Imagens do que perdemos

por Paulo Rodrigues Ferreira,    2 Março, 2022
Imagens do que perdemos
Fotografia de Vali Sachadonig / Unsplash
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Diz-se que a vida é breve, e de facto é, pois entre os chutos nas latas de coca-cola amolgadas no recreio escolar aos cabelos brancos passaram duas semanas. Porém, ao olhar para trás entrevejo múltiplas vidas, algumas das quais me parecem já difíceis de descodificar. Por exemplo, recordo ter vivido num apartamento em São Bento, e ter como vizinha uma fadista semi-famosa e um adolescente que escutava trezentas vezes por dia a mesma canção melosa. Consigo ainda enumerar rotinas associadas à minha existência de então, como subir e descer a rua acartando sacos de compras e mochilas carregadas de fotocópias, mas escapam-me determinados pormenores fundamentais para o relato da minha biografia. Conquanto me assaltem imagens de caminhadas no jardim da Estrela, de tardes abancado em esplanadas, não retenho as caras das pessoas que me acompanhavam, e muito menos as conversas. 

Com o tempo, as muitas vidas que tenho vivido resumem-se a fragmentos, a curtíssimos retalhos — um sorriso, meia frase trocada com alguém a propósito de sabe-se lá o quê, uma visão de um prédio que diz quase nada acerca do passado. Ao escrever que sinto falta das romarias ao Príncipe Real, não sei bem descrever aquilo de que sinto falta. O que me comove são emoções despertadas pela recordação do empregado de café batendo na máquina de café como um mecânico, do cheiro do jornal que adquiria só pelo prazer de o cheirar e sentir nas mãos, das bancas de alfarrabistas na Rua Anchieta e da calçada molhada pela chuvada da noite anterior. No fundo, aquilo de que sinto falta nos sábados de outrora poderei encontrar em qualquer parte do mundo, mas o problema é que a memória me reconduz para essas imagens lisboetas, não para outros lugares. Guardo em mim uma Lisboa imaginária, só minha, composta de elementos sensoriais que a outros são indiferentes: o eléctrico subindo lentamente a Graça às seis da tarde, enquanto o cheiro a frango assado embala os taxistas protegidos pela sombra do jardim. Quem se comove com o senhor do restaurante limpando o balcão com um pano encharcado de lixívia? Ninguém a não ser alguém que tenha convivido com tais realidades. 

O que me comove são emoções despertadas pela recordação do empregado de café batendo na máquina de café como um mecânico, do cheiro do jornal que adquiria só pelo prazer de o cheirar e sentir nas mãos, das bancas de alfarrabistas na Rua Anchieta e da calçada molhada pela chuvada da noite anterior.

Mil vidas dobradas dentro de uma vida curta, que se vai fazendo longa, ao ponto de as memórias serem pontos desconexos, postais de viagens que remeto a mim mesmo com o intuito de recriar um passado mais perfeito do que aquele que vivi. Gastei-me idealizando futuros, evitando a felicidade do momento presente. Faltava-me sempre algo. Ou me queixava da falta de fortuna, de não possuir dinheiro suficiente para desfrutar sem a preocupação das contas por pagar, ou atribuía a responsabilidade das minhas dores a outros, àqueles que não viam quão talentoso eu era. E agora entendo que também nesse passado em que não me autorizei a ser feliz fui feliz. À distância vejo uma face jovem, embrenhada na missão de ser alguém, de ser mais do que aquilo que o destino lhe permitia. Era feliz, vejo-o com clareza porque não me prendo às melancolias de tempos antigos, nem me afectam as traições de António, nem as patifarias de Ricardo. Tudo passou, e restam os tais fragmentos desconexos, a lembrança de uma cerveja fresca no Martinho da Arcada, de uma ida a Tróia com os peitorais de fora para impressionar os amigos. 

“Temos mil vidas e as imagens idealizadas do passado fazem-nos crer que, nalgum tempo remoto, numa situação utópica, poderíamos escapar da vulgaridade, transcender as circunstâncias e os problemas do dia-a-dia, e recuperar o que perdemos. Mas a realidade é que falamos de imagens.”

Querendo dissecar uma conversa ocorrida há dez anos, espanto-me por apenas restar uma ou duas palavras, por saber mais sobre o local onde a conversa decorreu do que sobre o diálogo em si. Também me ocorre pensar que, por vezes, a saudade de certas aventuras românticas tem que ver com a rememoração do que estava à volta, não tanto com as pessoas envolvidas. O quarto com vista para o rio Tejo sobrepõe-se à face da amada, e o gel de banho de alfazema substitui a lembrança dos beijos. Ao fim de trinta vidas, não me seduzem recordações de corpos que não existem mais. Catarina envelheceu, procriou, casou-se com Aníbal arquitecto, e não me sinto impelido a telefonar-lhe só porque a lembro com a cara que ela tinha noutra encarnação. O que sucede é que algo dentro de mim ainda a conserva menina, apaixonada e, mais importante, dentro da casa onde a despi, cheirando a alfazema, contemplando o rio. Temos mil vidas e as imagens idealizadas do passado fazem-nos crer que, nalgum tempo remoto, numa situação utópica, poderíamos escapar da vulgaridade, transcender as circunstâncias e os problemas do dia-a-dia, e recuperar o que perdemos. Mas a realidade é que falamos de imagens.  

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