Imaginando o impossível, juntes: arte, repressão e resistência
Três Estudos de caso sobre a manutenção da hegemonia cultural e da resistência política nas artes contemporâneas portuguesas: Transfake no Teatro São Luiz, a selecção para o Pavilhão de Portugal na 59.ª Bienal de Veneza & censura na Feira Gráfica.
No dia 19 de Janeiro de 2023, no Teatro São Luiz, fez-se história no âmbito da peça “Tudo sobre a minha mãe”, dirigida por Daniel Gorjão, em conjunto com a associação cultural Teatro do Vão. Como resposta ao elenco no qual se inseria o actor cis André Patrício, que reperesentava uma mulher trans, um grupo de activistas trans e aliados cis empreenderam um protesto que, hoje, é entendido como um momento determinante na história da cultura portuguesa e na história do activismo trans em Portugal. O papel desempenhado por André Patrício enquadra-se no que é conhecido como transfake: uma forma de injustiça epistémica [1] definida pela primeira vez, em 2016, pela obra de Renata Carvalho, Leona Jhovs, Léo Moreira Sá, Ave Terrena e MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans) através do texto “Manifesto Representatividade Trans Já” [2][3]. O Transfake consiste na selecção e escolha de actores cis para representarem papéis trans. Trata-se de uma prática que exclui as pessoas trans do seu direito ao trabalho e representatividade, ao mesmo tempo que contribui para a manutenção de estereótipos preconceituosos, descaracterizações prejudiciais e para a perpetuação da história da opressão trans. O transfake não é apenas uma forma de discriminação, mas sustenta a lógica da nossa opressão que se expressa na negação das epistemologias trans. O casting transfake, como forma de violência estrutural, enquadra-se na história da opressão sistémica contra as experiências trans, não binárias, não conformes com o género ou “não de género”.
A história, encarada através da lente daqueles que protagonizam a hegemonia social vigente é, frequentemente, percepcionada através das narrativas lineares que se fixam num único protagonista. Tal é feito,frequentemente, em detrimento dos movimentos que lutam por uma possível mudança social, cultural e política. O protesto que ocorreu no Teatro São Luiz foi a consequência de uma organização colectiva, da união, do empenho, das alianças efectuadas e solidariedade sob a base de múltiplas experiências de opressão, tendo como alicerce uma história de luta e trabalho. A luta de libertação não funciona na gratificação instantânea das lógicas capitalistas. É uma história que tem muitos momentos de fracasso, perda, adaptação e sucesso, ondulando em ciclos com ressonância através do tempo. É uma história de imaginação colectiva, esforço e luta. É uma história de muitos, dos quais sou apenas uma.
No contexto da acção no Teatro São Luiz eu era, antes de mais, uma organizadora empenhada na construção de elos, na reunião das pessoas para se unirem em luta. No dia da acção desdobrei uma faixa da varanda interior do auditório, juntamente com outro activista que fazia o mesmo do lado oposto. Começámos a gritar “transfake” em uníssono, com outros activistas estrategicamente posicionados em todo o auditório, enquanto André Patrício subia ao palco para a sua actuação transfake. Após os nossos cânticos, a artista e activista trans Keyla Brasil subiu ao palco na nossa acção coordenada, enquanto outros activistas se mantinham em guarda para a protecção física de Keyla. Tal foi feito enquanto outros activistas gravavam o sucedido, em vídeo. A partir do palco, Keyla começou por expor as condições da sua opressão, assim como as necessidades do sector, para se dar uma resposta estrutural à exclusão sistémica das pessoas trans do acesso aos meios de produção cultural e à narração das nossas próprias histórias. Keyla Brasil deu a conhecer a sua experiência, mas transpondo-a, também, para a realidade estrutural das pessoas trans. Keyla deixou claro que esta era uma luta por mais do que apenas “representação”, no sentido oco e cínico da doutrina neoliberal, mas uma luta pela sobrevivência a ser realizada, apenas, através de uma mudança sistémica e material. Para além de participar e organizar a acção no Teatro São Luiz, escrevi também o manifesto que antecedeu esta acção [4] que foi divulgado por Luan Okun, Lila Tiago, Ary Zara e por mim própria, num comunicado em vídeo que produzi e editei. Organizei, fiz a comunicação visual e escrevi o manifesto que incluía uma lista de reivindicações [5], também, para uma concentração que aconteceu fora do Teatro São Luiz na última noite da peça “Tudo sobre a minha mãe”, celebrando e afirmando a nossa luta contínua num momento de comunidade.
Fui, igualmente, organizadora das duas acções anteriores contra o casting transfake no sector cultural português, desta feita com a peça “Eu Sou a Minha Própria Mulher”, encenada por Carlos Avilez e protagonizada por um actor cis masculino, Marco D’Almeida, no Teatro Experimental de Cascais e no Teatro-Estúdio António Assunção, no contexto do Festival de Almada. Criei a campanha digital e escrevi ambos os manifestos contra o casting transfake na peça “Sou a Minha Própria Mulher”, que incluía a contribuição de Salomé Honório. No primeiro manifesto [6], contextualizei o transfake como uma forma de injustiça epistémica, abrangendo também o blackface, no “Manifesto Representatividade Trans Já” [3]. À medida que a luta continua, organizo-me, actualmente, contra um regresso ao palco do “Sou a Minha Própria Mulher” no contexto do Festival de Almada a 7, 9 e 11 de Julho no Fórum Romeu Correia, que continua a incluir o casting transfake [7]. Também estou a organizer uma acção contra um elenco adicional de transfake na peça “Things I Know to be True”, em palco no Teatro do Bairro, de 19 a 30 de Abril. Após o lançamento da campanha, os Lisbon Players lançaram uma chamada aberta para uma actriz trans. O papel não é remunerado, tornando-o altamente inacessível aos trabalhadores das artes trans. Ainda não está claro se irão avançar com o casting transfake, caso não seja encontrado nenhum artista novo. Em todos estes momentos de resistência houve um grupo rotativo de pessoas, tanto pessoas trans como aliados cis, envolvidos em graus e intensidades variáveis no apoio. Houve momentos de conflito, alegria partilhada, fúria e luta. Os riscos que corremos, o nosso trabalho e envolvimento baseiam-se numa história de recusa e numa imaginação colectiva de libertação que nos une em acção.
Dentro da comunidade trans (não só em Lisboa, mas internacionalmente) reconhecemos a força, potencialidade e o significado histórico deste momento de resistência no Teatro São Luiz. Reconhecemos a resistência de um legado de luta, carregamos o seu peso e impacto. No entanto, aos marginalizados não é, muitas vezes, concedido o privilégio de contar a história, muito menos a sua própria história: uma luta central para a resistência contra o casting transfake. O impacto deste acontecimento, muitas vezes interpretado fora do seu colectivismo e contexto dentro de um movimento político, acaba por ser descontextulizado pela imprensa e pelas acções empreendidas pelo Estado e instituições da cultura, todos eles dominados por pessoas cis. Os críticos destes protestos contra o transfake têm-se recusado, constantemente, a reconhecer as condições materiais e estruturais da opressão em que vivem as pessoas trans, quanto mais as condições históricas que levaram a essa opressão e a mantê-la. Ao olhar para o pendor transgressivo destes acontecimentos e para a própria história a escrever-se a ela própria, não pude deixar de me interrogar se o que vi não seria, antes, um padrão a reemergir. É um padrão de comportamento, retórica e sensibilidade que acompanha a exclusão sistémica dos historicamente marginalizados, na manutenção da hegemonia.
Neste texto, gostaria de analisar, comparativamente, a recepção crítica deste acto histórico de protesto pela libertação trans, e a recepção crítica de outras instâncias contemporâneas de protesto de trabalhadores de arte marginalizados, que se dedicam ao activismo anti-racista. A partir do artigo académico “Colonial Modern Gender System” [8], desenvolvido pela filósofa María Lugones, como fundamentação, gostaria de demonstrar a interligação que existe entre racismo, heterossexismo, opressão de classe e a imposição do género binário como instrumentos de dominação social, no seio de uma história de colonialismo e expansão capitalista ocidental. A partir desta mesma perspectiva e interligação de ideias, como uma forma de construir alianças e identificar relações de poder, gostaria de investigar como os sujeitos historicamente marginalizados são oprimidos dentro de um núcleo imperial, enquanto se envolvem em actos libertadores de resistência. Através de três estudos de caso escritos a partir de um arquivo que desenvolvi ao longo dos últimos 3 anos (sem o apoio ou financiamento cultural de qualquer instituição), que documenta a opressão sistémica nas instâncias do sector cultural português, analisarei a resposta pública ao protesto dos trabalhadores culturais marginalizados, ao mesmo tempo que assinalo as narrativas que são normalmente utilizadas para silenciar a oposição e afirmar a manutenção do domínio da hegemonia cultural. Faço isto enquanto contextualizo como o poder em Portugal foi estruturado através da história do capitalismo colonial e do fascismo de estado. A minha intenção é combater, directamente, uma “cultura do esquecimento” institucional e ajudar nas formas de justiça transitória, desafiando e tornando visível a opressão sistémica, enquanto descentralizo espaços de produção de conhecimento dentro de uma cultura e tradição de prática de resistência.
Metodologia
Posicionalidade, tal como definida pela filósofa Linda Alcoff [9], refere-se ao processo em que as discrepâncias na posição social e no acesso ao poder moldam a identidade em relação aos sistemas históricos embutidos na sociedade. A partir deste trabalho, juntamente com o enquadramento conceptual de intelectuais negros racializados [10], a filósofa Djamila Ribeiro, na sua articulação do “lugar de fala”, [11] discute as relações de poder presentes no discurso e o viés implícito na posição ocupada pelo orador. Sendo conhecedora deste pensamento com raízes históricas, estou a tornar visível o meu “lugar de fala” e metodologia antes de ir mais longe neste texto, com o objectivo de analisar e reconhecer criticamente a minha posição social e como isso pode afectar a minha perspectiva e os resultados da minha investigação. Gostaria, também, de tornar explícito que a aplicação da prática reflexiva de posicionar o “lugar de fala” não só é valiosa no trabalho académico ou cultural, mas também numa multiplicidade de relações interpessoais, pois pode ajudar a desenvolver uma consciência de como nos podemos encontrar através de múltiplas opressões e desafiar a forma como o poder é distribuído.
Trata-se de um texto escrito por uma mulher trans, que é racializada como branca, com um corpo que é actualmente definido como “capaz”, a partir de uma perspectiva de classe trabalhadora e transnacional. Devido à inter-relação da minha experiência de classe e género, como pessoa trans sou lida na sociedade como “não masculino”, mas também como “não-passante” às normas e expectativas definidas pelo cissexisimo. É um lugar de encarnação que carrego com alegria, juntamente com todas as suas vicissitudes, sufocado no pluralismo trans ontológico [12]. Sou uma autodidacta e não tenho formação universitária. A minha falta de uma educação institucional é, também, uma consequência da opressão sistémica que intersecta experiências de classe e género. Apesar disso, acredito firmemente que a produção de conhecimento e a narração de histórias beneficiam de metodologias autodidácticas devido à sua valorização das bases e tendências de conhecimento tácito e relacional na ocupação de uma lente multidisciplinar; tudo isto acredito que é necessário quando me envolvo em reflexões sobre o contemporâneo. Venho de uma família imigrante de artesãos e trabalhadores do sector dos serviços portugueses da classe trabalhadora, que fugiram e resistiram ao Esdado Novo, e cujos caminhos de migração cruzaram os territórios coloniais chamados Venezuela e Estados Unidos. Nasci em território Matinecock, na ocupação colonial chamada Nova Iorque e, actualmente, vivo em Portugal. Acredito que a minha perspectiva moldada a partir de dois núcleos imperiais, ambos coloniais, e a sua intersecção com a minha racialização como pessoa branca representam os maiores riscos para o meu trabalho. O privilégio tem muitas formas de exercer violência estrutural: pode ser passivo na forma de uma insensibilidade e ignorância das experiências matizadas de marginalização, ou agressivo na arrogância e narcisismo que se agarra à ocupação de espaços de poder e centralidade. Ninguém está imune a reproduzir a violência estrutural, e eu responsabilizo-me igualmente e estou disposta a envolver-me num processo reflexivo; parte do trabalho vitalício de crescer como aliado e em solidariedade. Em resposta a isto, estou a desenhar e a contornar perspectivas pós-coloniais e metodologias de descolonização, numa tentativa de descentralizar estruturalmente a minha lente, reconhecendo como foi moldada pela colonialidade.
Politicamente, estou consciente de uma história de 22 anos de trabalho de activistas internacionais e de organizações comunitárias, começando pela assembleia de activistas Feirce [13], unidos na luta contra o recolher obrigatório e o encerramento do Christopher Street Piers, na cidade de Nova Iorque, no ano 2000. Nos últimos 7 anos, desenvolvi uma prática institucional como artista dentro do sector cultural alemão. A minha história de criação artística insere-se dentro do contexto das artes performativas, bem como dentro da tradição da Prática Social [14]. Estando envolvida numa crítica à precariedade do trabalho cultural e do trabalho independente, especialmente na perspectiva das identidades historicamente marginalizadas, também quero tornar visíveis as condições de trabalho para este texto, que foi de 40 euros por 2 páginas de escrita. Excedi entusiasticamente o pedido inicial desta comissão por minha própria vontade, uma vez que o panorama do jornalismo português é lamentavelmente carente de perspectivas trans e de crítica de arte centrada na teoria crítica. Quando este texto foi aceite para ser publicado, o meu salário foi aumentado para 60 euros. Quanto às minhas actuais condições materiais, trabalho em múltiplos trabalhos como freelancer e, muitas vezes, ganho abaixo do salário mínimo português. Actualmente, vivo em habitações precárias, trabalhei anteriormente como trabalhadora do sexo para obter um salário de subsistência, experimentei o problema dos sem-abrigo e, também, a instabilidade habitacional. Em Portugal estou, estruturalmente, excluída do acesso ao trabalho cultural nas artes do espectáculo e como educadora de competências interculturais, actividades às quais tive acesso anteriormente na Alemanha. Esta precariedade é uma consequência directa da opressão estrutural e da exclusão sistémica enraizada na inter-relação de experiências de classe, género e sexualidade.
No meu trabalho como artista envolvida na Prática Social, utilizo frequentemente a prática arquivística para poder contar as histórias e, claro, tornar visível a dinâmica estrutural e material do poder, para que possam ser abordadas de forma crítica e serem respondidas de forma significativa através da acção. Como local da minha ascendência e, também, resultado de muitas histórias que se cruzam e cuja temática definem o contemporâneo – como o fascismo, o colonialismo, a memória, a identidade e a luta revolucionária – Portugal, assim como o seu legado cultural, tornou-se um foco da minha investigação. Nos últimos três anos, no contexto de um trabalho de arte de Prática Social em maior escala (sendo desenvolvido sem acesso a apoio institucional ou financiamento), tenho documentado instâncias dentro do sector cultural português de reproduções de opressão sistémica e a manutenção de normas hegemónicas, com a intenção de compreender a trajectória de como as histórias e sistemas de dominação persistem na contemporaneidade. Isto tem sido documentado, tendo em conta todos os aspectos na forma como um trabalhador da arte pode aceder à produção – através de organismos públicos e privados de financiamento, residências, festivais e feiras de arte, e nas práticas expositivas de instituições culturais públicas e comerciais. Adjacente à documentação destes estudos de caso, o meu âmbito arquivista alcança a dinâmica interpessoal dentro do sector; tendo como base discursos de figures públicas nos meios de comunicação social, bem como dentro do sector public, apresentado através de narrativas mantidas dentro da imprensa. Estes estudos de caso ocorreram através de abusos de racismo, transfobia, serofobia e abelisim, feitos com a intenção de analisar como funciona o poder, e como este é exercido para manter a história de opressão.
[1] Fricker, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford University Press, 2009.
[2] “Representatividade Trans Já – Diga NÃO ao TRANS FAKE” Change.org, www.change.org/p/sated-representatividade-trans-j%C3%A1-diga-n%C3%A3o-ao-trans-fake
[3] Representatividade Trans, MONART, “Manifesto REPRESENTATIVIDADE TRANS, JÁ!”. Facebook, Janeiro 12, 2018, https://www.facebook.com/RepresentatividadeTrans/posts/1857260104543557/
[4] Whistles, Dusty [@dustywhistles]. “TRANSFAKE é TRANSFOBIA! Boicote ‘Tudo Sobre a Minha Mãe.'” Instagram, Janeiro 17, 2023, https://www.instagram.com/reel/CnhuXz7tn5g/
[5] Whistles, Dusty. “Manifesto ‘Diz Não Ao Casting Transfake’ – esQrever.” esQrever, Janeiro 21, 2023, https://esqrever.com/2023/01/21/manifesto-diz-nao-ao-casting-transfake/
[6] Whistles, Dusty. Honório, Salomé. “Nota De Repúdio // Teatro Experimental De Cascais // “Eu Sou a Minha Própria Mulher” Petição Pública, https://peticaopublica.com/?pi=PT111721
[7] Whistles, Dusty [@dustywhistles]. “Diz não ao casting Transfake no Teatro do Bairro e no Festival de Almada! Reunião no dia 8 de Abril || envia DM para o link Ilustração de @missingonpurpose” Instagram, Março 30, 2023, https://www.instagram.com/p/CqY5Fw1MWZA/
[8] Lugones, María. Heterosexualism and the Colonial / Modern Gender System. Hypatia 22, 2007.
[9] Alcoff, Linda. Cultural Feminism versus Poststructuralism: The Identity Crisis in Feminist Theory. Signs 13.3, 1988.
[10] Dalal, Farhad. Race, Colour and the Process of Racialization: New Perspectives From Group Analysis, Psychoanalysis, and Sociology. Brunner-Routledge, 2002.
[11] Ribeiro, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017.
[12] Lugones, Maria. Structure/Antistructure and Agency under Oppression. Journal of Philosophy 87, 1990.
