Identidade pós-género
De um lado temos o algoritmo a empurrar-nos para uma lógica normalizadora de bolha que nos impele para o novo do mesmo. Do outro, uma corrente pós-género habituada a viver a música como um espaço de liberdade sem restrições nem fronteiras. E agora para onde nos viramos?
2021 está a ser mais moderado que anos anteriores, fruto de uma inevitável desaceleração da máquina pop, mas já está cheio de pedras na engrenagem a contrariar um novo normal em que nos é devolvido aquilo que já demos. Formas como as populares playlists nos serviços de streaming não são mais do que uma actualização tecnológica do funcionalismo de velhas colectâneas, desde o Now ao Buddha Bar, em que a música assume um papel decorativo. Prova da influência adquirida por este modelo, há quem pague para posicionar canções ou instrumentais nestas playlists, de forma a colher retorno directo através de dividendos pela reprodução, ou indirecto através da divulgação. Num passado não muito distante, práticas como esta eram proibidas por lei…na rádio, mas no faroeste que ainda reina no streaming tudo é permitido.
As playlists podem ser úteis e reveladoras quando administradas sob uma curadoria independente e credível mas não é essa a regra e, face à popularidade crescente, contribuem para um esvaziamento do sentido crítico, enquanto a validação aritmética se impõe naturalmente. Os números podem ser uma importante régua para compreender a música popular, não podem é ser ditatoriais na forma como nos impõem o que queremos ouvir. Aliás, é curiosa a imposição destes moldes de consumo quando a cultura de Internet nasceu assente sobre liberdade e autonomia individuais.
Mesmo em tempo de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não. O relatório minoritário de 2021 está cheio de novas entradas. No magnífico álbum de estreia Collapsed In Sunbeams, a soul é o terreno de Arlo Parks mas o fruto suplanta fronteiras de género, tanto evocando Marvin Gaye ou Frank Ocean, como os xx e os Radiohead para abordar questões urgentes como a solidão e a saúde mental para expressar de forma urgente a busca por um espaço são e seguro no mundo.
Vemos editoras habitualmente conectadas ao hemisfério electrónico aventureiro como a Ninja Tune e a Warp a apostar em novos combos rock não formatados como os Black Country New Road e os Squid, selos clássicos como a 4AD a ser apartamento de novas vozes negras como Tkay Mazda, Spencer ou Velvet Negroni. As casas defensoras da identidade podem fazer a diferença através da curadoria. Os filtros ainda são essenciais para separar o trigo do joio. No jazz londrino, americano, sul-africano ou australiano, a liberdade é a palavra de ordem. A democratização não é apenas geracional, é também do gosto e da inclusão. Do afro-beat, ao hip-hop ou ao house, há décadas que o jazz não estava tão disponível para comunicar com outros mundos, apesar de ser esse o seu desígnio: a liberdade formal contra o agrilhoamento racial e estético.
O que estes exemplos cruzados nos dizem é que mais do que género, este é o tempo das identidades. Das identidades pós-género. Por uma relação mais franca com a música.