Ideação suicida e suicídio nos médicos. “Mesmo se não sucumbirem ao suicídio, os médicos enfrentam deterioração física e mental” (parte II) 

por Maria Moreira Rato,    5 Fevereiro, 2025
Ideação suicida e suicídio nos médicos. “Mesmo se não sucumbirem ao suicídio, os médicos enfrentam deterioração física e mental” (parte II) 
Fotografia de Vladimir Fedotov / Unsplash

Esta reportagem está dividida em duas partes. A primeira pode ser lida aqui.

O suicídio entre médicos constitui uma crise global crescente, com taxas assustadoras em diversos países. A pressão extrema, o desgaste emocional e a sobrecarga de trabalho são fatores que agravam a saúde mental destes profissionais, que frequentemente se veem sem o auxílio adequado. Na segunda parte desta reportagem, compreendemos que é hora de ouvir e agir antes que mais vidas se percam. 

À semelhança de Mariana, interna de formação específica com quem a Comunidade Cultura e Arte (CCA) falou na primeira parte desta reportagem, Pedro (nome fictício) também enfrenta alguns demónios diariamente. E se tal já acontecia na adolescência, tudo piorou quando ingressou no Mestrado Integrado em Medicina. “Posso dizer que, desde pequeno, sonhei ser médico. Só não sabia a fatura que pagaria por isso”, começa por explicar. “A enorme carga horária e a exigência constante de desempenho elevado deixam-nos logo alerta no primeiro ano do curso e sei de muitos alunos que desistem nos primeiros tempos”, desabafa. “A pressão para memorizar grandes quantidades de informação e lidar com avaliações extenuantes pode ser esmagadora”, avança, adiantando que “muitos estudantes sentem que nunca têm tempo suficiente para descansar ou para cuidar de si mesmos”

Para além disso, o jovem de 23 anos aponta que “o ambiente frequentemente competitivo entre os colegas pode aumentar a sensação de isolamento ou inadequação”, até porque a luta por notas altas é uma fonte constante de stress. “Existe uma insuficiência crónica de apoio psicológico ou iniciativas de bem-estar em muitas faculdades de Medicina”, afirma, deixando claro que, na sua ótica, as universidades nem sempre oferecem um ambiente de suporte emocional ou recursos suficientes para lidar com problemas de saúde mental. Para o rapaz, as instituições de Ensino Superior deviam “parar com o foco excessivo nos aspectos técnicos da medicina, até para não negligenciarem mais a saúde mental dos próprios estudantes. Pode ser frustrante”, sublinha, constatando que sente que está a ser treinado para “funcionar como uma máquina”, sem espaço para falhas ou para cuidar de si mesmo. 

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“O curso de Medicina prejudica a vida social, as relações familiares e o equilíbrio pessoal. Quem disser o contrário estará a mentir ou será inocente”, elucida o estudante, revelando que a rotina intensa e a pressão podem levar à solidão e à desconexão de amigos e familiares. “Tenho medo de não estar à altura como futuro médico, especialmente considerando a responsabilidade associada à profissão”, diz, recordando que, nos primeiros semestres do curso, sempre que dizia à namorada e aos amigos de outros cursos que não podia participar em x ou y plano, estes riam-se ou duvidavam de que, realmente, tivesse de ficar em casa a estudar. “Às vezes, temos de estudar que nem loucos e só temos 9.5 ou 10 valores. E há exames em que nem isso conseguimos. E isto pode destruir a cabeça de pessoas que acabam o Ensino Secundário, habitualmente, com médias altíssimas”, continua, explicitando que as expectativas impostas por si mesmo e pela sociedade parecem-lhe, na maior parte dos dias, inatingíveis. 

“Se já esperam que eu saiba salvar vidas, sempre, e imediatamente, nem quero pensar naquilo que acontecerá quando terminar o curso”, declara, salientando que esta pressão, efetivamente, começa na universidade, onde é esperado que os estudantes absorvam um volume imenso de conhecimento e estejam prontos para situações críticas. “Acham que vou salvar o mundo, mas, honestamente, há dias em que só quero sobreviver”, adianta Pedro, que já abusou dos medicamentos prescritos pelo psiquiatra para “adormecer a dor”. “Enquanto todos esperam que eu faça a diferença, pergunto-me se alguma vez encontrarei equilíbrio e satisfação pessoal. Mesmo que nada mude enquanto estou na faculdade, pelo menos que alguma coisa seja feita para quem virá a seguir”, expressa. 

Quem tem mais anos de experiência e fala abertamente sobre os desafios e aprendizagens que moldaram a sua trajetória, à semelhança de Pedro, é a médica Ana Isabel Pedroso, especialista em Medicina Interna e Fellow de Medicina Intensiva. Com uma carreira marcada por situações de elevada pressão, utiliza a sua experiência para inspirar mudanças na abordagem à saúde mental, especialmente entre os profissionais de saúde. “Penso que através da minha profissão descobri cedo que a vida é isto, não há nada mais. Então é aproveitar e ser feliz hoje, literalmente viver o presente, com esperança que haja futuro, mas feliz pelo que se tem”, reflete a médica que, desde 2018, exerce funções na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Cascais. 

Reconhece que trabalhar em cuidados críticos afeta profundamente a saúde mental dos médicos. “A forma como cada um lida com isso é que faz diferença. No meu caso, sempre que achei que tinha necessidade procurei ajuda. Foram situações pontuais. De resto, estou habituada a integrar essas experiências no meu dia a dia”, adianta, destacando a importância de mecanismos de apoio: “Muitos dos nossos apoios vêm dos pares. Os colegas com quem vivemos estas experiências. Deveria haver uma espécie de psicologia de ligação aos profissionais, tal como existe obrigatoriedade de Medicina do Trabalho”, sublinha a médica que fala sobre saúde para a população na página de Instagram @dokinni, que conta com quase 50 mil seguidores. 

Para Ana Isabel Pedroso, fatores como isolamento, perfecionismo, falta de descanso e exaustão são os principais gatilhos para a ideação suicida entre médicos, sendo que os mesmos se intensificaram durante a pandemia, quando a solidão e o cansaço atingiram níveis nunca antes vistos. A carga horária extensiva também contribui para agravar o problema: “Fazer um trabalho difícil é complicado, mas fazê-lo 24h seguidas é muito, muito difícil. Quem o faz precisa de ter mais descanso e isso nem sempre acontece”, lamenta. E importa referir que a pandemia trouxe não apenas desafios clínicos, mas também a necessidade de combater a desinformação. Foi nesse contexto que a médica criou o projeto ‘Medicina sem Filtros’. “Surgiu naturalmente devido à desinformação que reinava na pandemia. Havia uma verdadeira necessidade de passar informação médica fidedigna. Eu já partilhava informação médica em vários media nomeadamente na TV, desde 2016, foi só converter em digital”. 