[13] Mananzala, Rickke. “The FIERCE Fight for Power and the Preservation of Public Space in the West Village – the Scholar and Feminist Online.” the Scholar & Feminist Online, https://sfonline.barnard.edu/the-fierce-fight-for-power-and-the-preservation-of-public-space-in-the-west-village/
[14] Tate. “Socially Engaged Practice | Tate.” Tate Art Terms, https://www.tate.org.uk/art/art-terms/s/socially-engaged-practice
Opressão Trans e o Sistema Colonial Moderno de Género
A história da opressão trans pode ser entendida como um local de luta ontológica, em que a própria possibilidade de ser, ou pluralidades de ser, são completamente negadas. A negação de experiências de género e “não género” fora da construção da hegemonia ocidental cissexista ocorre, apesar de uma multiplicidade de quadros de longa data em organismos estabelecidos do pensamento ocidental, por exemplo: enquanto eu critico a história da medicalização e patologização das experiências trans, na comunidade científica, o dimorfismo de género foi há muito estabelecido como uma falácia ideológica [1], juntamente com uma história de despatologização da experiência trans [2]. Embora também critique a forma como estas disciplinas se envolveram, podem ser um produto de, e são frequentemente narradas através das lentes da colonialidade. Existe, também, uma pluralidade de registos históricos, culturais e arqueológicos que documentam uma diversidade de experiências de género e “não de género” para além do binário e da imposição hegemónica das epistemologias ocidentais.
A filósofa María Lugones, na sua obra “Heterossexualismo e o Sistema de Género Moderno Colonial”, [3] prova e explicita como a história de dominação colonial introduziu as suas estruturas no mundo, tais como o binário de género, a organização heterossexual, o patriarcado e a classificação racial. Este processo foi empreendido ao mesmo tempo que destruía as organizações sociais que eram já mantidas pelas pessoas colonizadas e, de facto, racializava o género. Afirma ela:
“O colonialismo não impôs aos colonizados arranjos pré-coloniais, europeus de género. Impôs um novo sistema de género que criou arranjos muito diferentes para homens e mulheres colonizados do que para os colonizadores burgueses brancos. Assim, introduziu muitos géneros e o próprio género como um conceito colonial e modo de organização das relações de produção, relações de propriedade, de cosmologias e formas de saber”. [3]
Lugones discute a necessidade de compreender que a “colonialidade do poder” [4], um termo que ela desenvolveu a partir de Aníbal Quijano, não se limitou a apresentar formas de classificação racial, mas todo um fenómeno abrangente. Ela argumenta que devido à história do colonialismo e da expansão global do capitalismo eurocêntrico, o género, a sexualidade, a classe e a racilaização devem ser reconceptualizados como “entrelaçados ou fundidos”. Para citar Lugones:
“continuamos a centrar a nossa análise no patriarcado; ou seja, numa formação binária, hierárquica, opressiva do género que assenta na supremacia masculina sem qualquer compreensão clara dos mecanismos pelos quais a heterossexualidade, o capitalismo, e a classificação racial são impossíveis de entender separadamente. O patriarcado heterossexualista tem sido um quadro a-histórico de análise. Compreender a relação entre o nascimento do sistema colonial/moderno de género e o nascimento do capitalismo colonial global – com a centralidade da colonialidade do poder para esse sistema de poder global – é compreender de novo a nossa actual organização da vida”. [3]
Levanto o trabalho de Lugones para não equiparar os entendimentos ocidentais contemporâneos de identidades trans com ontologias pré-coloniais erradicadas ou moldadas pelo “Colonial Modern Gender System”, pois isso só serviria para continuar o trabalho do imperialismo. Através do trabalho de Lugones e da sua estrutura do “Colonial Modern Gender System”, procuro compreender como os sistemas de opressão, decretados através dos processos históricos do colonialismo e da expansão capitalista ocidental imperialista, continuam a oprimir expressões que se situam fora de uma estrutura do binário de género e traçam como se entrelaçam com a sexualidade, a classe e a racialização – investidos num projecto de construção de alianças.
Transgender Studies, um campo interdisciplinar de investigação académica que começou com o trabalho de Sandy Stone, em 1987 [5], desenvolveu-se em torno dos fundamentos teóricos da Teoria Queer. No seu início, os Estudos Transgéneros estavam muito centrados na brancura e numa relação histórica com a colonização, tais como a antropologia. Devido a isto, muitas vezes, quando a variedade de género é conceptualmente discutida, incluindo experiências transgénero, o quadro de referência regressa ao binário, perpetuando a colonialidade. Há uma necessidade profunda de problematizar os enquadramentos disponíveis nos Estudos Trans que, até há bem pouco tempo, faltavam gravemente numa lente descolonial.
No seu último ensaio, escrito em 2020 antes da sua morte, María Lugones escreveu: “O novo pensamento sobre o género acompanhou a crítica do binário provocada pelo enfoque na intersexualidade, transgénero, transsexualidade, e a introdução do “queer” como uma compreensão não binária do género. Contudo, a crítica do binário não foi acompanhada por uma revelação da relação entre colonização, raça e género, nem por uma análise do género como uma introdução colonial do controlo da humanidade dos colonizados, nem por uma compreensão de que o género obscurece em vez de desvendar a organização da vida entre os colonizados”. [6]
O trabalho de Lugones está centrado numa profunda compreensão do poder e numa análise de como a intersubjectividade é produzida tanto material como socialmente. O seu trabalho exige uma rejeição das forças “universalizantes” da colonização. Reconhece multidões de encarnação, e com isso, entra num processo de testemunhar-se e, claro, testemunhar-se mutuamente na construção da luta colectiva. É através do encontro entre si através de múltiplas opressões, que a construção da coligação se torna possível.
[1] Montañez, Amanda. “Visualizing Sex as a Spectrum.” Scientific American, https://blogs.scientificamerican.com/sa-visual/visualizing-sex-as-a-spectrum/
[2] “ICD11 Is a Stride Toward Depathologisation of Trans People, but More Is Needed – Commissioner for Human Rights” Council of Europe, Commissioner for Human Rights, https://www.coe.int/en/web/commissioner/-/icd11-is-a-stride-toward-depathologisation-of-trans-people-but-more-is-needed
[3] Lugones, María. Heterosexualism and the Colonial / Modern Gender System. Hypatia 22, 2007.
[4] Quijano, Anibal. Coloniality of Power, Eurocentrism, and Latin America. Nepantla: Views from the South. 1 Vol.3, 2000.
[5] Stone, Sandy. The Empire Strikes Back: A Posttranssexual Manifesto. Camera Obscura 29, 1992.
[6] Lugones, María. Gender and Universality in Colonial Methodology. Critical Philosophy of Race 8, 2020.
Três estudos de caso sobre a manutenção da Hegemonia Cultural
No contexto da discussão pública em torno deste protesto histórico contra o casting transfake, os argumentos utilizados e reproduzidos para manter a ordem hegemónica – institucionalmente, interpessoalmente e na imprensa – foram chocantemente semelhantes, e por vezes quase textualmente, aos argumentos utilizados em estudos de casos anteriores que arquivei em relação a casos de protestos de autoria de trabalhadores culturais marginalizados. Embora estes estudos de caso sejam muitas vezes historicamente alienados e reduzidos a lutas identitárias singulares, nomeadamente o racismo e a transfobia, a utilização do enquadramento do “Colonial Modern Gender System”, proposto por Lugones, pode ajudar a compreender a sobreposição de uma resposta sistémica na manutenção da ordem hegemónica, que historicamente se investiu na preservação da dinâmica de poder da colonialidade. A utilização deste quadro pode também ajudar na construção de coligações para decretar a mudança sistémica.
Não é de surpreender que estas estruturas possam ser tão claramente observadas no trabalho numa nação como Portugal, sendo um dos fundadores do projecto colonial. Uma leitura crítica e um confronto com a história do colonialismo português, e o seu correspondente regime fascista que impôs a sua manutenção, continua a ser negada através de uma variedade de mitologias nacionais e da formação da memória pública, por exemplo: a omnipresente celebração histórica e o orgulho nacional em torno do período de conquista colonial enquadrado como a “Era dos Descobrimentos”, ou o enquadramento cultural do Estado Novo como uma “ditadura”, apesar de cumprir todos os critérios reconhecidos para o fascismo – nacionalismo autoritário, poder ditatorial, supressão da oposição, militarismo, e controlo da indústria e comércio. A negação do fascismo português e o enquadramento do Estado Novo como uma “ditadura” acontece não só coloquialmente, mas também na história escrita e no enquadramento histórico de instituições culturais públicas como o Museu do Aljube. Coloquialmente, o fascismo português só tende a ser reconhecido nos cânticos de protesto associados à Revolução dos Cravos, “25 Abril Sempre! Fascisimo nunca mais!”, apenas para ser rapidamente esquecido ou aplicado a uma compreensão da história. Os memoriais culturais contemporâneos que envolvem a história portuguesa continuam a carecer de contexto e de uma reflexão crítica. Isto pode ser visto mais recentemente na ausência de contextualização e de uma reconstrução acrítica da arquitectura da Praça do Império; que foi originalmente construída durante o regime fascista de Portugal e celebra a história violenta e vergonhosa da conquista colonial portuguesa [1]. A falta de reflexão crítica e a persistência da celebração do fascismo português também pode ser vista na recente decisão de avançar com a construção do Centro Interpretativo do Estado Novo na cidade natal do ditador António de Oliveira Salazar [2].
A negação da história e do poder, inserida numa relação com a identidade nacional e a mitologia cultural, está a ser activamente abalada nestes momentos históricos de protesto de autores marginalizados que procuram a libertação, e explica as respostas viscerais, irracionais, cruéis e violentas que levam ao emprego de forças hegemónicas que procuram dominar e erradicar todas as vozes de oposição. Os activistas historicamente marginalizados em Portugal estão a responder directamente à perseverança e manutenção contínua das estruturas de poder, opressão e desigualdade do fascismo português e do capitalismo colonial. No contexto dos espaços de produção cultural, estes momentos de ruptura e protesto estão embutidos numa compreensão de uma das funções necessárias da cultura – como um veículo dentro do qual uma sociedade se encontra, abrindo-se à possibilidade de activar a reflexão crítica, impactando a memória, a identidade e o significado, ao mesmo tempo que mudam e expandem a percepção.
A hegemonia é definida como o domínio de um estado, ou grupo social, sobre outro. Pode também referir-se a formas de poder baseadas no consentimento, e não apenas coagidas através da violência. O filósofo e activista marxista Antonio Gramsci, enquanto preso pelo regime fascista italiano, desenvolveu o conceito de “hegemonia cultural” [3] para descrever o domínio hegemónico quando este é alcançado através de meios culturais; influenciando os pensamentos e comportamentos de uma sociedade, orientados para o estabelecimento de valores e crenças normativas formadas pelas visões de mundo de um grupo dominante ou de uma classe dominante. O “consentimento” dos subjugados na sua própria opressão é essencial na fortificação e manutenção da ordem hegemónica. Quando se pensa em hegemonia, no contexto de Portugal, deve-se pensar através como o poder em Portugal foi estruturado através da história do capitalismo colonial e do fascismo de estado.
Com a intenção de investigar a forma como a hegemonia é mantida, gostaria de demonstrar três estudos de caso envolvendo os protestos de trabalhadores culturais marginalizados e observar a resposta pública. A par da resposta pública ao recente protesto no Teatro São Luiz relativamente ao casting transfake para a peça “Tudo sobre a minha mãe” (2023), gostaria também de observar a resposta pública ao protesto contra a rejeição da candidatura do artista Grada Kilomba à participação no Pavilhão de Portugal na 59ª Bienal de Veneza, através de graves abusos de voto e abusos racistas e misóginos no seio do júri, que ocorreu em 2021/2022. Também gostaria de observar a resposta pública aos protestos resultantes da censura de uma discussão sobre o racismo nas artes contemporâneas e no âmbito de obras culturais centradas em representações queer, que ocorreu no contexto da Feira Gráfica em 2020, levando a uma greve de 80 trabalhadores de arte que posteriormente encerrou o festival em 2021. Em cada um destes estudos de caso podem ser vistos padrões relativos às tácticas de dominação e à retórica empregada para silenciar a oposição na manutenção da hegemonia cultural, são eles: manutenção pela força, manutenção pela “gaslighting cultural”, e manutenção pelo mito da “neutralidade”.
A manutenção pela força refere-se a ameaças directas de violência física ou homicídio, bem como a uma cultura ambiente de violência que existe através da pressão consistente da violência estrutural, assédio público, discurso de ódio e actos de terrorismo. O filósofo político, pós-colonial e teórico crítico Franz Fanon compreendeu a violência como sendo central, ou “o estado natural” da colonialidade [4]. Ele entendia a violência do colonizador como não só física mas também cultural, levando à desumanização e à formação da psique como um meio de opressão. Para Gramsci, a hegemonia exigia uma combinação de força e consentimento; “coerção e persuasão; Estado e Igreja; sociedade política e sociedade civil; política e moralidade… lei e liberdade; ordem e autodisciplina” [3].
A manutenção por “gaslighting cultural” pode ser vista nestes estudos de caso como uma táctica que funciona para manipular os oprimidos na sua percepção de si próprios, do ambiente e das suas relações como um meio de afirmar o domínio. O termo “gaslighting cultural”, inicialmente proposto pela filósofa Elena Ruíz [5] e estudado no contexto do colonialismo dos colonos, descreve estruturas sociais e históricas que aumentam a resistência à dominação colonial através da produção de ambientes mentais abusivos. No seu ensaio “Cultural Gaslighting”, ela prossegue afirmando: “A cultura colonial dos colonos diz, de facto, mentiras flagrantes, nega em face de provas, usa o próximo e querido contra si, desgastando-o ao longo do tempo … ao valor facial, a noção de gaslighting pode muito facilmente ser usada como um instrumento de diagnóstico para se referir ao esforço de uma cultura em minar a confiança e estabilidade de outra cultura, fazendo com que o colectivo vitimado duvide [do seu] próprio sentido e crenças”. Embora o seu trabalho se centre nesta prática no contexto do colonialismo dos colonos, ela reconhece que a “gaslighting cultural com gás” existe no contexto mais amplo das relações coloniais.
A manutenção pelo mito da “neutralidade” refere-se à compreensão fabricada da artista como um sujeito “universal” e “neutro”, cujo imaginário artístico e produção artística existe dentro de um quadro ahistórico, e por isso não pode ser afectado pela influência de preconceitos estruturais ou pela reprodução de dinâmicas históricas de poder e opressão. Dentro do mito da “neutralidade”, o sujeito artístico “neutro”, a sua perspectiva e os seus valores estão alinhados directamente com a ordem hegemónica, e servem para obscurecer e normalizar a opressão como táctica de manutenção da hegemonia. A “universalidade” deste sujeito “neutro” é apoiada por processos institucionais e sistémicos. É frequentemente utilizado um enquadramento retórico que necessita urgentemente da preservação da “liberdade” deste sujeito como meio de silenciar a dissidência contra práticas discriminatórias e preconceituosas, que mantêm histórias de opressão. A suposta “neutralidade” e “pureza” da arte, alienada do político e do histórico, sugere que a arte não habita o mesmo espaço, aí mantendo-a e a ordem hegemónica imune à crítica.
A suposta “universalidade” do mito da neutralidade assenta directamente num legado da ideologia colonial-capitalista. O sociólogo e artista Rodrigo Ribeiro Saturnino (ROD), que foi impactado no 3º estudo de caso envolvendo censura no contexto de Feira Gráfica (2020), escreveu:
“No sistema de produção da arte ocidental o mito da liberdade é um produto da branquitude. O pensamento de que a arte não deve se preocupar com a ética é nocivo. A arte faz sua gestão através de valores sociais que acompanham o tempo em que ela está inserida. São escolhas. Não é possível produzir arte atualmente sem pensar no lugar que os artistas ocupam na sociedade. Esse caráter mítico e especulativo criado pela burguesia colonial fundou o campo artístico como lugar de produção de conhecimento hermético e canônico. A ideia de neutralidade é oportuna para quem comanda. Quando argumentamos que a arte pode ser cancelada e deve ser cancelada em determinadas condições, não implica o fim da arte enquanto campo de expressão humana, mas a mudança radical da distribuição dos meios para a sua produção.” [6]
Laura Raicovich, autora do livro “Culture Strike”: Arte e Museus numa Era de Protesto”, e Presidente e Director Executivo do Museu Queens em Nova Iorque (que reside no território Matinecock e que o Museu Queens reconhece, juntamente com as comunidades Matouwac, como mordomos da terra), escreveu:
“Tal como a neutralidade, temos de ser capazes de ver o papel do público nas nossas ‘instituições públicas’ (e, especialmente, nas nossas instituições privadas) para que possamos reconhecer que o público é poderoso, mesmo no contexto do capitalismo tardio onde o poder parece estar cada vez mais concentrado nas mãos de uns poucos. A fim de decretar melhores estruturas e espaços, precisamos de os imaginar. A neutralidade é um véu para exercer o poder e, por ser velado, torna-se invisível e “tal como as coisas são”. Este é o status quo que requer resistência” [7].
[1] Lopes, Ana Sá. Gomes Dias, Beatriz. ‘“Era fundamental que a Praça do Império mudasse de nome”’. PÚBLICO, Março 3, 2023, https://www.publico.pt/2023/03/03/politica/entrevista/fundamental-praca-imperio-mudasse-nome-2041085
[2] Monteiro, Luis. “Não Queremos Uma Homenagem Encapotada a Salazar.” Setenta E Quatro, Março 23, 2023, https://setentaequatro.pt/ensaio/nao-queremos-uma-homenagem-encapotada-salazar
[3] Gramsci, Antonio. Selections from the Prison Notebooks. International Publishers. 1971.
[4] Fanon, Frantz. The Wretched of the Earth. Harmondsworth: Penguin. 1983.
