdade, colocando o seu activismo um degrau abaixo do cepticismo, enquanto folheia uma revista de moda para passar o tempo e pensa na gargalhada livre do seu pai contando anedotas, que o seu nível de sarcasmo atual diria serem todas mil vezes já contadas.

A memória do pai levou-a a pensar estranhamente apenas em si. Sinal dos tempos ou apenas da meia-idade, o certo é que nunca se imaginara sequer perto de um estabelecimento desta ordem. Via no esotérico uma necessidade de carentes, mas não os levava a mal. Assumia as próprias falhas, as suas insuficiências eram também preenchidas com histórias, literárias ou cinematográficas, onde se perdia do mundo que considerava cada vez mais individual, injusto e desigual. Cada qual foge para as histórias que quiser.

E apesar das muitas leituras sobre a ditadura ou sobre o período da revolução, Maria Teresa nem por um segundo se recordou da sua data preferida. Porventura por uma espécie de magnetismo que circundava aquela loja escura de vidros opacos. Só algum tipo de bruxedo a poderia fazer esquecer as emoções trazidas pela voz dos homens e mulheres que cantaram a revolução; a água que sempre lhe surgia na vista ao recordar um tempo que não viveu — os dias reais da utopia, o sonho vivido de uma sociedade em que todos participariam por e para todos. Os dias efémeros em que se acreditou almejar em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade.

Essa memória, mesmo que herdada de seus pais, não surgiu até ao momento em que Catarina regressou da sua sessão. Trazia um rosto vermelho como um cravo e nos olhos denúncia de choro, mas o sorriso aberto era conforto e alívio.

Maria Teresa não conseguiu evitar o escárnio.

— Então, o que te disse a bruxa? — sussurrou impaciente.
— Trago-te um recado de alguém de quem tens muita saudade. “Deixa-te destas palermices”. Ah, e qualquer coisa sobre um relógio.

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