Ana Isabel Pedroso encara a crescente presença de médicos nas redes sociais como algo positivo. “Tenho falado em vários congressos a convite dos estudantes de medicina. É inevitável termos presença no digital, se todos lá estão”, aponta. Mas, mesmo com avanços, acredita que o estigma sobre saúde mental persiste. Isto porque há uma expectativa de que os médicos devem ‘aguentar’ a pressão e essa relutância em falar sobre sofrimento psicológico é uma barreira. Para mudar esse cenário, propõe mudanças estruturais: “Talvez começar a falar sobre este tema desde a faculdade. Trabalhamos em ambiente de grande exigência e isso vem desde a admissão na faculdade. Precisamos de mudar mentalidades nas gerações mais antigas para as mais novas crescerem de outra maneira”, acrescenta. 

A experiência de Ana Isabel Pedroso, aliada à sua visão crítica e comprometida, ressalta a importância de humanizar a prática médica. Para ela, cuidar da saúde mental dos médicos não é apenas um ato de compaixão, mas também uma condição essencial para oferecer cuidados de qualidade aos doentes. Tanto que, em fevereiro deste ano, publicou, no jornal Observador, o artigo de opinião A outra face do suicídio. Neste texto, começou por deixar claro que a saúde mental é um tema cada vez mais debatido, mas o olhar de quem está no lado de quem responde ao pedido de ajuda ainda é pouco explorado. Com vasta experiência em emergências, partilhou reflexões sobre os desafios emocionais e práticos enfrentados ao lidar com situações como o suicídio. 

Destacou que o suicídio raramente é um ato isolado, mas o culminar de um processo longo, muitas vezes relacionado com problemas como a depressão. Este processo costuma apresentar sinais de alerta, como mudanças de comportamento, isolamento e até despedidas simbólicas. Quando esses sinais passam despercebidos, o desfecho pode ser fatal, e é aqui que as equipas de emergência entram em ação. “Prepara-te para o pior, esperando o melhor” é o lema que guia Ana Isabel Pedroso. A médica descreve o impacto psicológico de trabalhar em casos envolvendo crianças e jovens, frequentemente associados a fatores como ciberbullying e redes sociais. Segundo ela, é essencial educar os jovens para reconhecerem esses riscos e lidarem com eles de forma saudável. 

Fotografia de Mayan Sachan / Unsplash

No local da ocorrência, o cenário pode ser profundamente marcante, mas a profissional de saúde procura limitar os estímulos visuais. “Se não vou fazer diferença clínica na vida daquela pessoa, então também não vale a pena ficar a olhar e a interiorizar, criar imagens de uma cena que depois terá mais impacto psicológico em mim. Assim, evito estímulos sempre que posso”, observou. Apesar disso, a dor de quem encontra a vítima ou dos familiares é sempre um momento desafiador. 

Quando não há mais nada a fazer clinicamente, Ana Isabel Pedroso e a equipa têm a difícil tarefa de comunicar a perda. “Não sei bem quantos abraços já dei neste contexto, mas em todos eles senti a dor de quem estava nos meus braços”, refletiu. Mas, mesmo após situações difíceis, o trabalho não para. O foco volta-se para as vidas que podem ser salvas e o apoio mútuo entre os membros da equipa é crucial. “Fazemos uma retrospetiva de todos os passos e vemos onde poderíamos ter sido melhores”, apontou. 

A médica prefere não levar essas histórias para casa, preservando o seu ambiente pessoal como um refúgio. Apesar dos desafios emocionais, sente-se grata pelas vidas que conseguiu salvar e segue motivada a continuar neste trabalho, onde cada dia pode fazer a diferença. 

Estigma, acessibilidade e o papel da saúde mental

Como já entendemos, o risco de suicídio entre os médicos é uma questão séria e multifacetada, influenciada por fatores emocionais, culturais e profissionais. De acordo com Miguel Ricou, Presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses, “a desesperança é um dos fatores mais ligados ao risco de ideação suicida, especialmente quando associada à incapacidade de ver saídas para o sofrimento”. Outro ponto destacado é a impulsividade, frequentemente subestimada como um elemento crucial no risco de suicídio. 

Curiosamente, a assertividade, geralmente vista como uma característica positiva, também pode ser um fator de risco. “Pessoas muito assertivas, habituadas a fazer aquilo que fazem, também estão mais suscetíveis ao suicídio”, afirma. Além disso, o sofrimento continuado é outro aspecto determinante que agrava a vulnerabilidade emocional. A distinção entre ideação suicida, tentativa de suicídio e o ato de suicídio é apontada como essencial. “São construtos diferentes, que funcionam com motivações e objetivos distintos”, explica. Por exemplo, a ideia de morte, em muitos casos, surge como uma tentativa de aliviar o sofrimento, sem necessariamente evoluir para uma tentativa de suicídio. 

Para os médicos, o acesso a meios letais representa um risco adicional, diz o psicólogo que se alinha com os restantes entrevistados. “A acessibilidade torna-se perigosa, especialmente para profissionais que lidam diretamente com substâncias que podem ser usadas de forma menos violenta e com maior sucesso”, destaca. Em países como os Estados Unidos e o Reino Unido, há uma preocupação crescente com o risco em especialidades como anestesiologia e cirurgia, justamente pelo contacto próximo com esses meios. Outro aspecto mencionado é a impulsividade no ato suicida. “Se olharmos para o suicídio como um acidente, é evidente que a acessibilidade a tratamento ou intervenção no momento crítico pode ser decisiva para evitar o pior”, assevera, ressaltando que, muitas vezes, após ultrapassado o momento crítico, o risco diminui significativamente. 