[5] Ruíz, Elena. Cultural Gaslighting. Hypatia 35, 2020.
[6] Saturnino, Rodrigo Ribeiro. “A Destruição Começa Na Imaginação | BUALA.” BUALA, Junho 21, 2022. https://www.buala.org/pt/mukanda/a-destruicao-comeca-na-imaginacao
[7] Raicovich, Laura. “Museums Are Never Neutral” Frieze, Vol. 209. 2020, https://www.frieze.com/article/museums-are-never-neutral
Estudo de caso 1: Transfake
Realizado por Daniel Gorjão, em conjunto com a associação cultural Teatro do Vão, “Tudo sobre a minha mãe” é uma peça adaptada para o palco por Samuel Adamson e traduzida por Hugo van der Ding, com base no filme original de Pedro Almodóvar. Chegou ao palco do Teatro São Luiz a 11 de Janeiro de 2023, e mais tarde foi exibido no Teatro Municipal do Porto. Na peça, o papel de Agrado, um trabalhador sexual trans, é interpretado pela actriz trans travesti Gaya de Medeiros. Ela actuou ao lado do actor masculino cis André Patrício, que representava o papel de uma mulher trans, a personagem Lola. O elenco transfake foi um acto de agressão transfóbica, tanto para a actriz trans dentro da peça como para a comunidade trans. No dia 19 de Janeiro de 2023 em Lisboa, no Teatro São Luiz, um grupo de activistas trans, juntamente com o apoio de cis aliados, dos quais fui participante e organizadora, encenou um protesto dentro do teatro. Foi iniciado quando André Patrício entrou no palco, para a representação transfake. O protesto envolveu a queda de duas bandeiras das varandas do auditório, onde se lia “transfake” e “is transphobic”, seguida da ocupação do palco pela artista e activista trans travesti Keyla Brasil. Ela proferiu um discurso que fez ligações directas à sua experiência de vida, incluindo a exclusão sistémica do sector cultural. No seu discurso, ela discutiu como a luta contra o transfake não é apenas a obtenção do acesso ao trabalho e à representação, mas está, também, directamente, ligada à sobrevivência material das pessoas trans. No dia seguinte ao protesto, o papel de Lola foi reformulado com a actriz trans portuguesa Maria João Vaz, tanto no Teatro São Luiz como no Teatro Municipal do Porto. No último dia em cena da peça “Tudo sobre a minha mãe”, no palco do Teatro São Luiz, realizou-se uma concentração com activistas e a comunidade trans, em celebração e afirmação da nossa luta contínua. Foi lida uma lista de reivindicações fora do teatro, apelando à resistência contínua e à mudança sistémica.
Neste estudo de caso, a manutenção à força pode ser observada em múltiplas fontes que conduzem ao protesto no Teatro São Luiz, com início em Julho de 2022. Adjacente à instância anterior de casting transfake na peça “Eu sou a minha própria mulher”, durante a sua execução no contexto do Festival de Almada [1], uma série de artigos de opinião que espalham retórica transfóbica inundou a imprensa [2][3][4][5][6][7]. Pouco depois, foram colocados cartazes nas principais cidades de Portugal [8], incluindo Lisboa, denunciando vidas transgénero como sendo nada mais do que “ideologia” com apelos para “defender as crianças”. Isto foi acompanhado por uma manifestação pública [9] realizada pelo grupo de extrema-direita Alternativa Democrática Nacional, cuja plataforma primária é uma de ódio transfóbico.
Na sequência do protesto no Teatro São Luiz, discursos de ódio de vária ordem encheram as secções de comentários dos posts, nos perfis pessoais dos activistas nas redes sociais, dispersos pelos meios de comunicação social, em memes movidos pelo ódio, e nas secções de comentários de artigos relevantes dentro da imprensa. Na imprensa, a realidade de que as pessoas trans são frequentemente empurradas para o trabalho sexual de sobrevivência foi sensacionalizada [10]. A forma insensível e hiperbólica como o trabalho sexual de sobrevivência foi abordado trivializou uma experiência de opressão que muitas pessoas trans suportam, incluindo a Keyla Brasil. A imprensa foi dando, repetidamente, a discursos de ódio e de violência transfóbica, muitas vezes dentro da secção “opiniões”, nas quais constavam os “dead names” de pessoas trans que estavam envolvidas nesta história (não vou incluir uma referência para este artigo para a protecção da pessoa trans que foi agredida). A violência transfóbica foi decretada noutros artigos através do uso consistente de linguagem transfóbica e essencialista de género, confundindo a identidade trans com o arrastamento, e negando violentamente a experiência trans [11] [12]. Num outro exemplo foi sugerido remover o T do LGB, [13] uma marca da retórica transfóbica [3]. Num exemplo mais vergonhoso, foi publicado um discurso de ódio extremo e cheio de retórica transfóbica, que pode ser compreendido no âmbito do terrorismo estocástico [14]; demonstrando uma completa falta de integridade jornalística.
Nas notícias de televisão e nos programas de comentários políticos, a retórica transfóbica foi normalizada e priorizada por painéis de comentadores exclusivamente cis [15] [16]. Na rádio, os activistas trans envolvidos no protesto foram abertamente ridicularizados [17] fazendo-se uso, até, de clips das suas vozes retirados de Lives nas redes sociais e outras entrevistas [18]. Através dos meios de comunicação social na imprensa, rádio e televisão foi dada prioridade e domínio exclusivamente a comentadores cisgenderizados e perspectivas, sustentando um silenciamento sistémico das vozes trans. Isto contribui para a desumanização das pessoas trans, a exclusão das pessoas trans da vida pública, e a normalização do ódio, preconceito, ridicularização, violência, e injustiça sistémica.
A substituição do papel de Lola, em “Tudo sobre a minha mãe”, pela actriz trans Maria João Vaz, foi referenciada como um acto de “castração” pelo actor cis André Patrício que, originalmente, desempenhou o papel. [19]. Esta palavra e consequente retórica foi replicada em outras opiniões apresentadas na imprensa [20][21]. O uso da palavra “castração” expressa uma subtil transfobia que tem como base a retórica transfóbica que indica que as pessoas trans “mutilam” os nossos corpos [2].
Na sua forma mais extrema, o domínio pela força pode ser visto nas ameaças de morte enviadas directamente à activista Keyla Brasil [22], que a levaram a fugir da cidade de Lisboa por motivos de segurança, só mais tarde é que desapareceu durante 72 horas após continuadas ameaças, sendo encontrada com o envolvimento das autoridades e a organização da casa segura trans [23].
[1] “Eu Sou a Minha Própria Mulher.” Festival De Almada, Julho 13, 2022, https://festival.ctalmada.pt/eu-sou-a-minha-propria-mulher/
[2] Costa, Maria Helena. “Nenhuma Criança Devia Ser Mutilada Por Causa De Uma Ideologia.” Observador, Julho 16, 2022, https://observador.pt/opiniao/nenhuma-crianca-devia-ser-mutilada-por-causa-de-uma-ideologia/
[3] Sanches, Pedro Gomes. “ABC LGBTQIA+ ?” Expresso, Junho 27, 2022, https://expresso.pt/opiniao/2022-06-27-ABC-LGBTQIA—-c215480d
[4] Rainho, Vítor. “Um homem não consegue ser mãe, por muito que se queira.” JournalI, Maio 27, 2022, https://ionline.sapo.pt/artigo/772279/um-homem-nao-consegue-ser-mae-por-muito-que-se-queira?seccao=Opiniao_i
[5] Quintela, José Diogo. “Na Natureza Nada Se Cria, Nada Se Perde, Tudo Se Trans.” Observador, Julho 18, 2022, https://observador.pt/opiniao/na-natureza-nada-se-cria-nada-se-perde-tudo-se-trans/
[6] Raposo, Henrique. “O Radicalismo Transgénero É Uma Ameaça À Homossexualidade.” Expresso, Julho 19, 2022, https://expresso.pt/opiniao/2022-07-19-O-radicalismo-transgenero-e-uma-ameaca-a-homossexualidade-91d597d2
[7] Saraiva, José António. “Impingir o futebol feminino.” Jornal SOL, Julho 20, 2022, https://sol.sapo.pt/artigo/776761/impingir-o-futebol-feminino
[8] Marques, Rui Oliveira. “ILGA Denuncia Artigos De Opinião De ‘Cariz Transfóbico’ Na Sequência Da Campanha ABCLGBTQIA+.” Meios & Publicidade, Julho 21, 2022, https://www.meiosepublicidade.pt/2022/07/ilga-denuncia-artigos-de-opiniao-de-cariz-transfobico-na-sequencia-da-campanha-abclgbtqia/
[9] ENCONTRO DA FAMÍLIA, ADN. “ENCONTRO DA FAMÍLIA.” Facebook, Setembro 22, 2022, https://www.facebook.com/encontro.da.familia/
[10] Afonso, Carmo. “Já Ouviram Falar Na Keyla Brasil? É Atriz, Mas ‘Chupa Pau.’” PÚBLICO, Janeiro 23, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/23/culturaipsilon/opiniao/ja-ouviram-falar-keila-brasil-atriz-chupa-pau-2036006
[11] Teles, Eugénia Galvão. “Somos Todos Transfakes.” Expresso, Fevereiro 2, 2023, https://expresso.pt/opiniao/2023-02-03-Somos-todos-transfakes-05364289
[12] Câncio, Fernanda. “Tudo Sobre a Minha Confusão.” Diário de Notícias, Janeiro 24, 2023, https://www.dn.pt/opiniao/tudo-sobre-a-minha-confusao-15710826.html
[13] Leonardo, Ana Cristina. “E Falar a Sério, Pode-se?” PÚBLICO, Janeiro 27, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/27/culturaipsilon/cronica/falar-serio-podese-2036354
[14] Marques, Maria João. “Temos De Falar Da Violência Que Há No Transativismo.” PÚBLICO, Janeiro 25, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/25/opiniao/opiniao/falar-violencia-ha-transativismo-2036267
[15] Rodrigues, Jo Correia [@joochips]. “Juntam-se na televisão comentadores, reclamando da validade do protesto, invalidando pessoas trans, proferindo preconceitos e desinformação, afirmando quais são as reivindicações ou não do movimento.” Instagram, Janeiro 28, 2023, https://www.instagram.com/reel/Cn9cZvPvr-c/
[16] Da Silva, Francisco Mendes. Martins, José Eduardo. Oliveira, Daniel. Alves, Pedro Delgado. et al. “Tudo Sobre a Minha Mãe E Quase Tudo Sobre a Vida Política Em Portugal.” SIC Notícias, Janeiro 25, 2023, https://sicnoticias.pt/programas/sem-moderacao/2023-01-25-Tudo-sobre-a-minha-mae-e-quase-tudo-sobre-a-vida-politica-em-Portugal-3a8d8fa5
[17] Fernandes, José Manuel. Matos, Helena. et al. “Esta Parvoíce Do Transfake Só Cria Mais Transfobia.” Observador, Janeiro 24, 2023, https://observador.pt/programas/contra-corrente/esta-parvoice-do-transfake-so-cria-mais-transfobia/
[18] Marques, Joana. “FÃDETEATROFAKE!.” Rádio Renascença, Fevereiro 1, 2023, https://rr.sapo.pt/artigo/318383/fadeteatrofake
[19] Henriques, João Pedro. “Polémica No São Luiz. Ator Substituído Afirma-se ‘Violentado E Castrado.’” Diário de Notícias, Janeiro 21, 2023, https://www.dn.pt/cultura/polemica-no-sao-luiz-ator-substituido-afirma-se-violentado-e-castrado-15699828.html
[20] Mourão, Rui. ““Transfake”? Identidade E Alteridade Na Busca De Verdades Na Arte.” Artecapital, Fevereiro 20, 2023, https://artecapital.art/opiniao-242-rui-mourao–transfake-identidade-e-alteridade-na-busca-de-verdades-na-arte
[21] Abreu, Pedro. “A Direção Do São Luiz Devia Demitir-se.” PÚBLICO, Janeiro 28, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/28/opiniao/opiniao/direcao-sao-luiz-demitirse-2036794
[22] Oliveira, Sara. “Keyla Brasil: Atriz Transexual Está Desaparecida Desde Sexta-feira.” Journal de Norícias, Janeiro 29, 2023, https://www.jn.pt/pessoas/keyla-brasil-atriz-transexual-esta-desaparecida-desde-sexta-feira–15745185.html
[23] Duarte, Mariana. “Encontrada Keyla Brasil, Que Esteve Desaparecida Durante 72 Horas.” PÚBLICO, Janeiro 30, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/30/culturaipsilon/noticia/keyla-brasil-desaparecida-ha-quase-72-horas-psp-ja-adoptou-medidas-urgentes-2036889
A manutenção por “gaslighting cultural” pode ser vista nos quadros retóricos da imprensa, bem como nas posições tomadas pela Câmara Municipal de Lisboa. O exemplo mais comum na imprensa de “gaslighting cultural” foi aquele que encarou o protesto como um acto “violento”, [1][2] [3] [4] [5] [6] [7] [8] [9] [10] [11] apesar de ser um protesto dentro da tradição de desobediência civil não violenta, que não envolvia violência física ou destruição de propriedade. O enquadramento do protesto como violento foi reproduzido pelo director de “Tudo sobre a minha mãe”, Daniel Gorjão, [3] bem como pelo actor que desempenhou o papel de transfake, André Patrício [1]. Como expressão da “gaslighting cultural”, o enquadramento do protesto como “violento” é feito para desviar, obscurecer e normalizar a condição de violência sistémica que as pessoas sofreram historicamente, redireccionando a culpa do opressor para o oprimido enquanto tentava silenciar e deslegitimar o acto de protesto, mantendo a ordem hegemónica.
Outro exemplo de “gaslighting cultural” está no acto de inversão, num caso sugerindo que a luta contra a transfake causará “mais transfobia” [4]. A inversão também pode ocorrer na execução de um “pânico moral”, sugerindo que os oprimidos histórica, material e sistemicamente estão de alguma forma na posse de um “grande poder” e são uma ameaça para o tecido da sociedade. Isto tem sido feito por movimentos fascistas através da história que protagonizaram contra minorias religiosas, imigrantes, minorias sexuais, negros e não brancos racializados, e pessoas trans. O grupo de extrema-direita, Alternativa Democrática Nacional, utilizou a “gaslighting cultural” na campanha de cartazes que colocou em Portugal, incitando a um pânico moral sugerindo que devem “defender as crianças” das pessoas trans [12]. Se a Alternativa Democrática Nacional levasse a sério o abuso de crianças, o seu alvo principal seria a igreja católica, que foi recentemente denunciada, mas não acusada, por um número assombroso de casos de agressão sexual contra crianças. [13] A “gaslighting cultural” dos pânicos morais funciona eficazmente, deslocando o foco daqueles que de facto detêm o poder material e estrutural dentro da ordem hegemónica, ao mesmo tempo que vira a agressão e o medo para os membros vulneráveis da sociedade. Outra forma de pânico moral, como táctica de “gaslighting cultural”, pode ser utilizada é alegando que os historicamente oprimidos, enquanto protestam contra as condições da sua opressão, se envolvem na censura, num ataque à liberdade, e representam um risco para a democracia, invertendo as condições históricas e materiais reais em que vivem as pessoas marginalizadas. Este tipo de “gaslighting cultural”, enquadrando os impotentes como poderosos, é uma negação da história, das relações de poder e das condições materiais das pessoas trans, e pode ser visto com uma frequência alarmante através da imprensa [2] [6] [8] [11] [14] [15] [16] [17] [18] [19].
Como a dominação hegemónica também é alcançada através do consentimento dos oprimidos na sua reprodução dos valores normativos do grupo dominante ou da classe dominante, há utilidade em reflectir como as pessoas trans reproduzem narrativas semelhantes de “gaslighting cultural” em resposta ao protesto. A actriz trans portuguesa, Maria João Vaz, que, como consequência do protesto, foi chamada para desempenhar o papel de Lola tanto no Teatro São Luiz como no Teatro Municipal do Porto, passou a internalizar-se e a alinhar-se com a lógica da ordem hegemónica, afirmando que o protesto foi “violento” [20][21]. Isto também foi feito em conjunto com uma retórica xenófoba [22]. As pessoas trans não são um monólito, e encarnam uma variedade de perspectivas políticas. Algumas pessoas trans alinham-se com as estruturas de poder do cissexisimo para terem acesso a um poder percebido, muitas vezes em oposição directa aos movimentos políticos trans que procuram desmantelar essas estruturas de poder como meio de realizar a sua libertação. As pessoas trans, no seu alinhamento com o cissexisimo, trabalham contra si próprias e contra a comunidade trans para serem validadas ou protegidas por uma sociedade cissexista. Isto também pode ser feito para obter um acesso percebido, através do alinhamento, às estruturas de poder que as pessoas cissexistas detêm dentro da ordem hegemónica. Outro exemplo de como o “consentimento” oprimido à hegemonia também pode ser visto dentro de movimentos políticos trans, tais como o transmedicalismo, que por vezes trabalham em alinhamento com as “feministas reacionárias trans-excludente” (TERF) de exclusão trans. Foi o que aconteceu na recente exposição “Novas Novas Cartas Portuguesas” [23] comissariado por um homem cis, e director das Galerias Municipais de Lisboa, Tobi Maier, na Galeria Quadrum. O alinhamento com o cissexisim como forma de poder pode ser visto na participação conjunta da artista Aleta Valente, conhecida pela sua política essencialista de género e de exclusão trans [24], e da artista trans Aura da Fonseca (Aura) cujo trabalho dentro da exposição se enquadra num quadro transmedicalista – uma redução essencialista de um discurso sobre as mulheres trans a uma imagem de uma vulva trans. O enquadramento curatorial que coloca uma TERF e uma mulher trans na mesma exposição cria uma falsa equivalência entre os dois artistas; como essencialismo de género, quando articulado de uma perspectiva cis, é um quadro retórico que tem as suas raízes numa história de fascismo e colonialismo, e é uma fonte de violência sistémica contra as pessoas trans. Ao envolver-se na linguagem visual do essencialismo de género num contexto curatorial juntamente com uma artista cis conhecida por esta retórica, Aura, numa tentativa de obter acesso ao poder do cissexisim, reproduziu a lógica dos TERFs, reduzindo o género aos genitais no contexto do seu trabalho. As posições transmedicalistas procuram validação e acesso ao poder do cissexisim, apesar de este ser um local da sua própria opressão. Enquanto o trabalho académico sobre o alinhamento das pessoas trans com o cissexismo, como meio de procura e identificação com um local de poder ainda é inexistente, foram explorados discursos semelhantes sobre a branquidade como meio de poder na obra de George Lipsitz, e o seu enquadramento do “the Possessive Investment in Whiteness” [25], e Cida Bento na sua obra “O Pacto da Branquitude” [26].