Porém, há uma barreira significativa: o estigma. Apesar de avanços no combate ao estigma da saúde mental, este persiste, inclusive entre profissionais da área. “Mesmo os profissionais de saúde mental relutam em procurar ajuda, por medo de serem vistos como vulneráveis ou incapazes”, aponta. Essa resistência em procurar apoio é agravada pela proximidade com colegas no ambiente de trabalho, o que torna a exposição ainda mais desconfortável. Para combater o problema, o especialista sugere estratégias como a criação de canais de apoio fora do contexto laboral, incluindo atendimento online e sigiloso, e a inclusão de profissionais de saúde mental no âmbito da Medicina do Trabalho. “A acessibilidade é chave. Permitir que as pessoas procurem ajuda no momento certo pode ser determinante”, defende. 

Enfatiza igualmente a necessidade de tratar o sofrimento mental como algo normal e natural. “Quanto mais facilitarmos a acessibilidade e normalizarmos essa busca por apoio, maior será o impacto positivo na saúde mental dos profissionais médicos, reduzindo o risco de situações graves como o suicídio”, continua. À semelhança de Gerada, lembra que a pandemia teve um impacto significativo na saúde mental da população em geral, mas também nos profissionais de saúde. “A pandemia mudou bastante a sensibilidade das pessoas e até dos decisores relativamente à importância da saúde mental”, diz, observando que, antigamente, a maioria dos doentes eram mulheres, mas hoje em dia há uma “paridade total”, com muitos homens a procurarem ajuda. “Há muitos dias no consultório em que tenho mais homens do que senhoras”, destaca. 

Miguel Ricou também menciona que a pandemia contribuiu para a diminuição do estigma relacionado com o pedido de ajuda. “O que mudou foi claramente o estigma, volto a dizer, não tanto a relação com a saúde mental, eu acho que ainda estamos nesse caminho”, sublinha. Sobre as dificuldades enfrentadas pelos profissionais de saúde, observa que muitos, apesar de estarem bem informados, ainda têm resistência em procurar auxílio. “São muito mais informados, mas depois pensam que ajuda em termos de saúde mental… para eles não”, diz, referindo-se ao facto de que o acesso ao tratamento nem sempre é eficaz para quem mais precisa. 

No campo das políticas públicas, o entrevistado destaca a importância da sensibilização de médicos e futuros médicos para o facto de não estarem sozinhos e terem quem lhes dê a mão. Afirma que “não se consegue trabalhar acessibilidade sem trabalhar o estigma”, reforçando que é essencial que esta busca por ajuda seja vista como algo natural e não vergonhoso. Acredita que a educação sobre saúde mental deve ser ampla e envolver não só os profissionais de saúde, mas toda a sociedade. “Quanto mais nós normalizarmos esta ideia de as pessoas poderem procurar [ajuda] e de ser uma coisa natural, melhor”, declara. 

O psicólogo enfatiza que a ideia de procurar ajuda não deve ser tratada como uma fraqueza ou incapacidade, mas como uma maneira de promover a autonomia, tal como afirmado por Braz Saraiva. “A ideia da psicologia é autonomizar as pessoas e dar-lhes competências para elas poderem tomar as suas decisões”, destaca. Também compara o sofrimento emocional ao sofrimento físico, afirmando que “todos nós de repente temos um problema físico qualquer, que também nos pode surgir de repente”. Por fim, o entrevistado fala sobre a ideação suicida, destacando que ela é muitas vezes um reflexo de sofrimento e não uma expressão de fraqueza. “É importante que as pessoas saibam que só por termos a ideação de morte não quer dizer que seguramente vamos suicidar-nos”, garante e explica que é fundamental entender que esses pensamentos sinalizam um sofrimento profundo que pode evoluir e, muitas vezes, melhorar. “Nunca confiamos, entre aspas, na vontade de morrer de alguém”, declara, indicando que a ajuda precoce pode fazer toda a diferença. 

O que revelam os estudos internacionais e o que nos diz a investigação portuguesa? 

Quase todos os entrevistados mencionaram estudos internacionais. Principalmente porque, em Portugal, ainda não existem trabalhos publicados sobre este tema. Mas olhemos para o panorama dos restantes países. E comecemos pela formação basilar dos médicos. Em Professional Stigma of Mental Health Issues: Physicians Are Both the Cause and Solution, Kirk J. Brower, psiquiatra de destaque vinculado à Escola de Medicina da Universidade do Michigan, nos EUA, onde exerce funções como professor no Departamento de Psiquiatria, aborda o impacto do estigma relacionado com a saúde mental na profissão médica. Motivado por um estudante que destacou o poder de os professores partilharem as suas histórias de depressão, o autor procura normalizar os distúrbios psicológicos, reduzir o estigma e incentivar a procura por tratamento. 

No artigo científico, publicado em 2021 na Academic Medicine, explica que a cultura profissional da medicina reflete os preconceitos da sociedade em relação às doenças mentais, mas também contribui para altas taxas de suicídio entre profissionais de saúde. Desde o primeiro ano da faculdade de medicina, os estudantes enfrentam o aumento de esgotamento e sintomas depressivos. Os professores, ao transmitir atitudes negativas sobre saúde mental, acabam por perpetuar um ‘currículo oculto’ que ensina os alunos a esconderem os seus problemas psicológicos. 

O autor que, desde 1986, integra a equipa da Universidade do Michigan, sendo reconhecido pelas suas contribuições nas áreas de psiquiatria geral e psiquiatria de dependências, ambas certificadas por conselhos especializados nos Estados Unidos, destaca que o medo do estigma também é reforçado por políticas de licenciamento e credenciamento que vinculam a saúde mental à segurança do doente, criando uma cultura de silêncio e vergonha. No entanto, os mesmos professores que perpetuam essa cultura têm o poder de mudá-la. Brower deixa claro que partilhar experiências pessoais e criar um ambiente mais acolhedor constituem passos essenciais para combater o estigma e promover o bem-estar na medicina. 

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O artigo conclui que os professores universitários têm a responsabilidade de melhorar o ambiente de aprendizagem, ajudando a normalizar a depressão como uma condição médica tratável e incentivando os alunos a procurar apoio quando necessário. Por outro lado, numa revisão sistemática publicada em 2017 na JAMA já se começava a delinear este caminho de reflexão. Em Prevalence of Depression, Depressive Symptoms, and Suicidal Ideation Among Medical Students, Rotenstein et al. investigaram a prevalência de depressão e ideação suicida entre estudantes de medicina, destacando que 27,2% apresentam sintomas depressivos e 11,1% relatam ideação suicida. O estudo ressalta a necessidade de compreender as causas e desenvolver intervenções eficazes para prevenir e tratar esses problemas. 

Os autores explicam que o stress e a ansiedade relacionados com a competitividade do ambiente académico são fatores primários para esta problemática e deixam claro que reformular os currículos e sistemas de avaliação das faculdades de medicina, como adotar esquemas de aprovação/reprovação em vez de graduações hierárquicas, pode reduzir a pressão. Modelos de aprendizagem colaborativa, como a sala de aula invertida, também são recomendados. No entanto, evidenciam que estudos longitudinais são necessários para avaliar o impacto da depressão na faculdade de medicina e a sua progressão durante a residência (ou, em português, internato médico). 

O estigma associado à saúde mental e o acesso limitado a serviços são desafios críticos que têm de ser enfrentados para aumentar a adesão aos cuidados. O estudo destaca a importância de uma abordagem abrangente para abordar a saúde mental dos estudantes, incluindo a implementação de estratégias preventivas e a promoção de ambientes educacionais mais saudáveis. E o que se passa depois dos anos de estudo e do início da carreira? O artigo Healing the Professional Culture of Medicine, publicado no Mayo Clinic Proceedings em 2019, analisa como a cultura profissional na medicina tem contribuído para o aumento do burnout entre médicos nos EUA. Os autores, incluindo Tait D. Shanafelt e Edgar Schein, argumentam que a cultura médica tradicional, baseada em perfecionismo, resistência a vulnerabilidades e desvalorização do autocuidado, tornou-se insustentável. 

Destacam que muitos médicos sentem que o sistema de saúde atual é um obstáculo para a prestação de cuidados de qualidade. Constatam que há uma desconexão entre os valores declarados das organizações e as práticas reais, como a exigência de tarefas administrativas excessivas e a priorização da produtividade sobre a qualidade e o bem-estar dos profissionais. Por isso, propõem que a mudança cultural é essencial para resolver esses problemas e melhorar o bem-estar médico. Usando frameworks de ciências organizacionais, sugerem intervenções para alinhar os valores institucionais com práticas que promovam a sustentabilidade, autocuidado e um ambiente mais saudável para os profissionais da saúde. Em suma, este trabalho enfatiza que a solução para o burnout médico exige mudanças sistémicas, incluindo a redefinição de prioridades organizacionais e a promoção de uma cultura de cuidado mútuo e respeito pelas limitações humanas. 

Um estudo coordenado por Tânia Gaspar, e apresentado na Ordem dos Médicos em julho deste ano, analisou a evolução das condições de trabalho e bem-estar psicológico de mais de 2.000 profissionais de saúde antes, durante e após a pandemia de COVID-19. As conclusões mostram um cenário complexo: enquanto a pandemia trouxe uma sensação de valorização para a classe, os efeitos negativos sobre a saúde mental e a insatisfação com as condições laborais persistem. “Em 2019, identificámos que havia já uma grande insatisfação entre os profissionais de saúde com o seu trabalho e com as condições organizacionais, como a falta de autonomia e dificuldade em conciliar atividades como investigação e formação”, explica a coordenadora do Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis e Diretora do Serviço de Psicologia, Inovação e Conhecimento da Universidade Lusófona. 

Durante a pandemia, um levantamento realizado em novembro de 2021 confirmou um agravamento generalizado. “O ambiente de trabalho, a relação com as lideranças e os indicadores de saúde mental deterioraram-se. Apesar disso, verificámos um aumento na identificação com a profissão porque os profissionais sentiram-se mais valorizados e reconhecidos pela sociedade,” relata. A pandemia trouxe também mudanças positivas inesperadas. “A necessidade de resolver situações urgentes deu maior autonomia aos profissionais e criou uma sensação de empoderamento. Porém, isso não foi suficiente para equilibrar o peso do desgaste emocional, da exaustão e do isolamento social, que muitos «enfrentaram, inclusive afastando-se das suas famílias”, destaca a investigadora. 

Com o fim da pandemia, esperava-se uma melhoria nas condições de trabalho e no reconhecimento dos esforços realizados. Contudo, o cenário atual não reflete essas expectativas. “Os profissionais de saúde sentem que, após todo o empenho, nada mudou significativamente. É frustrante perceber que a valorização durante a pandemia não se traduziu em condições melhores, flexibilidade ou maior reconhecimento”, afirma. O estudo aponta que uma nova geração de profissionais tem expectativas diferentes em relação ao trabalho. “Os jovens procuram equilíbrio entre vida pessoal e profissional, flexibilidade e oportunidades de desenvolvimento. Muitos não estão dispostos a aceitar condições extenuantes, como jornadas de 58 horas semanais”, observa. 

A investigadora alerta para a necessidade de adaptação do SNS para atrair e reter talentos. “Se o SNS continuar a oferecer poucas condições de autonomia, flexibilidade e reconhecimento, corremos o risco de perder profissionais para o setor privado ou para o estrangeiro”, avisa. Os desafios do envelhecimento da população e o aumento das doenças crónicas tornam ainda mais urgente a implementação de medidas eficazes. “Sem uma avaliação rigorosa das iniciativas e maior estabilidade nas políticas, o futuro do SNS, como o conhecemos, está em risco”, frisa.

O estudo lança um alerta claro: valorizar os profissionais de saúde é essencial para garantir a sustentabilidade do sistema e a qualidade dos serviços prestados à população. No resto da conversa, Tânia Gaspar continua a abordar os desafios enfrentados pelos profissionais de saúde em Portugal e salienta que uma das questões mais alarmantes que surgem é a deterioração da saúde mental entre médicos, especialmente durante o processo de formação. A pressão que começa no Ensino Secundário e segue ao longo da universidade, como, por exemplo, referiram Mariana e Pedro, atinge o seu auge durante o internato, parece criar um ciclo difícil de romper e leva muitos dos profissionais a desenvolver problemas de saúde mental graves, incluindo ideação suicida. 

“A pressão começa no Ensino Secundário, com os exames nacionais e as médias, e intensifica-se durante a faculdade”, explica, destacando que muitos estudantes de medicina chegam ao internato já fragilizados psicologicamente, sobrecarregados pela exigência do curso e pela difícil transição para a prática profissional. No início da carreira, a saúde mental desses jovens médicos deteriora-se ainda mais, principalmente devido às situações de alto stress, decisões difíceis e à exposição constante ao sofrimento humano. A psicóloga aponta que, comparados a outros estudantes de diferentes áreas, os profissionais de saúde enfrentam um risco significativamente maior de desenvolver problemas de saúde mental, um reflexo da pressão contínua e da carga emocional enfrentada desde o início da sua formação. 