Talvez o exemplo mais descarado e violento de “gaslighting cultural”, o Município de Lisboa (CML), que é composto por uma câmara de 17 membros, todos eles funcionários públicos cis, aprovou um “voto de solidariedade” com “todos os profissionais do teatro” no qual refuta “em absoluto a acusação de que a peça ‘Tudo Sobre a Minha Mãe’, com o seu elenco inicial, constitui qualquer gesto discriminatório, bem como lamenta o ato intempestivo de interrupção da representação, ocorrida no passado dia 19 de janeiro, no Teatro São Luiz”. [27] [28] [29] Neste acto, CML não reconhece os profissionais do teatro trans, as suas vidas e o seu direito de acesso ao emprego ou à capacidade de trabalhar sem discriminação. Numa expressão violenta de “gaslighting cultural”, a Câmara Municipal de Lisboa empregou a táctica da inversão, proclamando “A acusação de transfobia ou discriminação é injusta”. As pessoas Cis que decidem o que é e o que não é transfobia, uma violência que nunca experimentarão e da qual beneficiarão estruturalmente, é a manutenção da ordem hegemónica e do cissexismo na sua forma mais pura. De acordo com o quadro da “gaslighting cultural”, a CML reconheceu o direito de protestar, afirmando que a liberdade de protestar “não pode pôr em causa a liberdade de criação artística, a liberdade de escolha e de acesso à profissão, o direito ao trabalho e o direito à fruição cultural”, negando ao mesmo tempo estas liberdades de transgredir pessoas. O “voto de solidariedade” da CML foi um gesto assustadoramente antidemocrático e discriminatório no seu próprio cerne. Este não é um acto isolado, e a cultura e direcção transfóbica do CML pode ser vista recentemente na recusa de Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, em levantar a bandeira do orgulho trans na Câmara Municipal no Dia Internacional da Visibilidade Trans [30].
Numa das poucas declarações de solidariedade com as pessoas trans no âmbito desta reunião da CML, Beatriz Gomes Dias (BE) reconheceu o direito das pessoas trans a protestar, implicando a inconstitucionalidade desta decisão:
“queria começar neste na análise deste voto solidariedade por manifestar a minha solidariedade com as ativistas trans e com a ação de protesto que desencadearam no teatro São Luiz ou onde colocava a necessidade imperiosa de nós refletirmos enquanto sociedade, enquanto coletivo, sobre os limites que são colocados à participação das pessoas trans neste caso numa peça teatro mas também há participação ao direito ao trabalho e a forma de exclusão é que estas pessoas são sujeitas e por isso esta ação de protesto e que devemos saudar a liberdade de protesto do direito ao protesto é um direito constitucional… a câmara tem a responsabilidade e o fazer e têm responsabilidade de garantir que é assim acontece nós precisamos que todas as pessoas tenham direito a existir que tenham direito a poder participar da vida pública” [27]
[1] Henriques, João Pedro. “Polémica No São Luiz. Ator Substituído Afirma-se ″Violentado E Castrado″.” Diário de Noticias, Janeiro 21, 2023, https://www.dn.pt/cultura/polemica-no-sao-luiz-ator-substituido-afirma-se-violentado-e-castrado-15699828.html
[2] Marques, Maria João. “Temos De Falar Da Violência Que Há No Transativismo.” PÚBLICO, Janeiro 25, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/25/opiniao/opiniao/falar-violencia-ha-transativismo-2036267
[3] Nogueira, Rodrigo. Frota, Gonçalo. “Protesto Trans Interrompe Peça No São Luiz E Faz Mudar O Elenco.” PÚBLICO, Janeiro 20, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/20/culturaipsilon/noticia/protesto-trans-interrompe-peca-sao-luiz-faz-mudar-elenco-2035809
[4] Fernandes, José Manuel. Matos, Helena. “Esta Parvoíce Do Transfake Só Cria Mais Transfobia.” Observador, Janeiro 24, 2023, https://observador.pt/programas/contra-corrente/esta-parvoice-do-transfake-so-cria-mais-transfobia/
[5] Afonso, Carmo. “Já Ouviram Falar Na Keyla Brasil? É Atriz, Mas ‘Chupa Pau.’” PÚBLICO, Janeiro 23, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/23/culturaipsilon/opiniao/ja-ouviram-falar-keila-brasil-atriz-chupa-pau-2036006
[6] Pinto, Sérgio Sousa. “E Depois?” Expresso, Janeiro 27, 2023, https://expresso.pt/opiniao/2023-01-27-E-depois–4581a745
[7] Abreu, Pedro. “A Direção Do São Luiz Devia Demitir-se.” PÚBLICO, Janeiro 28, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/28/opiniao/opiniao/direcao-sao-luiz-demitirse-2036794
[8] Vieira, José Maria Mendes. “Teatro E Representação.” PÚBLICO, Janeiro 26, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/26/culturaipsilon/opiniao/teatro-representacao-2036380
[9] Vasconcellos, Eugénia de. “Fake, O Paradoxo Da Chaladice.” Observador, Abril 11, 2022, https://observador.pt/opiniao/fake-o-paradoxo-da-chaladice/
[10] Câncio, Fernanda. “Tudo Sobre a Minha Confusão.” Diário de Notícias, Janeiro 24, 2023, https://www.dn.pt/opiniao/tudo-sobre-a-minha-confusao-15710826.html
[11] Mourão, Rui. ““Transfake”? Identidade E Alteridade Na Busca De Verdades Na Arte.” Artecapital, Fevereiro 20, 2023, https://artecapital.art/opiniao-242-rui-mourao–transfake-identidade-e-alteridade-na-busca-de-verdades-na-arte
12] Marques, Rui Oliveira. “ILGA Denuncia Artigos De Opinião De ‘Cariz Transfóbico’ Na Sequência Da Campanha ABCLGBTQIA+.” Meios & Publicidade, Julho 21, 2022, https://www.meiosepublicidade.pt/2022/07/ilga-denuncia-artigos-de-opiniao-de-cariz-transfobico-na-sequencia-da-campanha-abclgbtqia/
[13] Soares, Mariana Ribeiro. Neves, Carlos Santos. “Comissão Independente Divulga Relatório Sobre Abusos Sexuais Na Igreja.” Fevereiro 13, 2023, https://www.rtp.pt/noticias/pais/comissao-independente-divulga-relatorio-sobre-abusos-sexuais-na-igreja_e1466746
[14] Leonardo, Ana Cristina. “E Falar a Sério, Pode-se?” PÚBLICO, Janeiro 27, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/27/culturaipsilon/cronica/falar-serio-podese-2036354
[15] Silva, Francisco Mendes da. “A Guerra Contra a Empatia É Uma Guerra Contra a Democracia.” PÚBLICO, Janeiro 27, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/27/opiniao/opiniao/guerra-empatia-guerra-democracia-2036606
[16] Perestrello, João. “A Cultura Woke Mata a Cultura.” Observador, Janeiro 24, 2023, https://observador.pt/opiniao/a-cultura-woke-mata-a-cultura/
[17] Portocarrero de Almada, P. Gonçalo. “Lola E O Racismo De Género.” Observador, Janeiro 28, 2023, https://observador.pt/opiniao/lola-e-o-racismo-de-genero/
[18] Raposo, Henrique. “Protesto Transfake. Fronteiras Novas De Liberdade E De Censura.” Rádio Renascença, Janeiro 23, 2023, https://rr.sapo.pt/artigo/henrique-raposo-nas-tres-da-manha/2023/01/23/protesto-transfake-fronteiras-novas-de-liberdade-e-de-censura/317092/
[19] Maio, João L. “A Representação E a Representatividade.” Aventar, Janeiro 23, 2023, https://aventar.eu/2023/01/23/a-representacao-e-a-representatividade/#more-1334285
[20] Mendonça, Bernardo. Fernandes, José. “Como Uma Invasão De Palco Contra O ‘Transfake” Pode Vir a Ser O Início De Uma Revolução E Lança Um Importante Debate Sobre Inclusão.” Expresso, Janeiro 22, 2023, https://expresso.pt/sociedade/2023-01-22-Como-uma-invasao-de-palco-contra-o-transfake-pode-vir-a-ser-o-inicio-de-uma-revolucao-e-lanca-um-importante-debate-sobre-inclusao-9d4a0c6e
[21] Farinha, Ricardo. “Falámos Com Maria João Vaz, a Atriz Trans Que Ficou Com O Papel Na Peça Do São Luiz.” NiT, Janeiro 23, 2023 https://www.nit.pt/cultura/teatro-e-exposicoes/falamos-com-maria-joao-vaz-a-atriz-trans-que-ficou-com-o-papel-na-peca-do-sao-luiz
[22] Vidal, Daniel. “Maria João Vaz, a Nova Atriz Trans Do São Luiz: ‘Recebi Ameaças Violentas.’” NiT, Janeiro 30, 2023, https://www.nit.pt/cultura/teatro-e-exposicoes/maria-joao-vaz-a-nova-atriz-trans-do-sao-luiz-recebi-ameacas-violentas
[23] “Novas Novas Cartas Portuguesas : Galerias Municipais De Lisboa.” Galerias Municipais De Lisboa, https://galeriasmunicipais.pt/exposicoes/novas-novas-cartas-portuguesas/
[24] Valente, Aleta. [@ex_miss_febem_]. “A ódio a mulher está em todos os cantos, a misoginia é a mesma na direita e na esquerda, só mudam os métodos de perseguição e silenciamento. A classe artística é o suco da hipocrisia. Ontem tive que apagar os stories porque estão denunciando como comentário de ódio ! Estamos proibidas de falar coisas óbvias, a origem da nossa opressão é o SEXO ! Mulheres estão sendo ameaçadas em diversos espaços pro não compactuar com uma ideologia que nos desumaniza. Não somos pessoas com úteros, somos MULHERES e não vão nos destruir enquanto classe política e social.” Instagram, Junho 27, 2022, https://www.instagram.com/p/CfT4_PbtOzI/
[25] Lipsitz, George. The Possessive Investment in Whiteness: How White People Profit from Identity Politics. Temple University Press, 1998.
[26] Bento, Cida. O Pacto Dda Branquitude. Companhia das Letras, 2022
[27] “72a Reunião Pública Da Câmara Municipal De Lisboa – 25/01/2023.” YouTube, Janeiro 25, 2023, https://www.youtube.com/live/txnSWMtqTvo?feature=share&t=7285
[28] Duarte, Mariana. “Câmara De Lisboa Rejeita Que Houve Transfobia Em Tudo Sobre a Minha Mãe.” PÚBLICO, Janeiro 26, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/26/culturaipsilon/noticia/camara-lisboa-rejeita-transfobia-mae-2036484
[29] Lusa. et al.“CML Refuta Críticas À Peça Do Teatro São Luiz: ‘A Acusação De Transfobia Ou Discriminação É Injusta.’” Expresso, Janeiro 25, 2023, https://expresso.pt/sociedade/2023-01-25-CML-refuta-criticas-a-peca-do-Teatro-Sao-Luiz-A-acusacao-de-transfobia-ou-discriminacao-e-injusta-ce277b01
[30] esQrever. et al. “Carlos Moedas Recusa Hastear Bandeira Trans Na Câmara Municipal De Lisboa” esQrever, Março 30 2023, https://esqrever.com/2023/03/30/carlos-moedas-recusa-hastear-bandeira-trans-na-camara-municipal-de-lisboa/?utm_campaign=later-linkinbio-esqrever&utm_content=later-34086468&utm_medium=social&utm_source=linkin.bio
A manutenção da hegemonia através do mito da “neutralidade” pode ser vista na imprensa, incluindo um artigo do director do Publico [1]. A manutenção pelo mito da “neutralidade” também pode ser vista a ser empregada imediatamente após a acção ter ocorrido no Teatro São Luiz em palco, no discurso proferido pela actriz Maria João Luís, poucos segundos depois dos activistas terem deixado o auditório. disse ela: “meus queridos, nós entendemos esta causa, fizemos esta espectáculo também para esta causa, porque esta espectáculo foi criada para isto. Tem muita pena que esta espectáculo não poso até chegar ao fim. Espero que o público tenha entendido todo o que se passou aqui. E que respeitem também pela nossa posição no teatro. O teatro é livre”, após o que o elenco deu as mãos por um arco, excluindo Gaya de Medeiros, a actriz trans travesti brasileira que desempenhou o outro papel trans, a personagem Agrado. Ela desafiou-se com o seu punho levantado enquanto o resto do elenco se curvava para um público aplaudido. Enquanto os aplausos se acalmaram, ela falou: “Espero que voces intendo, sinceramente e com generosidade do coração, que a liberdade de uma não é a liberdade de todas”, parafraseando uma citação da histórica activista trans americana Marsha P. Johnson do movimento dos Direitos Gays dos anos 60; “Nenhum orgulho para alguns de nós sem libertação para todos nós”.
Neste momento Maria João Luís tentou negar o protesto que acabava de ocorrer, centrando e priorizando as intenções dela e do director Daniel Gorjão de apoiar a comunidade trans, sem ouvir activamente a comunidade trans; um acto feito a partir do narcisismo do privilégio. Ela deu prioridade à sua experiência como trabalhadora artística, não sendo solidária com outros trabalhadores artísticos que são trans e não têm o mesmo acesso ao emprego. Depois, apesar de ter testemunhado um acto de protesto que falou directamente à desigualdade do sector cultural, invocou o mito da neutralidade, e a suposta “liberdade” do teatro.
Na sua expressão mais comum, o mito da “neutralidade” foi reproduzido na imprensa com uma narrativa que sugere que um actor é, e deve ser sempre, livre de desempenhar qualquer papel; independentemente de, ou completamente ignorante e alienado: uma análise das relações de poder, de como a opressão e o dano podem ser reproduzidos, e das condições sociais, políticas e históricas da sociedade em que vivem em relação ao contexto que encarnam [1] [2] [3] [4] [5] [6] [7] [8] [9] [10] [11] [12]. Actuações culturais discriminatórias e preconceituosas, tais como o Balckface, são tristemente ainda comuns no panorama cultural português contemporâneo [13]. A transfake, tal como a cara negra, é uma forma de injustiça epistémica, que tem uma longa história de emprego, excluindo os trabalhadores culturais trans do emprego e muitas vezes reproduzindo e mantendo estereótipos preconceituosos. Injustiça epistémica é um termo de cúpula utilizado para descrever qualquer forma de injustiça relacionada com o conhecimento. É uma forma de discriminação em que a capacidade das pessoas de conhecer algo ou de descrever a sua experiência é silenciada e excluída, levando a uma maior marginalização e deturpação. O conceito de injustiça epistémica pode encontrar as suas raízes no trabalho de feministas negras como Sojourner Truth e Anna Julia Haywood Cooper, bem como no trabalho de teóricas pós-coloniais como Gayatri Chakravorty Spivak. O conceito ganhou reconhecimento mais recentemente através do trabalho dos filósofos Miranda Fricker e Kim Q. Hall. Fora dos espaços de auto-autoria Transfake performances muitas vezes codificam pessoas trans como criminosas, perigosas, enganadoras, farsantes, hiper sexuais, doentes, no “corpo errado”, e com necessidade de intervenção médica ou divina. As representações transferidas nos meios de comunicação social são frequentemente realizadas através de representações estéticas que são desprovidas de nuance e sensacionalizadas para satisfazer as expectativas dos corpos trans formados pelo olhar cis. As representações transferidas são também frequentemente centradas na brancura, colorista e capaz de enganar as pessoas trans, falhando a complexidade interseccional das comunidades trans.
No cinema, Transfake pode ser visto nos espectáculos de Ed Wood e Tommy Haynes em Glen or Glenda (1953), Anthony Perkins em Psycho (1960), John LaZar em Beyond the Valley of the Dolls (1970), John Hansen em The Christine Jorgensen Story (1970) baseado na autobiografia de uma transexual, que tentou, sem sucesso, parar a produção do filme, Raquel Welch em Myra Breckinridge (1970), Anne Heywood em I Want What I Want (1972), Chris Sarandon em Dog Day Afternoon (1975), Susan Lowe em Desperate Living (1977), Volker Spengler em In a Year of 13 Moons (1978), Michael Caine em Dressed to Kill (1980), Karen Black em Come Back to the 5 & Dime Jimmy Dean (1982), John Lithgow em The World According to Garp (1982), Felissa Rose em Sleepaway Camp (1983), William Hurt em Kiss of the Spider Woman (1985), Vanessa Redgrave em Second Serve (1986), Ted Levine em Silence of the Lambs (1991), Cathy Moriarty em Soapdish (1991), Jaye Davidson em The Crying Game (1992), Sean Young em Ace Ventura: Pet Detective (1994), Anna Nicole Smith em Naked Gun 33 1/3: The Final Insult (1994), Terence Stamp em The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert (1994), Steven Mackintosh em Different for Girls (1996), Stephen Dorff em I Shot Andy Warhol (1996), Pam Grier em Escape from Los Angeles (1996), Georges Du Fresne em Ma vie en rose (1997), Hillary Swank em Boys Don’t Cry (1999), Antonia San Juan e Toni Cantó em All About My Mother (1999), Johnny Depp em Before Night Falls (2000), John Cameron Mitchell em Hedwig and the Angry Inch (2001), Rodrigo Santoro em Carandiru (2003), Harry Shearer em A Mighty Wind (2003), Tom Wilkinson em Normal (2003), Felicity Huffman em Transamerica (2005), Cillian Murphy em Breakfast on Pluto (2005), Sofia Vergara em Grilled (2006), Lauren Mollica em Itty Bitty Titty Committee (2007), Fernando Santos em Morrer como um Homem (2009), Elena Anaya em The Skin I Live In (2011), Glenn Close em Albert Nobbs (2011), Janet McTeer em Albert Nobbs (2011), Jared Leto em Dallas Buyers Club (2013), Elle Fanning em 3 Generations (2015), Eddie Redmayne em The Danish Girl (2015), Benedict Cumberbatch em Zoolander 2 (2016), Michelle Rodriguez em The Assignment (2016), Matt Bomer em Anything (2017), Victor Polster em Girl (2018) que ganhou o prémio de Melhor Actor pela sua actuação transfake como Lara no Festival Queer Lisboa(2018), Noémie Merlant em A Good Man (2020), e Sofía Otero em 20,000 Species of Bees (2023) só para citar alguns.