A pressão, no entanto, não se limita ao ambiente académico. Médicos recém-formados enfrentam um cenário de extrema exigência emocional, principalmente nas urgências, onde têm de tomar decisões vitais com pouca experiência prática. “Muitos deles estão obrigados a agir de forma decisiva em situações de risco, sem a formação adequada para lidar com a pressão que isso acarreta”, recorda. O peso dessas decisões, muitas vezes relacionadas com questões de vida ou morte, tem um impacto profundo na saúde mental dos médicos. Outro fator que agrava essa situação é o fácil acesso dos profissionais de saúde a substâncias potencialmente letais, como psicofármacos, o que os coloca num grupo de risco maior para suicídio. 

Como mencionado pela entrevistada, os médicos lidam constantemente com o sofrimento e a morte, o que pode aumentar a sensação de impotência e depressão. E, ao contrário de outras profissões, os médicos (tal como os polícias, por exemplo) têm maior acesso a métodos que podem ser usados para tirar a própria vida, tornando a situação ainda mais alarmante. “Não me surpreende que os profissionais de saúde tenham índices mais elevados de suicídio”, afirma, considerando os dados disponíveis. “Lidam com situações extremamente difíceis e têm mais acesso aos instrumentos necessários, o que os coloca numa posição de risco ainda maior”. 

No entanto, a falta de dados e de estudos específicos sobre o tema em Portugal é uma realidade preocupante. Enquanto em países como os Estados Unidos e nos países nórdicos há pesquisas e relatórios sobre a saúde mental dos médicos, como verificámos, em Portugal esse tipo de investigação é quase inexistente. “Ainda é um tabu e tal dificulta a criação de políticas públicas efetivas”, explica a entrevistada. A situação se reflete também no desconhecimento sobre o impacto do suicídio entre médicos, um tema que é tratado com muito sigilo tanto no ambiente profissional quanto no público em geral. Tânia Gaspar realça que, apesar da ausência de dados concretos, já existem vários estudos que apontam para o agravamento da saúde mental entre os profissionais de saúde, especialmente no período pós-pandemia, sem que tenha havido qualquer esforço significativo para reverter essa situação. “O sistema de saúde em Portugal já enfrenta uma grande crise e, sem ações concretas para melhorar a saúde mental dos médicos, corremos o risco de ver o sistema entrar em colapso”, afirma. 

O alerta é claro: os médicos, além de sofrerem as consequências de um trabalho emocionalmente extenuante, podem ver as suas competências prejudicadas caso a sua saúde mental não seja adequadamente tratada. A entrevistada enfatiza a necessidade de um trabalho contínuo e profundo para garantir o bem-estar dos profissionais de saúde, destacando que isso não só impacta a saúde dos próprios médicos, mas também a qualidade dos cuidados prestados aos doentes. Por fim, sugere a criação de um consenso entre os diferentes partidos políticos, independentemente das mudanças de governo, para que seja implementado um programa de apoio efetivo à saúde mental dos profissionais de saúde. “É preciso uma abordagem de longo prazo, com políticas claras e sustentadas”, apela. “Caso contrário, enfrentaremos um sistema de saúde cada vez mais fragilizado, com profissionais sobrecarregados e desmotivados, o que só piorará ainda mais a situação”. 

O custo da medicina: como a crise de saúde mental está a impactar os médicos 

Já entendemos que a saúde mental dos médicos nunca foi tão desafiada quanto durante a pandemia de COVID-19. Para perceber melhor o impacto desta crise, a CCA conversou com uma especialista em investigação sobre suicídio na medicina, que também exerce funções enquanto mentora de médicos. Holly G Prigerson partilha as suas perceções sobre os fatores de risco, os desafios estruturais do sistema de saúde e possíveis reformas para apoiar melhor os profissionais de saúde. “Testemunhei como os médicos estiveram no limite durante a COVID-19 – a quererem ajudar, mas isolados, exaustos, com poucos recursos e amplamente desamparados”, explica. “Como filha, mãe e tia de médicos, além de mentora, vi de perto como a formação médica pode ser brutal, levando muitos colegas a abandonar a área ou a desencorajar outros a entrar na medicina”. 

Holly Prigerson / Fotografia de John Abbott

Prigerson tem um extenso trabalho reconhecido no campo dos cuidados de fim de vida, com foco em melhorar a qualidade de vida de doentes terminais e das suas famílias. É cofundadora e codiretora do Center for Research on End-of-Life Care no Weill Cornell Medicine. No entanto, a sua investigação interdisciplinar combina psicologia, medicina e saúde pública, explorando temas como o luto complicado, a comunicação médico-doente e a tomada de decisão no final da vida. Deste modo, não é de estranhar que tenha investigado o impacto da COVID-19 na saúde mental dos médicos. Embora o estudo Covid-19 and Increased Risk of Physician Suicide: A Call to Detoxify the U.S. Medical System (publicado em 2022 na Frontiers in Psychiatry) tenha consistido numa revisão de literatura, e não num estudo empírico, Prigerson destaca questões recorrentes. “Stress extremo, experiências humilhantes na formação e no trabalho, privação de sono, má nutrição e a falta de equilíbrio entre vida profissional e pessoal comprometem a saúde mental e tornam a existência insuportável. Muitos médicos perguntam-se: ‘Porquê?'”, diz. 

O artigo, escrito por Sophia E. Kakarala e Prigerson, discute como a pandemia exacerbou os riscos de suicídio entre médicos, destacando problemas estruturais no sistema médico dos EUA. As autoras fazem um apelo por reformas urgentes para mitigar esses riscos e proteger a saúde mental dos profissionais de saúde. Começam por enfatizar que a COVID-19 intensificou os desafios preexistentes enfrentados pelos médicos, como turnos extenuantes, falta de recursos e pressões emocionais. A sobrecarga contribuiu para um ambiente tóxico que aumenta o risco de burnout e suicídio. As autoras argumentam que o sistema de saúde dos EUA precisa de reformas estruturais profundas. Algumas propostas incluem: criar ambientes de trabalho que promovam o bem-estar, com descanso adequado e suporte psicológico; reduzir a carga horária e implementar horários mais flexíveis e estimular a cultura de apoio entre colegas e supervisores. O artigo conclui que, para reduzir o risco de suicídio entre médicos, é fundamental transformar a cultura médica. Tal inclui combater a estigmatização da saúde mental e criar sistemas que deem prioridade ao cuidado dos profissionais de saúde tanto quanto o dos doentes. 