Imagine que esta lista incluía também espectáculos de transfake no teatro e na televisão. Imagine que essa lista nos tivesse dado uma história de artistas trans, e não de pessoas cis que desempenhem papéis trans. Que impacto teria isso tido na sociedade e na vida e bem-estar das pessoas transexuais? Melhor ainda, imagine se esses papéis fossem escritos por, ou em conjunto com, pessoas trans em contextos de inclusão e equidade.
Em resposta ao protesto no Teatro São Luiz, quando autores dentro da imprensa insistiram repetidamente que um actor deve ser sempre livre de desempenhar qualquer papel, há frequentemente uma falsa equivalência feita em relação ao poder entre actores marginalizados e actores que beneficiam de hegemonia estrutural [1] [6] [7] [8] [14] [15]. Por vezes é tão extremo como negar exteriormente o desequilíbrio de poder entre pessoas trans e pessoas cis, como foi feito pelo director do Publico quando escreveu “Exigir para os trans todos os papéis trans legitima, ou pode legitimar, que todos os papéis de brancos cis sejam para brancos cis” [1]. Isto baseia-se no mito da “neutralidade” na suposição de que todos os actores são de alguma forma figuras “neutras”, obscurecendo as condições materiais das experiências marginalizadas, as condições históricas que criaram iniquidade, e as dinâmicas discordantes do poder. Esta falsa equivalência é por vezes acompanhada por uma narrativa sobre uma suposta meritocracia, sugerindo que os artistas obtêm papéis apenas com base na sua habilidade, empregando o mito da “neutralidade” para obscurecer a exclusão sistémica e a opressão estrutural [1] [6] [9] [12] [14] [16]. Em alguns artigos os autores chegam ao ponto de tentar utilizar o mito da “neutralidade” para tentar legitimar a cara negra [4] [6] [7]. Noutros reconhecem a opressão do Blackface, mas recusam-se a fazer o mesmo com a transfake; não os compreendem ambos no quadro da injustiça epistémica [7] [12].
O director do Publico, num editorial intitulado “A luta contra o transfake é política, não é arte”. [1], repetiu um discurso visto noutras instâncias dentro da imprensa [2] [3] [5] [7] [8] [9] [10] [11] [14], entendendo o teatro como uma representação da vida e não como um sítio em que o político e uma política de representação também existem. Isto emprega o mito da “neutralidade”, negando a realidade de que a arte, a produção artística, os imaginários artísticos, e os trabalhadores da arte existem dentro dos contextos históricos e das relações políticas. O director do Publico sabe disto, dizendo anteriormente no editorial “O teatro é sempre político, mesmo quando o pretende não ser, certo.”, mas continua a afirmar que quando a arte é reconhecida dentro de um contexto político ela “limita a sua liberdade criativa” e “serve para esvaziar a arte”, invocando a histeria da ala direita de “cultura do cancelamento”. O mito da “neutralidade” funciona para manter a negação da história e a desigualdade de acesso ao poder entre pessoas trans e pessoas cis como meio de manter a ordem hegemónica; um mito em que é negado às pessoas trans o acesso ao emprego e aos papéis na vida pública, mesmo na narração de histórias trans, dando prioridade ao domínio e narcisismo do cissexismo.
Mais subtilmente, o mito da neutralidade foi também utilizado pela equipa editorial do Expresso na forma como escolheram enquadrar e destacar artigos relacionados com o protesto, em particular um de autoria do Ministro da Cultura [17]. No artigo de Pedro Adão e Silva, o Ministro da Cultura, as citações que foram destacadas foram:
“O princípio de que cada um só pode representar em palco aquilo que é na vida real redundaria num evidente absurdo”
“Vi a invasão do palco como uma performance, um gesto de rutura destinado a chocar”
“Não temos razão para temer as controvérsias, garantindo que todos os artistas continuam a poder fazer o seu trabalho, com liberdade absoluta” [17]
Removidas estrategicamente do seu contexto, estas citações dão a impressão de que o Ministro da Cultura estava em sintonia política com a denúncia do protesto encontrado nos argumentos dos comentadores na imprensa e com o voto da CML. Estas citações fora do contexto sugerem que o mito da neutralidade no seu imaginário do artista é um sujeito neutro, livre de interpretar qualquer papel sem qualquer prejuízo, uma vez que a criação artística é supostamente alienada da história e das relações de poder. Também sugere que a “liberdade” desta “neutralidade” deve ser preservada, e enquadra o protesto como um “choque”, invocando as acusações de “violência”.
No entanto, no seu contexto completo, é perfeitamente claro que o Ministro da Cultura estava consciente do significado deste protesto e apoia o diálogo que ele provocou:
“Levado à letra, o princípio de que cada um só pode repre- sentar em palco aquilo que é na vida real redundaria num evidente absurdo. Discordo dessa ideia, se colocada nesses termos, porque a arte implica sempre a possibilidade de cada um se imaginar naquilo que não é. E, muitas vezes, a arte é até expressão da descoincidência de cada um consigo mesmo. No entanto, o problema suscitado pelo protesto da semana passada não se põe em abstrato, mas em circunstâncias particulares, em que um grupo social tem sido historicamente marginalizado. Em Portugal, é talvez a primeira vez que uma manifestação feita por pessoas trans adquire uma repercussão tão ampla no espaço público. Querem contar as suas histórias, querem poder expressar-se na primeira pessoa, o que é natural e desejável: a arte pode ser uma das formas (certamente não a única) da sua expressão pública. Acrescentam que o facto de as pessoas trans terem sido quase sempre representadas por outros tem acarretado simplificações e caricaturas — argumento que me parece perfeitamente plausível. Para que possamos conhecer melhor a experiência de grupos marginalizados, é indispensável que as pessoas que fazem parte de tais grupos nos falem de si.” [17]
“Vi a invasão do palco no São Luiz na semana passada como uma performance, um gesto de rutura destinado a chocar, de modo a chamar a atenção para um problema que está ainda pouco presente na consciên- cia pública. Gestos similares a este houve muitos ao longo da história, e é até plausível admitir que criar desconforto seja uma das funções essenciais da arte. Acredito, por isso, que não temos nenhuma razão para temer os debates e as controvérsias que casos como este suscitam no espaço público, garantindo que todos os artistas continuam a poder fazer o seu trabalho, com liberdade absoluta e sem nenhuma forma de censura.” [17]
[1] Carvalho, Manuel. “A Luta Contra O Transfake É Política, Não É Arte.” PÚBLICO, Janeiro 23, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/23/culturaipsilon/editorial/luta-transfake-politica-nao-arte-2036144
[2] Vieira Mendes, José Maria. “Teatro E Representação.” PÚBLICO, Janeiro 26, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/26/culturaipsilon/opiniao/teatro-representacao-2036380
[3] Silva, Francisco Mendes da. “A Guerra Contra a Empatia É Uma Guerra Contra a Democracia.” PÚBLICO, Janeiro 27, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/27/opiniao/opiniao/guerra-empatia-guerra-democracia-2036606
[4] Leonardo, Ana Cristina.“E Falar a Sério, Pode-se?” PÚBLICO, Janeiro 27, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/27/culturaipsilon/cronica/falar-serio-podese-2036354
[5] Perestrello, João. “A Cultura Woke Mata a Cultura.” Observador, Janeiro 24, 2023, https://observador.pt/opiniao/a-cultura-woke-mata-a-cultura/
[6] Portocarrero de Almada, P. Gonçalo. “Lola E O Racismo De Género.” Observador, Janeiro 28, 2023, https://observador.pt/opiniao/lola-e-o-racismo-de-genero/
[7] Câncio, Fernanda. “Tudo Sobre a Minha Confusão.” Diário de Notícias, Janeiro 24, 2023, https://www.dn.pt/opiniao/tudo-sobre-a-minha-confusao-15710826.html
[8] Cabral, Afonso Reis. “Muito Virtuosa Mas Muito Fake.” Journal de Norícias, Janeiro 25, 2023, https://www.jn.pt/opiniao/afonso-reis-cabral/muito-virtuosa-mas-muito-fake-15716313.html
[9] Rainho, Vítor. “O Diretor Do São Luiz Não Sabe O Que É Representar.” Ionline, https://ionline.sapo.pt/artigo/790771/o-diretor-do-sao-luiz-nao-sabe-o-que-e-representar?seccao=Opiniao_i
[10] Raposo, Henrique. “Protesto Transfake. Fronteiras Novas De Liberdade E De Censura.” Rádio Renascença, Janeiro 23, 2023, https://rr.sapo.pt/artigo/henrique-raposo-nas-tres-da-manha/2023/01/23/protesto-transfake-fronteiras-novas-de-liberdade-e-de-censura/317092/
[11] Maio, João L. “A Representação E a Representatividade.” Aventar, Janeiro 23, 2023, https://aventar.eu/2023/01/23/a-representacao-e-a-representatividade/#more-1334285
[12] Mourão, Rui. ““Transfake”? Identidade E Alteridade Na Busca De Verdades Na Arte.” Artecapital, February 20, 2023, https://artecapital.art/opiniao-242-rui-mourao–transfake-identidade-e-alteridade-na-busca-de-verdades-na-arte
[13] Blackface Portugal. [@blackfaceportugal]. “Montra de instâncias de blackface e outras manifestações racistas na cultura popular portuguesa, apresentadas sem comentário.” Instagram, https://instagram.com/blackfaceportugal?igshid=YmMyMTA2M2Y=
[14] Abreu, Pedro. “A Direção Do São Luiz Devia Demitir-se.” PÚBLICO, Janeiro 28, 2023, https://www.publico.pt/2023/01/28/opiniao/opiniao/direcao-sao-luiz-demitirse-2036794
[15] Vasconcellos, Eugénia de. “Fake, O Paradoxo Da Chaladice.” Observador, Janeiro 27, 2023, https://observador.pt/opiniao/fake-o-paradoxo-da-chaladice/
[16] Pinto, Sérgio Sousa. “E Depois?” Expresso, Janeiro 27, 2023, https://expresso.pt/opiniao/2023-01-27-E-depois–4581a745
[17] Adão e Silva, Pedro. “No Lugar Do Outro.” Jornal Expresso, Janeiro 27, 2023, https://expresso.pt/opiniao/2023-01-27-No-lugar-do-outro-e81d8ab3
Estudo de caso 2: Bienal de Veneza
A 11 de Novembro de 2021, a candidatura da artista portuguesa internacionalmente reconhecida, Grada Kilomba, a representar Portugal na 59ª Bienal de Veneza, a mais prestigiada bienal do mundo, foi efectivamente rejeitada por um único membro do júri, Nuno Crespo, crítico de arte do jornal Público e reitor da Escola de Artes da Universidade Católica Portuguesa, Porto. A exposição proposta “A Ferida/The Wound”, com curadoria de Bruno Leitão, explora o racismo e o legado colonial de Portugal, ao mesmo tempo que envolve a crise climática, os direitos humanos, e a “militarização” das relações humanas. O painel de selecção da representação do Pavilhão de Portugal na Bienal de Veneza, que actuava em nome da DGArtes, foi composto por um júri todo branco, incluindo Ana Cristina Cachola, Giulia Lamoni, Nuno Crespo, e Sofia Isidoro. Ao contrário dos outros jurados, que deram a Grada Kilomba pontuações quase perfeitas, Crespo pontuou a candidatura de Kilomba dramaticamente baixa, assegurando uma pontuação média negativa para garantir a sua exclusão. Não só a sua pontuação foi inconsistente com a dos outros jurados, como expôs efectivamente como um jurado poderia sobrepor-se aos outros três, num flagrante abuso do sistema de avaliação e num processo democrático. A declaração escrita de Nuno Crespo apenas apoiou a natureza premeditada das suas acções, revelando as suas convicções racistas e misóginas. Durante a primeira vez na história portuguesa, duas mulheres negras portuguesas foram candidatas a representar Portugal em Veneza, mas o resultado no final foi ainda um representante branco. Isto levou a um protesto público denunciando o abuso do sistema de avaliação, as violações legais cometidas pelo júri, e os mecanismos de racismo estrutural e institucional em jogo no processo. Um movimento público em oposição a estas acções foi liderado por uma Carta Aberta escrita pelo curador da proposta de Grada Kilomba, Bruno Leitão, e enviada para o Ministério da Cultura. Foi assinada por 114 pessoas, incluindo instituições artísticas internacionais, associações políticas, académicos, trabalhadores da arte e activistas, na qual também participei como um dos signatários. Apesar do reconhecimento legal dos abusos do sistema de avaliação cometidos por Nuno Crespo, o Ministério da Cultura manteve a nomeação de Pedro Neves Marques como representante de Portugal na 59ª Bienal de Veneza. Através de todo o protesto e debate na esfera pública, o artista seleccionado como consequência do acto racista que garantiu a exclusão de Grada Kilomba, Pedro Neves Marques, bem como os seus curadores João Mourão e Luís Silva, director de Kunsthalle Lissabon, permaneceram em completo silêncio e aceitaram a nomeação. Apesar do trabalho de Pedro Neves Marques explorar frequentemente uma crítica à colonialidade, demonstraram falta de solidariedade significativa através da acção e foram totalmente cúmplices neste abuso do racismo estrutural em proveito pessoal.
Neste estudo de caso a manutenção à força pode ser observada principalmente no discurso do ódio nas secções de comentários na imprensa e em posts sobre meios de comunicação social contribuindo para um clima acentuado de agressão racista. Em todos os meios de comunicação e imprensa foi dada preferência exclusiva aos comentadores brancos, dominando uma discussão sobre o racismo e continuando a exclusão sistémica das pessoas negras e não brancas racializadas da possibilidade de falar e enquadrar a sua experiência. Esta questão foi abordada por Mamadou Ba, chefe do SOS Racismo, e pela teórica cultural Ana Teixeira Pinto na imprensa [1]. Outras injustiças de agressão racista que tinham ocorrido recentemente no sector cultural, incluindo a censura de uma discussão sobre racismo na Feira Graphica (2020), foram directamente apontadas na Carta Aberta [2]. Ao longo do ano de 2021 ocorreram vários casos de violência policial contra negros racializados, envolvendo agressões físicas e abusos policiais impedindo a documentação da violência [3] [4], e uma rusga ilegal ao bairro predominantemente negro da Jamaica em Sexial, que levou a uma série de demolições ilegais [5]. Na sequência dos comentários críticos de Mamadou Ba relativamente ao voto parlamentar de condolências pela morte do criminoso de guerra Marcelino da Mata, foi lançada uma petição pública violenta e racista com quase 15.000 assinaturas (actualmente com 32.131) apelando à sua deportação de Portugal [6]. Durante este período, a pandemia de Covid 19 teve um impacto acrescido nas comunidades marginalizadas, incluindo as que sofrem discriminação médica e negligência estrutural devido ao racismo sistémico [7]. Pouco depois dos protestos contra os abusos racistas que levaram à exclusão de Grada Kilomba de representar Portugal na 59ª Bienal de Veneza, o líder do SOS Racismo, Mamadou Ba, foi acusado de difamação por 11 membros do partido político de extrema-direita Chega [8], reflectindo uma acusação feita pelo neonazi Mário Machado em 2020.