E é exatamente isto que Prigerson conta à CCA. Para enfrentar esta crise, evidencia a importância de uma mudança cultural. “Primeiro, é preciso respeitar a necessidade de bem estar, o que inclui descanso adequado, tempo para recarregar as energias, horários flexíveis para o cuidado da família e de si mesmo, e apoio a serviços de saúde mental. Além disso, é essencial punir o bullying por parte de supervisores e colegas e promover um ambiente de apoio e sensibilidade”, continua. Uma das maiores barreiras para o cuidado mental entre médicos é o medo do estigma e de perder o emprego. “Hospitais e clínicas podem oferecer aconselhamento anónimo, promover apoio entre pares e reduzir a carga horária, limitando turnos a no máximo 12 horas. Também é importante fornecer vouchers para alimentação saudável e permitir maior controlo dos médicos sobre as suas agendas”, afirma. Quando questionada sobre o impacto contínuo da pandemia, a especialista é direta: “A COVID-19 mudou tudo, incluindo como os cuidados de saúde são prestados e o papel dos médicos. A telemedicina veio para ficar, assim como a necessidade de suporte social e profissional e de fortalecimento das equipas para sustentar a moral e reduzir o burnout”, declara. 

Prigerson aponta os potenciais benefícios e desafios de uma maior sindicalização de médicos nos EUA. “Os sindicatos protegem trabalhadores, mas enfrentam a oposição de empregadores, que veem mudanças como ameaça ao lucro. Ainda assim, dar mais controlo aos médicos sobre as suas condições de trabalho poderia reduzir os riscos de suicídio”, sublinha. Para além desta questão, e tal como disseram os restantes entrevistados, a investigadora acredita que as escolas médicas estão mal preparadas para lidar com a saúde mental de estudantes e internos. “São reativas, não proativas, e só parecem agir quando há um suicídio para mostrar que estão a lidar com o problema. Mudanças fundamentais no ambiente de trabalho médico têm de acontecer – ‘curativos’ não curam feridas tão profundas”, salienta. 

Prigerson destaca igualmente as dificuldades enfrentadas por médicas e minorias na profissão. “As ‘mulheres no meio’, divididas entre as exigências pesadas do trabalho e do lar, enfrentam um problema muito relevante que precisa de ser abordado. Médicos de minorias, por sua vez, muitas vezes sentem-se ainda mais isolados e desamparados, com menos colegas que compreendem os seus desafios”, alerta. Com palavras diretas e críticas contundentes, a investigadora deixa claro que a solução para a crise da saúde mental entre médicos requer uma abordagem holística e transformadora – tanto para proteger os profissionais quanto para preservar o futuro da medicina. 

“Os médicos não têm permissão para serem humanos”

A médica norte-americana Pamela Wible, referência internacional no debate sobre o suicídio de médicos, dedicou a sua carreira a expor uma realidade alarmante: os médicos enfrentam condições de trabalho que comprometem gravemente a sua saúde mental. Em entrevista à CCA, Wible partilha as motivações por trás da sua pesquisa, as barreiras enfrentadas por médicos e as reformas necessárias para transformar o sistema médico. 

Wible começou a sua luta após um memorial na sua cidade. “Sobrevivi a pensamentos suicidas e achava que era a única. Então, perdi três médicos para o suicídio na minha cidade. Ninguém queria falar sobre isso. TV e jornais recusaram-se a reportar. No memorial, comecei a contar os médicos que conhecia que haviam tirado a própria vida: eram 10, incluindo dois homens com quem namorei na faculdade de medicina”, explica. Hoje, Wible possui um banco de dados com mais de 2.000 casos de médicos que morreram por suicídio. A recolha de informações, segundo ela, é meticulosa. “Estes casos são enviados a mim por familiares e amigos. Realizo entrevistas e analiso relatórios policiais”. 

Para Wible, o suicídio de médicos é frequentemente encoberto. “Os médicos não têm permissão para serem humanos. Somos treinados para oferecer ajuda, mas não para precisar dela. Há muito estigma sobre esse tópico ao longo da história humana”, avança. Esse estigma, combinado com a punição dos médicos que procuram assistência psicológica, cria barreiras quase intransponíveis. “Nos EUA e no Canadá, programas como os Physician Health Programs (PHPs) são punitivos. As perguntas invasivas nos processos de licenciamento são outro obstáculo e isso está a ser investigado pelo Departamento de Justiça dos EUA”, indica. 

A realidade do ambiente médico, especialmente durante a formação, é brutal. Wible destaca o abuso e os turnos extenuantes: “Os médicos trabalham 80 horas por semana ou mais, o que deveria ser ilegal. Estamos a envelhecer fisicamente seis vezes mais rápido do que outras pessoas por causa destas condições. Provas disso estão nos nossos cromossomas”, diz. Além disso, Wible ressalta a pressão desumana sobre médicas. “As mulheres têm de abandonar o seu papel de cuidadoras para competir numa profissão predominantemente masculina. Perdemos as alegrias de ser mães e de nutrir as nossas famílias por causa das exigências do trabalho”, constata. 

Para transformar esse cenário, Wible sugere medidas concretas. “É essencial implementar proteção trabalhista, como limite de 40 a 60 horas semanais. Precisamos de acabar com a punição a médicos que procuram ajuda psicológica. O cuidado com a saúde mental deve ser privado e confidencial”. Também defende que o público deve encarar os médicos como seres humanos. “Somos glorificados como super-humanos e ‘altruístas’, mas isso perpetua uma cultura que recompensa o abuso de si mesmo”, realça. 

Wible relata histórias impactantes de médicos que tiraram a própria vida, muitas delas contadas na sua palestra no TEDMED. “No meu banco de dados, muitos suicídios são classificados erroneamente como ‘acidentes’. Não acredito que 12 anestesiologistas morreram por ‘envenenamento acidental’. Essas mortes são frequentemente mascaradas”, avisa. Com o documentário Do No Harm, Pamela Wible espera levar o tema ao público geral e inspirar mudanças no sistema médico. Embora tenha enfrentado resistência – algumas instituições médicas proibiram exibições do filme –, Wible segue comprometida. “Mesmo se não sucumbirem ao suicídio, os médicos enfrentam deterioração física e mental. Estou à procura de justiça em nome dos meus colegas”. 