[1] Pinto, Ana Teixeira. Ba, Mamadou.“A Linha Maginot Da Branquitude.” PÚBLICO, Janeiro 7, 2022, https://www.publico.pt/2022/01/07/culturaipsilon/opiniao/linha-maginot-branquitude-1990815
[2] Leitão, Bruno. et al. “Carta Aberta: Grada Kilomba E a Bienal De Veneza 2022 | BUALA.” BUALA, Dezembro 18, 2021, https://www.buala.org/pt/a-ler/carta-aberta-grada-kilomba-e-a-bienal-de-veneza-2022
[3] Gonçalo Morais, Carlos. “Agente da PSP impediu indevidamente filmagem de ação policial no bairro da Bela Vista em Setúbal?” Poligrafo, Abril 27, 2021, https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/agente-da-psp-impediu-indevidamente-filmagem-de-acao-policial-no-bairro-da-bela-vista-em-setubal
[4] Leal, Salomé. “Jovem que gravou abordagem ilegal de agente da PSP vai ter de pagar multa de 800 euros?” Poligrafo, Novembro 15, 2021, https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/jovem-que-gravou-abordagem-ilegal-de-agente-da-psp-vai-ter-que-pagar-multa-de-800-euros
[5] Gorjão Henriques, Joana. “Câmara Faz Demolições De Cafés No Jamaica: ‘É Bué De Polícias. Estão a Partir Os Cafés Todos. Sem Avisar.’”PÚBLICO, Novembro 9, 2021, https://www.publico.pt/2021/11/09/local/reportagem/camara-faz-demolicoes-cafes-jamaica-bue-policias-estao-partir-cafes-avisar-1984278
[6] Diário de Noticias. Lusa. et al. “Quase 15 000 Pessoas Exigem Deportação De Ativista Mamadou Ba.” Diário de Noticias, February 17, 2021, https://www.dn.pt/sociedade/quase-15-000-pessoas-exigem-deportacao-de-ativista-mamadou-ba-13359959.html
[7] Diário de Noticias. Lusa. et al. “Covid-19 Reforçou Racismo E Discriminação Em 2021.” Diário de Noticias, Junho 2, 2022, https://www.dn.pt/internacional/covid-19-reforcou-racismo-e-discriminacao-em-2021-14909338.html
[8] Gonçalo Morais, Carlos. “Mamadou Ba pode ser acusado de vários crimes devido ao polémico “tweet” sobre os deputados do Chega?” Poligrafo, Fevereiro 7, 2022, https://poligrafo.sapo.pt/fact-check/mamadou-ba-pode-ser-acusado-de-varios-crimes-devido-ao-polemico-tweet-sobre-os-deputados-do-chega
A manutenção por “gaslighting cultural” pode ser vista em argumentos retóricos apresentados por comentadores na imprensa, incluindo o director do Publico [1]. Um quadro retórico comum utilizado foi sugerir que os “verdadeiros” racistas eram os anti-racistas. [2] A narrativa do oprimido ser o opressor “real” é implementada para desviar e obscurecer as relações de poder, assim como a história. Neste caso, a violência sistémica duradoura nascida de uma história de colonialismo e decretada contra pessoas que são racializadas como negras e não brancas é negada, apenas para ser substituída pelo primeiro plano da raiva branca [3]. A fabricação de uma suposta “discriminação positiva” apresentada na imprensa, sugerindo que os artistas marginalizados pelo racismo de alguma forma beneficiam da sua identidade e de uma cultura de “politicamente correcto” [4] [5], bem como se envolvem na “gaslighting cultural” como uma negação e uma inversão das realidades do racismo como forma de opressão sistémica. O impacto e a experiência do racismo foram negados não só no contexto da selecção da representação portuguesa para a Bienal de Veneza, mas também na história da nação de Portugal como um todo [6]. Isto também pode ser visto a par de uma negação da existência de racismo estrutural [1] [7]. Ao testemunhar a “gaslighting cultural” sob a forma de um pânico fingido de “censura” e reivindicações da natureza “antidemocrática” [1] destes protestos – que ocorreram em resposta ao legado duradouro de violência colonial, supremacia branca, e racismo – há que pôr verdadeiramente em causa o papel da grande imprensa portuguesa e a competência das suas equipas de direcção e redacção. É particularmente preocupante que estas opiniões nocivas provenham do director de uma grande publicação, Publico, e fala profundamente da falta de diversidade nestes papéis, uma característica que é sem dúvida antidemocrática.
Em resposta à Carta Aberta emitida por Bruno Leitão, a Associação de Críticos de Arte (AICA) publicou a sua própria resposta [8] que invocava a mesma retórica escrita por toda a selecção branca de jornalistas e autores de artigos de opinião apresentados na imprensa. “Gaslighting cultural” foi mobilizada quando a AICA proclamou que os activistas anti-racistas estão envolvidos em práticas de “censura” e “antidemocráticas”. As alegações da AICA de que os historicamente oprimidos, ao desafiarem as condições estruturais da sua opressão, estão posicionados como hegemónicos de uma nova e imaginária ordem “autoritária” repete a inversão da “gaslighting cultural”.
No único artigo na imprensa a ter um autor racializado como negro, Mamadou Ba, juntamente com Ana Teixeira Pinto, que é racializada como branca, abordaram a questão da “gaslighting cultural” da carta aberta da AICA:
“Grada Kilomba não tem o direito divino de representar Portugal em Veneza mas Grada Kilomba tem o direito democrático de ver a sua candidatura avaliada de forma justa, objectiva e idónea, livre de manipulação e malícia. Esta discussão não é um debate entre liberdade e autoritarismo. Esta discussão é um confronto entre duas concepções de liberdade radicalmente diferentes: de um lado a liberdade para actuar com arbitrariedade, para abusar do poder, para desmerecer e denegrir, para exercer violência com impunidade. Do outro, uma concepção de liberdade que implica ser-se livre de violência, livre de abusos de poder, livre de arbitrariedade e livre de preconceitos.” [9]
Na outra instância preocupante do “gaslighting cultural”, o Ministério da Cultura tomou a decisão de manter a nomeação de Pedro Neves Marques como representante de Portugal na 59ª Bienal de Veneza, apesar de reconhecer os abusos do sistema de avaliação cometidos por Nuno Crespo. Afirmaram que houve uma “violação do dever de fundamentação num dos critérios de avaliação por parte de um elemento da Comissão de Avaliação, que não fez coincidir a nota dada com a fundamentação prestada” [10]. De acordo com a prática do “gaslighting cultural”, esta violação não teve consequências legais e foi directamente contrariada por não ser suficiente para anular a nomeação, apesar de ser uma violação reconhecida da lei.
[1] Carvalho, Manuel. “Os Pecados Do ‘Comentariado Branco.’” PÚBLICO, Janeiro 9, 2022,
[2] . Rainho, Vítor. “Os Verdadeiros Racistas.” Jornal SOL, Dezembro 31, 2021, https://sol.sapo.pt/artigo/757836/os-verdadeiros-racistas
[3] Anderson, Carol. White Rage. Bloomsbury USA, 2017.
[4] Seabra, Augusto M. “Grada Kilomba E O ‘Politicamente Correcto’ Multiculturalista.” PÚBLICO, Dezembro 28, 2021, https://www.publico.pt/2021/12/28/culturaipsilon/opiniao/grada-kilomba-politicamente-correcto-multiculturalista-1990085
[5] Wandschneider, Miguel. “Um Espectáculo Deprimente.” PÚBLICO, Dezembro 22, 2021, https://www.publico.pt/2021/12/22/culturaipsilon/cronica/espectaculo-deprimente-1989468
[6] Marques, João Pedro. “Os Anti-racistas De Plantão.” Observador, Dezembro 21, 2021, https://observador.pt/opiniao/os-anti-racistas-de-plantao/
[7] Araújo, António. “Na Corda Bamba.” Diário de Notícias, Janeiro 15, 2022, https://www.dn.pt/opiniao/na-corda-bamba-14491718.html
[8] “Comunicado – Liberdade Criativa E Juízo Crítico | AICA Portugal.” Associação de Criticos de Arte – Portugal, https://aica.pt/news/comunicado-liberdade-criativa-e-juizo-critico
[9] Pinto, Ana Teixeira. Ba, Mamadou.“A Linha Maginot Da Branquitude.” PÚBLICO, Janeiro 7, 2022, https://www.publico.pt/2022/01/07/culturaipsilon/opiniao/linha-maginot-branquitude-1990815
[10] Journal Expresso et al. “Ministra Acata Decisão Da Bienal De Veneza.” Expresso, Fevereiro 15, 2022, https://expresso.pt/politica/2022-02-15-ministra-acata-decisao-da-bienal-de-veneza
A manutenção pelo mito da “neutralidade” pode ser novamente testemunhada na imprensa, com comentadores especulando sobre a “crise” [1] [2] da compreensão da arte relacionada com as condições sociais, económicas e políticas em que foi criada; como se o canhão da arte ocidental sempre tivesse existido “livre” destas realidades, hermeticamente selado, confinado unicamente ao domínio da estética. A intervenção das associações anti-racistas na assinatura da carta aberta para responder a uma instância de racismo institucional foi, num caso [3], enquadrada como um “ataque à liberdade de expressão”. A “liberdade” que o autor procura proteger é a liberdade de decretar a opressão racista sem contestação, diálogo ou crítica, mantendo uma ordem hegemónica nascida de uma história de dominação colonial e supremacia branca.
Na sua exposição talvez mais proeminente, a manutenção da hegemonia cultural pelo mito da “neutralidade” pode ser vista na carta aberta publicada pela Associação de Críticos de Arte [4], que incluía uma lista de signatários dos quais eram notáveis jornalistas, directores, curadores, e directores de organismos de financiamento, incluindo: Celina Brás (directora Revista Contemporânea), Elísio Summavielle (presidente Fundação CCB), Emília Ferreira (directora do Museu Nacional de Arte Contemporânea), Inês Grosso (curadora-chefe do Museu de Serralves), José Manuel dos Santos (director revista Electra), Teresa Seabra (directora Galeria Cristina Guerra), Cristina Guerra (galerista Galeria Cristina Guerra), Miguel Nabinho (galerista Galeria Miguel Nabinho), Nuno Centeno (galerista Galeria Nuno Centeno), Pedro Cera (galerista Galeria Pedro Cera), Tiago Montepegado (galerista Galeria Ratton), Vera Cortês (galerista Galeria Vera Cortês), Delfim Sardo (curador, administrador do Centro Cultural de Belém), Marta Mestre (curadora), Bruno Marchand (curador, programador de artes visuais Culturgest), and Clara Ferreira Alves (jornalista).
Em resposta a um abuso de um processo democrático cometido por um jurado, motivado por preconceitos raciais – um abuso que foi reconhecido não só por instituições artísticas internacionais, activistas e artistas, mas também por associações anti-racistas aqui em Portugal – a AICA sentiu-se compelida a divulgar esta declaração afirmando que o “juízo crítico” deve permanecer “livre”, e que “não se pode reivindicar de qualquer representatividade política”, ou correríamos o risco de deslizar para o “autoritarismo”. O mito da “neutralidade” é brandido para afirmar o domínio da hegemonia, ofuscando a história e a dinâmica do poder. A suposição de que a luta política do anti-racismo é uma questão “moral” é utilizada para despojar o movimento da sua crítica das relações materiais e de poder, assim como da sua leitura da história. É um reflexo profundamente conservador e alienado, cujo quadro de referência se encontra alojado no início do século anterior e no narcisismo do eurocentrismo branco, incapaz de abordar a arte, o fazer artístico e a crítica de arte significativamente informada pelo contemporâneo.
Respondendo directamente ao mito da “neutralidade” na declaração divulgada pela AICA, a artista e activista Carolina Elis, numa carta aberta auto-publicada intitulada “O choro branco é livre”. Literalmente”, escreveu:
“A carta da AICA (@aica_portugal) explicita ainda mais a situação: um conjunto de personalidades “importantes” (e quando digo importantes, quero dizer com poder hegemónico e estrutural nas palmas das mãos), tiveram a coragem de escrever e assinar um texto onde se põem no centro da discussão e clamam pela liberdade de produção e crítica artística. Agora, pergunto eu, quando foi que não tiveram essa liberdade? Essa carta que escrevem, sem qualquer pudor e me atrevo a dizer “pensamento crítico”, é a prova cabal.” [5]
Mamadou Ba e Ana Teixeira Pinto no seu artigo “A Linha Maginot Da Branquitude” também responderam ao mito da “neutralidade”, escreveram eles:
“A “liberdade,” como é patente na carta aberta escrita pela AICA portuguesa, é a palavra de ordem de um status quo com poder de mobilização institucional, investido na preservação da sua hegemonia e monopólio, a qual, por estar naturalizada, lhes parece natural. O preconceito é, por regra, expresso na linguagem dos princípios. É por isso que se percebe melhor qual é o conteúdo destes apelos a princípios como a “liberdade de juízo critico” na forma como os mesmos são empregues e para que fins. Neste caso a liberdade de juízo crítico não abrange a critica à actuação do jurado, cujas observações foram convenientemente removidas de toda esta discussão… o tipo de liberdade que a AICA defende não é só limitado como limita: limita a liberdade social e política que só será possível quando se confrontar a dimensão estrutural do racismo na sociedade portuguesa.” [6]
[1] Fernandes, Patrícia. “A Politização Da Arte.” Observador, Janeiro 3, 2022, https://observador.pt/opiniao/a-politizacao-da-arte/
[2] Guerreiro, António. “A Arte ‘Bienalizada.’” PÚBLICO, Dezembro 24, 2021, https://www.publico.pt/2021/12/24/culturaipsilon/cronica/arte-bienalizada-1989538
[3] Seabra, Augusto M. “Grada Kilomba E O ‘Politicamente Correcto’ Multiculturalista.” PÚBLICO, Dezembro 28, 2021, https://www.publico.pt/2021/12/28/culturaipsilon/opiniao/grada-kilomba-politicamente-correcto-multiculturalista-1990085
[4] “Comunicado – Liberdade Criativa E Juízo Crítico | AICA Portugal.” Associação de Criticos de Arte – Portugal, https://aica.pt/news/comunicado-liberdade-criativa-e-juizo-critico
[5] Elis, Carolina. [@bakemonas]. “Não acredito que vou acrescentar nada, porque, como vocês podem ver, todo mundo já acrescentou de tudo á situação. Mas vamos lá.
Bom, pra começar, eu não sei se as pessoas realizam o quão ridículo é ver a produção artística ser reduzida a um processo eliminatório estilo escola secundária (as notas de 0 a 20 com comentários de a(de)preciação foi o auge da situação pra mim). Digo isso porque é realmente estranho como há gentes a lutarem pela liberdade artística e pensamento crítico, quando é nesse círculo fechado, rigoroso, brancocêntrico e narcísico que se faz a escolha pra “grande” Bienal de Veneza. Muito pelo contrário, nas suas lutas inglórias, ninguém cita essa contradição óbvia: o interesse aqui é, obviamente, a retórica da negação do racismo português. Claro está, então, qual a liberdade que lutam e desejam. Isso pra mim (e muitos artistas) não é novidade e não é por isso que escrevo o presente texto. Escrevo o presente texto apenas com o intuito de documentar e explicitar o ponto da questão: O pacto da branquitude é tão forte e soberano, que observamos a liberdade e despreocupação com que, não só desrespeitam o percurso de Grada Kilomba como artista e mulher negra, mas até de quem dizem defender: não houve respeito nem pela identidade de género de Pedro Neves Marques. Transfobia, retóricas neo-nazis, paternalismo colonial e racismo publicados em sites e jornais de grande circulação, numa leveza e liberdade que obviamente são artigos de luxo branco e cis. O jurado que justificou as suas notas ridiculamente baixas ao trabalho de Kilomba com “sem mérito”, “tema desgastado e discutido”, “sem alcance e sem possibilidade de internacionalização”, agora se encontra chocado por ser acusado de racista e misógino, dizendo-se envolto no “combate social” a anos. Talvez seja por isso que a JUSTIÇA (porque é assim que chamamos a luta) social esteja tão atrasada em Portugal. Talvez a minoria do jurado seja a mesma minoria de Manuel Luís Goucha. (continua nos comentários).” Instagram, https://www.instagram.com/p/CYZTDkaN7LC/
[6] Pinto, Ana Teixeira. Ba, Mamadou.“A Linha Maginot Da Branquitude.” PÚBLICO, Janeiro 7, 2022, https://www.publico.pt/2022/01/07/culturaipsilon/opiniao/linha-maginot-branquitude-1990815
Estudo de caso 3: Feira Gráfica
A 4 de Outubro de 2020, o sociólogo e artista Rodrigo Ribeiro Saturnino (artista com o nome de ROD) participou numa conversa online sobre o tema: “Activismo Gráfico – O território da edição como espaço de afirmação de identidade(s)” no contexto do programa da Feira Gráfica de Lisboa (Feira Gráfica). Participaram em conjunto com a ROD na conversa sobre o Zoom Ciço Silveira (Sapata Press), André Teodósio/Nuno Alexandre Ferreira/João Pedro Vale (Mercado das Migalhas), Sílvia Prudêncio, Xavier Almeida e Filipa Valadares (moderação). No final da conversa, o ROD perguntou a Nuno Alexandre e João Pedro Vale sobre o seu processo para uma obra que foi exibida na Stolen Books, em Lisboa, no contexto da 24ª edição do festival de cinema Queer Lisboa. A obra era uma foto gigante de um grupo de jovens nus brancos racializados juntamente com os artistas drapeados em tecidos e reclinados numa sala rosa; uma reprodução de uma cena do filme “Nicht der Homosexuelle ist pervers, sondern die Situation, in der er lebt” realizado por Rosa von Praunheim. Na cena correspondente do filme, rodado na Alemanha em 1971, um grupo de homossexuais brancos racializados falam juntos sobre as ambições do movimento de libertação gay do seu tempo, e a necessidade de unir forças com os Panteras Negras e a frente da Libertação das Mulheres. Numa viragem cruel, em 2020, anos mais tarde, e no clima político de um movimento queer revigorado, notável pela sua diversidade interseccional, os artistas Nuno Alexandre e João Pedro Vale escolheram uma representação visual que permaneceu presa em 1971, uma imagem composta por todos os homens brancos cis racializados com corpos em forma, alinhados com os padrões estéticos da hegemonia. No dia seguinte, 5 de Outubro de 2020, os organizadores da sessão chamaram o ROD para o informar que três dos artistas, André Teodósio, João Pedro Vale e Nuno Alexandre, pediram à organização que retirasse as suas imagens e discursos do vídeo porque consideravam a intervenção ofensiva. O vídeo da palestra foi retirado do Youtube, onde foi alojado, e no seu lugar foi carregada uma versão abreviada e censurada. No novo vídeo o ROD faz perguntas e comentários mas não tem resposta. É colocado um ecrã preto cobrindo André Teodósio, João Pedro Vale e Nuno Alexandre e as suas vozes são silenciadas, obscurecendo a forma como os participantes tinham respondido anteriormente. Além disso, 30 minutos do vídeo original foram apagados. O vídeo original e não censurado foi novamente carregado no dia 6 de Outubro, após reclamações, com o festival a negar responsabilidade. Uma denúncia pública do festival foi divulgada por activistas em resposta às acções de censura e racismo. Isto foi apresentado com uma Carta Aberta e petição, assim como um vídeo que documentou e contextualizou o encontro, do qual editei e produzi. No ano seguinte, 2021, uma campanha liderada por um grupo de activistas, na qual também participei juntamente com um dos curadores dos Festivais, Ciço Silveira, apelou a uma greve dos trabalhadores da arte convidados a participar na Feira Gráfica. A greve envolveu com sucesso 80 trabalhadores de arte e o festival foi subsequentemente encerrado. A 7 de Julho de 2021, quatro dias antes do início do evento, Feira Gráfica emitiu duas declarações públicas. Num deles, anunciaram o cancelamento do festival e atribuíram a culpa às preocupações de segurança da Covid, nunca mencionando a greve. Na outra declaração reconheceram o episódio em 2020 como um acto de racismo e censura, que é um crime punível ao abrigo do código penal português. Nenhuma acção legal foi jamais tomada, e o festival nunca mais voltou à produção.