O trabalho de Wible é mais do que uma denúncia: é uma chamada à ação para desintoxicar o sistema médico e proteger aqueles que dedicam as suas vidas a salvar outras. 

Prevenir o suicídio entre médicos: uma luta contra o sofrimento invisível 

A saúde mental dos médicos é um tema que há muito suscita preocupação, especialmente no que diz respeito à ideação suicida e ao impacto de um ambiente profissional exigente e, por vezes, desumanizante. Para Ricardo Gusmão, médico psiquiatra, professor e investigador na Universidade do Porto, abordar este problema exige uma análise profunda, iniciativas de prevenção e uma cultura de saúde mais solidária e eficiente. Quando se trata da ideação suicida entre médicos, Gusmão aponta para a sobrecarga profissional, os conflitos entre vida pessoal e laboral e traços de personalidade comuns na classe médica, como perfeccionismo e obsessividade.

“Em contextos de desenvolvimento de doença mental comum, nomeadamente depressão com comorbilidade ansiosa, a ideação suicida é comum e quanto maior a gravidade do quadro clínico, maior o risco de progressão suicidária. No fundo, os médicos partilham destas três situações – ideação suicida como resposta sintomática mal-adaptativa de baixo risco, como secundária a uma crise aguda grave ou como um sintoma de agravamento numa doença depressiva”, diz o também investigador sénior no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), que coordena o Mental Health Literacy, Wellbeing, Depression and Suicide Prevention Lab no Laboratório Associado para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR). 

“O que torna a situação mais difícil e frequente nos médicos e restantes profissionais de saúde é a exposição mais frequente a situações de stress no contexto profissional e de conflito entre a vida pessoal e profissional, bem como o agravamento secundário pelo cansaço. Outro aspecto que diferencia os médicos de outras classes profissionais são as características de personalidade que vão sendo selecionadas no processo de seleção para a carreira, como sejam a obsessividade e o perfeccionismo, eventualmente o distanciamento afetivo, traços de carácter que aumentam o risco de doença mental e comportamentos suicidários”, observa, sendo que outro fator destacado é a cultura organizacional nas instituições de saúde que, segundo Gusmão, tem evoluído para um modelo que diminui a autonomia dos médicos.

“O ambiente saudável e de hierarquia suportiva e contentora é cada vez mais raro, substituído por monitorização da produtividade administrativista, desempoderamento e funcionarização de um profissional que é essencialmente um intelectual que para bem trabalhar carece de ser livre e seguro e não se encaixa na linha de produção clássica bem ilustrada por Charles Chaplin na paródia cinematográfica Tempos Modernos”, lamenta. “Não há alternativa à cultura médica de exigência e de muito trabalhar: a vida das pessoas doentes e em necessidade de cuidados não se compadece com medianias e a prática da medicina produz resultados tanto melhores quanto mais treino se ganha”, adianta.

No entanto, constata que os médicos, como qualquer outra pessoa, estão sujeitos a crises e doenças mentais. Reconhecer sinais de sofrimento emocional entre os pares é crucial. Gusmão sugere que cada equipa médica tenha um líder treinado em saúde mental que funcione como ‘gatekeeper’, um ponto de apoio e orientação para os colegas. “O problema não é o sofrimento emocional, o qual é normal e esperável – não há vida sem sofrimento emocional –, o problema é a frequência em que o sofrimento emocional é experimentado e a forma como vai sendo processado por cada médico quer em crescente resiliência não inibitória de uma adequada relação médico-doente, um processo de maturação adequado, quer em embotamento afetivo, anempatia e resultante desumanização de cuidados, um resultado indesejável”, sublinha, enfatizando: “Depois, os médicos são pessoas como as outras em que a vida acontece, as perdas se sucedem, as fragilidades existem e acontece a doença. E o diagnóstico deve ser feito”. 

Apesar de muitos acreditarem que há um forte estigma relacionado com o sofrimento mental na classe médica, Gusmão oferece uma perspectiva diferente: “Os médicos sabem que sofrem mentalmente, só tendem a não falar no assunto porque faz parte. Não há propriamente estigma. Hoje em dia até há a situação oposta: uma expectativa irrealista de que a profissão se coadune com uma total ausência de sofrimento mental e uma diabolização e alastramento do conceito de burnout que, nalguns casos, encobrirá situações que carecem de tratamento clínico”, afirma o médico que foi pioneiro da literacia em saúde mental em território nacional e coordenou equipas de psiquiatria comunitária e de psiquiatria de ligação. O professor acredita que é essencial construir um ambiente organizacional baseado em equipas coesas e hierarquias de mérito. Além disso, os administradores devem servir as equipas médicas e não interferir nos seus processos. 

Entre as estratégias que Gusmão considera essenciais para prevenir o suicídio entre médicos, estão: consultas anuais de saúde mental ocupacional, formação obrigatória sobre literacia e resiliência em saúde mental e a definição de vias claras para o acesso a cuidados. O psiquiatra salienta também que é fundamental implementar sistemas de monitorização de eventos críticos, que possam servir como sinal de alerta para intervenções precoces. O médico assume igualmente que a pandemia de COVID-19 trouxe desafios inéditos para os profissionais de saúde, mas alerta que o impacto no suicídio entre médicos não deve ser supervalorizado. “Não podemos retirar lição nenhuma que já não soubéssemos: o suicídio na população em geral diminui nos períodos de crise agudos e pode aumentar subsequentemente. Não existe qualquer demonstração de aumento do suicídio entre médicos”. 

Na formação académica, Gusmão defende um currículo que inclua literacia em saúde mental, desde como cuidar de si mesmo, até reconhecer sinais de doença nos outros. Também enfatiza a importância de redes de mentoria entre estudantes, onde os mais experientes possam acolher e apoiar os colegas mais novos. “A formação deveria ser focada na literacia em saúde mental e as suas quatro componentes: como cuidar de si mantendo-se saudável, reconhecer e diagnosticar as doenças mentais, gerir o estigma, e conhecer as vias de acesso e saber como e onde obter ajuda”, adianta. “A prevenção do suicídio durante a vida académica faz-se pelo currículo acima e pela existência de redes de mentoria: cada estudante tem como mentor um estudante mais velho, mais capacitado em saúde mental e que tem como funções o acolhimento, o apoio, o reconhecimento e a referenciação”, continua. 

Questionado sobre o que o motivou a focar parte da sua carreira na prevenção do suicídio, Gusmão relembra o impacto da depressão e do suicídio nos seus doentes e colegas. “Em primeiro lugar, o meu foco principal era a depressão. O suicídio era, e é, a complicação mais grave, ocorrendo num contexto grave, de crise, uma urgência psiquiátrica. E uma morte violenta, evitável. Depois, é um evento epidemiologicamente raro e durante a primeira década da minha carreira o meu contacto com o suicídio foi por luto e doença em sobreviventes amigos e familiares de suicidas, pessoas que tinham feito tentativas de suicídio, casos de suicídio de doentes de colegas e pela morte de colegas por suicídio”, diz o profissional de saúde que preside atualmente a secção de Suicidologia e Prevenção do Suicídio da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental e a Eutimia – Aliança Europeia Contra a Depressão em Portugal, além de ser representante nacional da Associação Internacional para Prevenção do Suicídio. O seu trabalho tem impacto significativo na investigação, ensino e política pública em saúde mental. 

“No 11.º ano morreram cinco doentes que assistia, por suicídio. Paralelamente, tive a oportunidade de trabalhar e realizar investigação em redes internacionais que me permitiram perceber a profusão de diferenças concetuais, quando não confusões, associadas ao tema da morte por suicídio, em Portugal e fora de portas. Finalmente, mais tardiamente na carreira, por efeito da experiência profissional de médico e psiquiatra, mas também enquanto pessoa com uma vida, fui compreendendo e aceitando a morte com naturalidade o que enfatiza a noção de morte experimentada com indignidade, solidão e desamparo totais. Uma das mortes mais desumanizadas que pode existir e sinal de um falhanço comunitário, social, insucesso clínico e de saúde mental pública. A pessoa que se mata está num sofrimento indizível”, realça, explicando que, nos últimos 20 anos, mais de duas dezenas de médicos portugueses se suicidaram. 

Segundo o especialista, “mais homens, mas também mulheres, e de todas as idades”. Ao longo da carreira, Gusmão também enfrentou os seus próprios desafios emocionais. “Não me recordo se tive ideação suicida ou não – uma coisa boa do cérebro é que recalca as vivências profundamente desagradáveis – mas tive múltiplos períodos difíceis ao longo da vida e ligados à carreira, mas tenho dificuldade de os diferenciar como secundários à minha profissão. Considero isso um pouco maniqueísta: a causalidade das doenças mentais é sempre biopsicossocial que é a realidade complexa do desenvolvimento de ação de cada pessoa”, observa. “As dificuldades e as perdas acontecem sempre nos mesmos setores: amor e sexo, família e ocupação. É assim para toda a gente. As adversidades da vida estão sempre presentes e vamos resistindo e perseveramos. Às vezes, por circunstâncias internas e externas múltiplas, não corre bem e adoecemos. Também me aconteceu adoecer e fui muito bem tratado. E aprendi muito. Podemos aprender muito com a experiência de doença”, partilha. 

Embora existam estudos sobre saúde mental de médicos noutros países, Gusmão lamenta a escassez de investigação nacional. “Numa revisão sistemática, recentemente submetida para publicação, sobre intervenções de prevenção do suicídio em Portugal, entre 2000 e 2024, encontrámos apenas sete artigos publicados em revistas ou em literatura cinzenta (teses, relatórios). Mais do que a quantidade, é a falta de qualidade que constitui o maior problema, nomeadamente estudos com séries temporais mal elaborados e sem visão crítica do problema e das várias nuances metodológicas especificas da nossa realidade nacional. A existência e acessibilidade a dados oficiais nem sempre de traduz em conhecimento científico”, divulga o médico que destaca a urgência de abordar o sofrimento mental na classe médica, promovendo não só a prevenção do suicídio, mas também a construção de ambientes de trabalho mais saudáveis e humanos.

“Devemos envidar esforços para cuidar dos que mais precisam e menos preocupação pelo bem estar daqueles que já têm mais saúde mental. Quando se fala em saúde mental, atualmente, amiúde, o foco é na amplificação do bem-estar. É uma ideia generosa, mas receio que possa ser fonte de inequidade ao desviar a atenção e recursos dos que estão doentes ou que vão estar doentes. Paradoxalmente, é uma nova forma de estigma, a banalização e afirmação de tanta preocupação em relação à ‘saúde mental’”, conclui o médico especializado em intervenções em saúde pública e fatores de sucesso na implementação de programas comunitários escaláveis. Lidera projetos europeus financiados pelo programa HORIZON 2022, como MentBest, EARLY e ProsperH, e viu publicados mais de 50 artigos em publicações de alto impacto. É reconhecido pela sua expertise em perturbações do humor, suicídio, serviços de saúde mental, psiquiatria de ligação e alfabetização em saúde mental, tendo contribuído para a formação de médicos, orientação de teses e participação em grupos de trabalho nacionais e internacionais.

Em Por que é tão difícil evitar o suicídio de médicos?, Batya Swift Yasgur, autora de livros de ficção e não-ficção e, também, medical writer, explora o desafio do suicídio entre médicos, relatando um caso específico que ilustra a gravidade do problema. Tal como nesta reportagem, aborda o stresse, burnout e depressão, que são apontados como fatores de risco, exacerbados por barreiras institucionais que dificultam a busca de ajuda, como o medo de represálias na obtenção das licenças médicas. Medidas de apoio, como “compadres” e “guardiões”, são sugeridas para ajudar na deteção precoce e prevenção. O artigo enfatiza a importância de reduzir o estigma em torno da saúde mental dos médicos e criar ambientes de apoio e segurança e um dos subtítulos é “Não tem culpa” e, de facto, os médicos com ideação suicida e aqueles que acabam por acreditar que a sua vida já não faz qualquer sentido não têm culpa: os sistemas educacional e laboral tradicionais é que devem ser repensados.

Contactos de apoio e prevenção do suicídio:

SNS 24 – 808242424
SOS Voz Amiga – 213544545, 912802669, 963524660
Conversa Amiga – 808237327, 210027159
SOS Estudante – 915246060, 969554545, 239484020

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