Neste estudo de caso a manutenção pela força pode ser observada principalmente no discurso do ódio nas secções de comentários e nos posts da comunicação social, contribuindo para um clima de agressão racista acentuado directamente após o protesto contra a censura e o racismo na Feira Gráfica, tanto em 2020 como em 2021. Rodrigo Ribeiro Saturnino (ROD), bem como alguns dos activistas que participaram na organização do protesto, incluindo eu própria, receberam ameaças de morte através de mensagens directas nos meios de comunicação social, muitas vezes a partir de relatos falsos feitos explicitamente por assédio. Após o seu alinhamento com a greve em 2021, um dos curadores da Feira Gráfica 21′, Ciço Silveira, foi alvo de exclusão sistémica no acesso ao trabalho e, também, alvo de uma erosão da sua vida profissional no sector cultural e universitário, Ar.Co, onde trabalhou como professor. É de notar que o acto de censura, que teve lugar na Feira Gráfica, não é apenas um crime, mas uma prática cultural violenta e comum durante o período do fascismo português sob o regime do Estado Novo.
A Feira Gráfica 20′ ocorreu no contexto de actos de terrorismo em Lisboa motivados por agressões racistas. A 19 de Janeiro de 2020, um polícia branco racializado, Carlos Canha, que na altura não estava de serviço, agrediu, brutalmente, Cláudia Simões à frente da sua filha de 7 anos por não ter bilhete de transporte, num acto de violência policial por motivação racial [1]. Isto ocorreu enquanto outros dois agentes, João Carlos Cardoso Neto Gouveia e Fernando Luís Pereira Rodrigues, permaneceram no carro. Ela foi também atacada, mais tarde,no carro da polícia e na esquadra, para depois ser encontrada inconsciente fora da esquadra. Na sequência destas agressões, Magina da Silva, o director nacional da PSP, alegou que “não viu nada de anormal” [2]. Mais tarde, em Fevereiro de 2020, em Guimarães, o jogador de futebol do Porto, Moussa Marega, deixou o campo depois de insultos racistas, consistentes e hostis, vindos das bancadas: também lhe foram atiradas cadeiras. Os árbitros não seguiram as regras da UEFA e da FIFA e pararam o jogo, permitindo que os ataques se intensificassem [3]. A 25 de Julho de 2020, o actor Bruno Candé foi assassinado num homicídio por motivos raciais cometido por um português branco racializado, Evaristo Marinho, que era um antigo soldado na Guerra do Ultramar [4]. A mesma liderança policial rejeitou a motivação racista num comunicado de imprensa após o assassinato. [5] Evaristo Marinho foi mais tarde considerado culpado e condenado por um homicídio por motivos raciais [6]. Mais tarde, em Julho de 2020, o antigo líder do grupo neonazi “Hammerskins Portugal”, Mário Machado, acusou Mamadou Ba, Líder do SOS Racismo, por difamação, por o chamar de “assassino” de Alcindo Monteiro, um homem cabo-verdiano assassinado em 1995 [7]. Machado esteve presente na noite dos acontecimentos, mas não foi condenado. O julgamento por estas acusações de difamação está ainda em curso. A 8 de Agosto de 2020, a sede da associação anti-racista SOS Racismo foi atacada e vandalizada [8] por um grupo de nacionalistas brancos mascarados com archotes, imitando visualmente a estética do rally “Unite the Right” que teve lugar em Charlottesville, Virginia, nos Estados Unidos em 2017, e que levou ao assassinato de Heather Heyer quando um terrorista nacionalista branco, James Alex Fields Jr., conduziu um carro para dentro de um grupo de manifestantes anti-racistas. Após o ataque à sede do SOS Racismo, a 12 de Agosto de 2020, o activista Mamadou Ba juntamente com 9 outros activistas anti-racistas receberam ameaças de morte e exigências de abandonar o país [9]. A 30 de Outubro, não muito depois dos protestos iniciais contra a censura racista que ocorreu na Feira Grafica, ocorreu um ataque coordenado de graffitis racistas em várias instituições de ensino secundário em Lisboa e Loures e em duas universidades, Católica e ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa [10]. O graffiti incluiu frases racistas e xenófobas.
No sector cultural vislumbrou-se, também, um ambiente de hostilidade na sequência do protesto do movimento Black Lives Matter, de 2020, em Portugal. Tal traduziu-se na forma como figuras poderosas da elite cultural declararam, publicamente, a sua demarcação do movimento. A 20 de Junho de 2020, a galerista Cristina Guerra fez uma declaração pública, nas suas redes sociais [11], que se traduziu num eco das palavras do populista de direita André Ventura [12], denunciando as manifestações do BLM, bem como do SOS Racismo. O seu post foi apoiado e defendido por outras figuras poderosas do sector cultural português, tais como Fátima Mota (Galeria Fonseca Macedo), Pedro Magalhes (Varanda), Vera Appleton (Appleton Box), Miguel Rios (Fundação Leal Rios, Galeria Uma Lulik), Francisci Fino (Galeria Francisci Fino), Miguel Nabinho (Galeria Miguel Nabinho), Pedro Cera (Galeria Pedro Cera), Vasco Araujo, Angela Ferreira, Nuno Nunes-Ferriera, Rita. Gt, Marta Mestre, Sérgio Fazenda Rodrigues, Paulo Mendes, e Filipa Oliveira, contribuindo para um clima de hostilidade racista. Algumas destas figuras também assinaram o documento divulgado pela AICA Portugal, o “Comunicado – Liberdade Criativa E Juízo Crítico” no estudo de caso anterior.
[1] Henriques, Joana Gorjão. “Cláudia Simões Quer Que Os Três Polícias Acusados De a Agredir Sejam Julgados Por Racismo.” PÚBLICO, Novembro 23, 2021, https://www.publico.pt/2021/11/23/sociedade/noticia/claudia-simoes-quer-tres-policias-acusados-agredir-julgados-racismo-1986100?ref=pesquisa&cx=page__content
[2] Lusa. et al.“Novo Director Da PSP Não Viu ‘Qualquer Infracção’ No Vídeo Da Detenção De Cláudia Simões.” PÚBLICO, February 3 2020, https://www.publico.pt/2020/02/03/sociedade/noticia/novo-diretor-psp-nao-viu-qualquer-infraccao-video-detencao-claudia-simoes-1902758
[3] Almeida, Isaura. “Insultos a Marega Abrem a Discussão Sobre O Racismo No Futebol Português.” Diário de Notícias, February 16, 2020, https://www.dn.pt/edicao-do-dia/17-fev-2020/insultos-a-marega-abrem-a-discussao-sobre-racismo-no-futebol-portugues-11828593.html
[4] “Sobre O Assassinato Racista De Bruno Candé Marques.” SOS Racismo, Julho 25, 2020, https://www.sosracismo.pt/geral/sobre-o-assassinato-racista-de-bruno-cande-marques
[5] Pinto, José Volta e. “PSP Diz Que Testemunhas Da Morte De Bruno Candé Afastam Motivação Racista.” PÚBLICO, Julho 26, 2020, https://www.publico.pt/2020/07/26/sociedade/noticia/psp-testemunhas-morte-bruno-cande-afastam-motivacao-racista-1925928
[6] DN. Lusa. et al. “Homicida De Bruno Candé Condenado a 22 Anos E Nove Meses De Prisão.” Diário de Notícias, Junho 28, 2021, https://www.dn.pt/sociedade/homem-acusado-de-matar-ator-bruno-cande-condenado-a-22-anos-e-nove-meses-de-prisao-13882081.html
[7] Davim, Margarida. “Mamadou Ba Aguarda ‘Com Muita Expectativa’ Queixa De Mário Machado.” SÁBADO, Julho 22, 2020, https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/mamadou-ba-aguarda-com-muita-expectativa-queixa-de-mario-machado
[8] Henriques, Joana Gorjão. Fernandes, Ricardo Cabral. “SOS Racismo Faz Queixa a Ministério Público Por Ameaças E ‘Parada Ku Klux Klan’ Em Frente À Sede.” PÚBLICO, August 10, 2020, https://www.publico.pt/2020/08/10/sociedade/noticia/sos-racismo-faz-queixa-ministerio-publico-ameacas-parada-ku-klux-klan-frente-sede-1927650
[9] DN. Lusa. et al. “Neonazis. Ministério Público Abriu Inquérito Sobre Ameaças a Deputadas E À Associação SOS Racismo.” Diário de Notícias, August 13, 2020, https://www.dn.pt/pais/neonazis-ministerio-publico-abriu-inquerito-sobre-ameacas-a-deputadas-e-a-associacao-sos-racismo-12521348.html
[10]Antunes, Conceição.“Grafittis Racistas Na Universidade Católica E No ISCTE: ‘Pretos, Não Vos Queremos Cá’, ‘Zucas, Voltem Para as Favelas.’” Expresso, Outubro 30, 2020, https://expresso.pt/sociedade/2020-10-30-Grafittis-racistas-na-Universidade-Catolica-e-no-ISCTE-Pretos-nao-vos-queremos-ca-Zucas-voltem-para-as-favelas
[11] Guerra, Ana Cristina. [@cguerra54]. “Furiosa….Ele é, manifestações na Alameda, 1 de Maio, SOS RACISMO, festa no Campo Pequeno….. etc, etc…. Depois querem economia….Isto é uma brincadeira, é uma grande m—-a…!!!!! Vou inaugurar no Porto!!!!” Instagram, Junho 22, 2020, https://www.instagram.com/p/CBvnJ7OpmZA/
[12] Whistles, Dusty. [@dustywhistles]. “Imagem: Poderoso galerista em Lisboa reproduz a retórica do líder do partido fascista português, e pior apontar dedos ao BLM. Não visto nesta imagem: O seu silêncio, dias depois, quando os fascistas marcharam im Lisboa, no dia 27 de Junho. Expondo a quimera do seu “covid preocupação” em relação à assembleia pública. A lista de curadores, galeristas, estudiosos, artistas brancos “empenhados” em estudos pós-coloniais, espaços artísticos, agências artísticas, e fundações dando os seus ”likes” digitais ou comentando em aplausos. Não visto nesta imagem: o silêncio dos artistas brancos. Estou a publicar isto para comentar aquilo de que todos temos consciência, que o poder se estrutura segundo as linhas da hegemonia, empenhado na reprodução da violência sistémica. Estou a publicar isto para lembrar aos detentores do poder que a responsabilização é sempre uma opção, se souberem ouvir – e se não souberem, saibam que a história é muito mais crítica e implacável do que tu ou eu. #vidasnegrasimportam” Instagram, Junho 30, 2020, https://www.instagram.com/p/CCCW5MTpaPq/
Neste estudo de caso a manutenção por “gaslighting cultural” pode ser vista na negação da greve dos trabalhadores da arte [1] que encerraram a Feira Grafica em 2021, numa declaração pública que culpou o encerramento de Covid conserns [2]. “Gaslighting cultural” também pode ser visto na resposta dos artistas, André Teodósio, João Pedro Vale e Nuno Alexandre, que inicialmente apelaram para que as suas imagens e vozes fossem retiradas do vídeo publicado no programa da Feira Grafica para 2020. O seu projecto seguinte, “Mercado de Migalhas”, foi cancelado por medo de “violência” por parte dos activistas anti-racistas [3]. Neste caso, mais uma vez, os oprimidos são posicionados como os “opressores” e os “violentos”, em primeiro plano a raiva branca e negando as consequências históricas e sistémicas do colonialismo e a violência persistente do racismo. A “gaslighting cultural” está também em jogo na flagrante inacção da Câmara Municipal de Lisboa, que financiou a Feira Grafica, depois de os organizadores terem admitido publicamente a violação da lei ao cometerem um acto de racismo e censura. [4] A manutenção da hegemonia através do “gaslighting cultural” também pode ser vista estruturalmente adjacente num clima de agressão racista, ocorrida anteriormente a 27 de Junho de 2020, quando o partido político Chega se manifestou em Lisboa sob o lema “Portugal não é racista”, enquanto o seu líder partidário, André Ventura, lidera a marcha fazendo uma saudação nazi [5]. Esta exposição grosseira de luz de gás cultural procurou negar e responder directamente às manifestações da Black Lives Matter, que tinham ocorrido anteriormente em todo o país no início desse ano.
Como a dominação hegemónica também é mantida através do consentimento dos oprimidos na sua reprodução dos valores normativos da ordem hegemónica, há utilidade em reflectir a forma como os negros radicalizados se reproduziram e participaram na “gaslighting cultural” em resposta ao protesto. O artista Paulo Pascoal lançou duas declarações em vídeo [6] [7] nas quais se alinhou com André Teodósio, João Pedro Vale e Nuno Alexandre e não com os activistas anti-racistas que se têm organizado contra a censura de uma discussão sobre o racismo nas artes contemporâneas portuguesas. Nos vídeos deu também prioridade consistente ao desconforto e raiva branca de André Teodósio, João Pedro Vale e Nuno Alexandre como forma de procurar legitimar e desculpar o acto de censura. “Gaslighting cultural” foi utilizado por Paulo Pascoal na sua declaração em vídeo no seu enquadramento do apelo informal a um boicote ao “Mercado de Migalhas” por activistas anti-racistas (em resposta à falta de responsabilização tomada por André Teodósio, João Pedro Vale e Nuno Alexandre pela sua participação num acto de censura) como um acto de “agressão”; transferindo a culpa para as vítimas de racismo e não para aqueles que cometeram um abuso de poder e um acto de censura racista. Isto é feito para silenciar a dissidência e manter a hegemonia. Mais tarde, utilizou a táctica do “gaslighting cultural” para tentar deslegitimar o apelo informal ao boicote do “Mercado de Migalhas”, tentando distanciar André Teodósio, João Pedro Vale e Nuno Alexandre do projecto, apesar de serem eles os organizadores. O “Gaslighting cultural” foi também utilizado quando Paulo Pascoal sugeriu, no final do primeiro vídeo, que desafiar o racismo dentro das comunidades queer apenas as divide e torna as comunidades queer mais frágeis. Este é um acto de inversão que nega e obscurece a divisão social e histórica criada pela hegemonia racista. Afirmar que a organização anti-racista divide a comunidade queer, e não o racismo e a supremacia branca, é um esforço para manter a ordem hegemónica. No livro “The Possessive Investment in Whiteness” [8], George Lipsitz relata uma história de comunidades marginalizadas, no contexto do colonialismo dos colonos, que foram colocadas umas contra as outras em benefício da manutenção da supremacia branca e da ordem hegemónica colonial. As comunidades negras e indígenas racializadas foram incentivadas a trabalhar umas contra as outras, e a si próprias, como meio de procurar a validação ou a protecção da brancura. Para Lipsitz, a brancura torna-se uma forma de poder e não apenas uma identidade ou categoria racial. Por vezes, os oprimidos identificam-se com este poder hegemónico, em vez de se aperceberem dele como um local de subjugação.
O sociólogo marxista, teórico cultural e activista Stuart Hall, embora reconhecendo as limitações da perspectiva eurocêntrica de Gramsci, foi capaz de empregar os conceitos de uma análise de Gramscian para desenvolver a teoria sobre raça e género. O trabalho de Hall centra-se em questões de hegemonia e estudos culturais. Tal como Gramsci, Hall entendeu a hegemonia como não sendo alcançada apenas através da influência, exigindo o consentimento da classe que subordina. Para fazer isto, a cultura hegemónica absorve frequentemente as culturas dos oprimidos, mas fá-lo sem alterar dramaticamente as dinâmicas estruturais dos sistemas de poder e crenças da ordem hegemónica. Para citar Hall: “Funciona principalmente através da inserção da classe subordinada nas instituições e estruturas chave que apoiam o poder e a autoridade social da ordem dominante. É, sobretudo, nestas estruturas e relações que uma classe subordinada vive a sua subordinação”. [9]
[1] Feira Gráfica Lisboa, et al. “Adiada devido à situação epidemiológica.” Feira Grafica Lisboa, https://www.feiragraficalisboa.pt/Comunicado%20Adiamento.pdf
[2] Whistles, Dusty. [@dustywhistles] “full text in bio /// Through collective refusal we avoid invisibility, building collective strength by revealing the violence that prevails over our marginalization. We avoid financial loss through action and collective solidarity. We rebuild our power by creating alternative infrastructures of collective authorship with a vision for the present and future that is intersectional, inclusive, and a direct provocation of those who seek to profit from our division and oppression. Together we are stronger than those who try to tear us apart.” Instagram, Julho 4, 2021, https://www.instagram.com/p/CQ6KYNuLfhC/
[3] et al. “Mercado Das Migalhas Recriado 40 Anos Depois.” Dezanove, https://dezanove.pt/mercado-das-migalhas-recriado-40-anos-1343527
[4] Feira Grafica Lisboa, et al. “Comunicado.” Feira Grafica Lisboa, https://www.feiragraficalisboa.pt/comunicado-feira-grafica.pdf
[5] Group, Global Media. “Desfile De Ventura: O Gesto Provocatório, Maria Vieira E Um Dirigente Do PSD.” Jornal de Notícias, Junho 27, 2020, https://www.jn.pt/nacional/manifestacao-de-direita-arranca-com-um-sexto-dos-participantes-esperados-12360962.html
[6] Pascoal, Paulo. [@paulopascoal_]. “Decidi fazer este vídeo porque não aguento mais ser questionado sobre a minha posição nesse “litígio” que se transformou na desfragmentação do Mercado das Migalhas. Também quero, obviamente, abrir mais um espaço para que essa conversa possa ser tida, considerando que, sou das poucas pessoas que aparentemente consegue fazer essa ponte (se é que a querem). Podem deixar aqui os vossos comentários com mais questões ou justificações. Venho desde a tentativa de uma outra resolução, visto que já foram emitidos vários pedidos de desculpas e que o próprio vídeo (do qual não faço parte) também já foi reposto na íntegra e sem a edição que causou todo este transtorno. xxx” Instagram, Outubro 9, 2020, https://www.instagram.com/p/CGH5Ix8Hj8C/
[7] Pascoal, Paulo. [@paulopascoal_]. “A cidade do colonizado, a cidade indígena, a cidade negra, o bairro árabe, é um lugar de má fama, povoado por homens também de má fama. Ali, nasce-se em qualquer lado, de qualquer maneira. Morre-se em qualquer parte e não se sabe nunca de quê. É um mundo sem intervalos, os homens estão uns sobre os outros, as cabanas dispõem-se do mesmo modo. A cidade do colonizado é uma cidade esfomeada, por falta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade de cócoras, de joelhos, a chafurdar. É uma cidade de negros, uma cidade de ruminantes. O olhar que o colonizado lança sobre a cidade do colono é um olhar de luxúria, um olhar de desejo. Sonhos de possessão.” Neste caso, a soberania representa a capacidade de definir quem interessa e quem não interessa, quem é prescindível e quem não é. #achillembembe #frantzfanon #oscondenadosdaterra #politicasdainimizade… xxx” Instagram, Outubro 9, 2020, https://www.instagram.com/p/CGIKDmdHkth/
[8] Lipsitz, George. The Possessive Investment in Whiteness: How White People Profit from Identity Politics. Temple University Press, 1998.
[9] Hall, Stuart. Jefferson, Tony. Resistance through rituals: Youth subcultures in post-war Britain. Hutchinson, 1976.
A manutenção pelo mito da “neutralidade” pode ser observada na retórica empregada directamente no momento do encontro dentro do programa Feira Grafica 2020 e pode ser vista na documentação em vídeo [1]. No contexto da palestra, respondendo à discussão sobre racismo nas artes contemporâneas, a artista Sílvia Prudêncio respondeu dizendo “…eu acho que é só problemático trazer para uma prática artística o mesmo tipo de exigências políticas que nós podemos exigir de um estado, de uma instituição ou de um organismo público”. Ao que ROD lhe recordou o contexto da palestra, sendo um deles relacionado com o activismo. Ela continuou “Não é sobre activismo é sobre arte e são coisas distintas”. O nome da palestra foi “Activismo Gráfico – O território da edição como espaço de afirmação da(s) identidade(s)”. Neste momento Sílvia Prudêncio tentou alienar a arte do seu contexto político e social, reproduzindo o mito da artista “neutra” como meio de silenciar a crítica e manter o domínio da hegemonia cultural. Este encontro podia ser visto aos 30 minutos do vídeo que mais tarde foi apagado da versão censurada. Mais tarde, após o próximo projecto de André Teodósio, João Pedro Vale e Nuno Alexandre, “Mercado de Migalhas”, foi cancelado por medo da “violência” dos activistas anti-racistas [2], o artista Paulo Pascoal lançou uma declaração em vídeo [3] na qual se alinhava em solidariedade com a raiva branca dos artistas que estavam envolvidos na censura da palestra em Feira Grafica 2020. No vídeo ele defendeu todas as representações brancas da comunidade queer, como se viu na imagem de João Pedro Vale e Nuno Alexandre que foi o foco da discussão que mais tarde foi censurada na Feira Gráfica 2020. Afirmou, no vídeo, que os artistas não têm qualquer responsabilidade pelas representações no seu trabalho empregando o mito da neutralidade, desviando as culpas para as instituições e para o Estado.
[1] “Ativismo Gráfico: Censura E Racismo Na Arte Portuguesa.” YouTube, 17 Oct. 2020, www.youtube.com/watch?v=CVc2kcjRxQo
[2] et al. “Mercado Das Migalhas Recriado 40 Anos Depois.” Dezanove, https://dezanove.pt/mercado-das-migalhas-recriado-40-anos-1343527
[3] Pascoal, Paulo. [@paulopascoal_]. “Decidi fazer este vídeo porque não aguento mais ser questionado sobre a minha posição nesse “litígio” que se transformou na desfragmentação do Mercado das Migalhas…” Instagram, Outubro 9, 2020, https://www.instagram.com/p/CGH5Ix8Hj8C/
Conclusão
Porque é que a exclusão de pessoas historicamente marginalizadas de uma participação no sector cultural e na vida pública não é vista como censura? Porque é o protesto, um sinal de uma participação cívica saudável, visto como uma ameaça à democracia quando decretado pelos historicamente marginalizados? Cuja violência é legítima, invisível, e socialmente entendida como normal? Quem beneficia quando a cultura em Portugal é organizada principalmente dentro de pequenos círculos fechados de produção de elite. Porque é que a recusa das elites culturais em ouvir os trabalhadores e os públicos artísticos não é entendida como um impulso autoritário e um acto de censura? Porque é que a negação sistemática de um panorama cultural equitativo e inclusivo, não é entendida como uma ameaça à democracia? Quem beneficia quando a política, o poder e as condições de trabalho se tornam invisíveis no contexto da criação artística e numa compreensão da arte e da história da arte. Quem beneficia de um sector cultural defundido, de escassez de produção e de uma concorrência acrescida entre os trabalhadores da arte? Quem beneficia quando a opressão é respondida por uma cultura de silêncio, negação e esquecimento?
O panorama do sector cultural português é dominado por representações hegemónicas e por uma política de representatividade hegemónica. As experiências historicamente marginalizadas são consideradas secundárias ou enquadradas como dissidentes. Uma longa história na produção de arte ocidental é investida na manutenção de narrativas hegemónicas e na sua apresentação como neutras e apolíticas. A fabricação do “normativo”, a afirmação de que é a ordem natural das coisas, que é esta a forma como o mundo funciona, enquanto que o envolvimento activo na exclusão é uma escolha política. A inacção e a aceitação de um sector cultural defundido, especificamente por elites culturais, é uma escolha política. A normalização da austeridade, dos baixos salários da arte e do trabalho artístico não remunerado, que mantém a classe trabalhadora e os trabalhadores marginalizados do acesso à produção, é uma escolha política. A ausência de uma liderança cultural diversificada e inclusiva e de produção cultural é uma escolha política [1]. A prática de isolar e simbolizar os trabalhadores de arte marginalizados – em vez da inclusão, equidade, um investimento na mudança estrutural e uma redistribuição do poder – é uma escolha política. Colecções de arte, educação artística, papéis curatoriais, funções de direcção e os órgãos de financiamento são todos locais que envolvem o exercício do poder e da escolha, influenciando a forma como percebemos o mundo e podemos imaginar a possibilidade – tudo isto é profundamente político. A relutância em desafiar e resistir à opressão no seio da produção da cultura é política. O poder neutro é uma falácia na manutenção da hegemonia.
O domínio desta ideologia envolvendo a “neutralidade” da arte – e aí pela “neutralidade” do imaginário artístico, da produção artística e da história da arte – põe em perigo o futuro e a relevância das instituições artísticas por não satisfazerem as necessidades da sociedade, limitando activamente a sua utilidade às sensibilidades e preocupações de uma classe cada vez mais hermética de elites. A activa supressão sistémica e censura dos trabalhadores artísticos marginalizados, não só dos papéis de produção mas também das posições de direcção, limita o potencial e a imaginação de um público artístico, bem como a sua capacidade de encontrar de forma significativa comunidades das quais possam estar estruturalmente alienados. A cultura como local de encontro é profundamente transformadora, em particular quando provém da auto-autoria dos historicamente oprimidos. Apesar da relevância vacilante das instituições culturais, da atrofia da cultura nas mãos das elites, e da austeridade que desfigurou as artes, a cultura continua a ter uma grande importância pública. No início das quarentenas da pandemia, a cultura foi entendida com um novo interesse – como um serviço essencial para a saúde pública de uma sociedade.
É preocupante que, apesar da valorização da cultura após a quarentena, quaisquer tentativas de alargar a acessibilidade dentro do sector cultural para incluir os historicamente marginalizados sejam enfrentadas com profunda resistência sistémica; não só dentro do sector cultural, mas também por parte da imprensa e do Estado. No âmbito destes estudos de caso, uma tendência relativa a tendências é travada. Pode ser visto no estudo de caso relativo ao protesto contra a transfake no Teatro São Luiz (2023) com a “Nota de Solidariedade” votada favoravelmente pela Câmara Municipal de Lisboa; que nega activamente a discriminação das pessoas trans, e não reconhece o direito das pessoas trans ao protesto, o direito ao acesso equitativo ao trabalho, e o direito a ter locais de trabalho livres de discriminação. Pode ser visto no estudo de caso envolvendo o acto de racismo que decidiu a selecção do artista para representar Portugal na 59ª Bienal de Veneza (2021/2022) através do não cumprimento da lei por parte do Ministério da Cultura; optando por manter a selecção de Pedro Neves Marques apesar de reconhecerem que ganharam devido a um abuso e violação legal do processo de selecção. Pode ser visto no estudo de caso envolvendo a censura de uma discussão sobre o racismo nas artes contemporâneas em Feira Gráfica (2020/2021) na inacção e silêncio dos financiadores do festival, a Câmara Municipal de Lisboa, quando a táctica fascista da censura foi reproduzida; infringindo a lei, mais uma vez sem consequências. E pode ser visto na imprensa, no domínio dos brancos nas discussões públicas sobre o racismo, e no domínio dos cis nas discussões públicas sobre a transfobia. Em todos estes estudos de caso a imprensa pode ser vista dando espaço e prioridade à discriminação flagrante, à normalização dos preconceitos, e a uma retórica fascista de desumanização. A imprensa também pode ser vista a participar na táctica da “gaslighting cultural” – narrativas distorcidas para desgastar movimentos de resistência e comunidades marginalizadas com abusos psíquicos – fabricando o “consentimento” do público em serviço da manutenção da ordem hegemónica.
A violência é sem dúvida institucional e sistémica; a lei contradiz-se a si própria, protegendo uma parte da sociedade e não a historicamente oprimida, a imprensa trabalha decididamente para apoiar a desigualdade social, em favor dos que detêm o poder, e o sector cultural mantém círculos fechados de produção alinhados com a reprodução e manutenção da hegemonia. Isto ocorre no seio de uma cultura profundamente investida na negação da história e das relações de poder na formação de uma identidade nacional. A democracia portuguesa está profundamente em crise. Nem sequer tem 50 anos, e no entanto o espírito revolucionário foi extinto, pois continua a manter uma dinâmica de poder enraizada numa história de capitalismo colonial e de fascismo de estado. É difícil pensar sequer na palavra “democracia” enquanto continuamos a viver sob a subjugação escalada da entropia capitalista tardia. Embora possamos estar fracturados e segmentados como uma sociedade, o poder funciona como uma força unificada e colaborativa. Isto pode ser claramente visto na forma como aqueles que beneficiam da hegemonia, no sector cultural, no jornalismo e na política, trabalham em conjunto para manter histórias de exclusão e exploração pela sua acumulação de poder e capital. Os sujeitos marginalizados têm ocasionalmente acesso a estes círculos de produção de elite, mas o seu acolhimento nestes espaços é frequentemente baseado no seu silêncio e cumplicidade na manutenção da desigualdade sistémica, promovendo a sua própria opressão. A narrativa do poder que nos é dada na hegemonia capitalista é uma narrativa de individualismo. O sucesso é definido pela sua independência e falta de confiança no colectivo. No entanto, este é um dos muitos mitos que conduzem à nossa subjugação. O poder individual adquirido pelo açambarcamento, pela manutenção e pela exclusão está estruturalmente em desvantagem na sua alienação. O poder é mais estável quando é colectivo, colaborativo, mutuamente benéfico, e disperso. Aqueles que são investidos na manutenção do domínio da ordem hegemónica estão conscientes disto, e as práticas que mantêm a hegemonia cultural procuram provocar o consentimento dos subjugados para manter a sua opressão. As comunidades historicamente marginalizadas servem para beneficiar de uma análise do poder, não só para poderem resistir, desmantelar e recusar a preservação da ordem hegemónica, mas também para aprenderem como podemos restaurar o poder colectivo, equitativamente investido no povo e na terra.
O enquadramento do “Colonial Modern Gender System”, articulado por Maria Lugones, pode ajudar-nos a compreender a interligação entre as opressões experimentadas nestes três estudos de caso; na violência estrutural que leva ao protesto, na recusa sistémica das exigências dos manifestantes, e nas forças reguladoras culturais que procuram manter o poder e a centralidade da hegemonia. O reconhecimento da história, do poder e do entrosamento da opressão exige uma resposta que construa uma coligação de resistência através de múltiplas opressões. Fomos aculturados dentro da hegemonia capitalista colonial a “consentir” não só na nossa subjugação mas também na opressão de outros. A hegemonia capitalista colonial valoriza o individualismo, a competição e a dominação, mas isso deve ser entendido como um mecanismo que nos mantém presos à nossa divisão e opressão. O nosso poder, conforto e sobrevivência reside na nossa colaboração e mutualidade. Exige que nos juntemos em luta, que nos encontremos numa multiplicidade de locais de resistência, que expandamos as nossas concepções de identidade. É uma obra de vida, construída sobre uma história de outros que deram das suas vidas em luta para escrever as liberdades do presente. A política existe em todas as coisas, mas para a envolver exige correr riscos, sendo muitas vezes desconfortável – é um local de conflito. Estar envolvido numa política de equidade, uma política que é uma coligação de resistência através de múltiplas opressões, requer um compromisso com um processo de auto-reflexão, estar numa conversa activa com a história, manter uma prática de empatia e humildade, e ter vontade de abandonar o estatuto e o privilégio. Não se trata de ser uma “boa” ou “má” pessoa, nem o trabalho de auto-reflexão está alguma vez “terminado”. Os privilégios que todos nós encarnamos terão de ser constantemente desafiados. É um trabalho de vida, um corpo em constante reconstituição, existente em tempos não lineares e cíclicos. Há trabalho e luta neste processo, mas também alegria, maior do que podemos saber sob o peso da opressão. Neste processo há cura, assim como restauração e formação de comunidade; uma pluralidade de possibilidades para corpos que foram restringidos por vidas ou gerações. É uma conversa com o tempo, com a ancestralidade, entre o humano e o não humano, rizomático e memético, num encontro com novas formas e fraquezas. Isto é feito para o desenvolvimento do poder colectivo, da saúde pública, e da estabilidade não só da humanidade, mas também do planeta.
Em “Art on My Mind”, a autora e activista Bell Hooks disse: “Os usos do tempo, as escolhas que fazemos em relação ao que pensar e escrever, fazem parte da política visual… À medida que pensamos e escrevemos sobre arte visual, à medida que criamos espaços de diálogo para além das fronteiras, engajamo-nos num processo de transformação cultural que acabará por criar uma revolução na visão” [2]. A cultura desempenha um papel vital no processo de construção de uma sociedade mais justa quando está dispersa e nas mãos de muitos, reimaginada, reestruturada e transformada através de uma política de equidade. O trabalho da política, tal como a cultura (que também é política), é investido na narração de histórias e na imaginação. A revolução não é apenas um acto de recusa, mas um processo na imaginação colectiva de novas formas de ser e de se relacionar. No seu livro “Experiments in Imagining Otherwise”, Lola Olufemi escreve:
“A imaginação é essa piscina teleológica: não só cria impulsos libertadores; sustenta-os, justifica-os e legitima-os. Desfaz epistemes inteiras e abre-nos um espaço para criarmos algo novo. Embora esta ‘novidade’, ou a exigência de algo mais, nunca possa ser plenamente realizada no reino do discursivo, ela existe noutros registos: pode ser sentida, ouvida, tocada, provada. Os limites estruturais deste mundo restringem a nossa capacidade de articular tudo aquilo que a imaginação é capaz de conceber. Não esquecer isto… A imaginação é central para a produção cultural dos movimentos revolucionários; o seu papel principal é sinalizar o que poderia ser. O que poderia ser é um substituto linguístico para um conjunto de exigências políticas, sociais e culturais, objectivos estratégicos, anseios revolucionários. Como tal, resiste a uma definição singular: É um fenómeno de peso e a sua moeda é o caos”. [3]
Que imaginários obtêm espaço e permissão para se desdobrarem. Que imaginários devem lutar e lutar pelo seu devir? O que nos dizem eles sobre a sociedade? O que nos dizem sobre a nossa experiência, a nossa diferença, sobre a nossa interligação? Como pode a cultura ajudar-nos a imaginar novas formas de viver, novas formas de relação? Como podemos contar histórias que nos ajudam a decretar futuros mais equitativos? Quem deve ser capaz de lhes contar? Que papel desempenha a cultura na nossa vida quotidiana, na formação da nossa identidade? Como é que a cultura nos ajuda a conhecermo-nos melhor e a encontrarmo-nos uns com os outros? Há um grande poder na imaginação e uma grande responsabilidade no acto criativo. A arte é algo profundamente humano e, portanto, um local necessário de luta, à medida que decretamos colectivamente o poder da nossa inter-relação através de um conjunto de revolta e libertação.
[1] Saturnino, Rodrigo Ribeiro.“Reparem! A cor da cultura portuguesa.” Reparem!, https://reparem.wordpress.com/
[2] Hooks, Bell. Art on My Mind: Visual Politics. New Press, 1998.
[3] Olufemi, Lola. Experiments in Imagining Otherwise. Hajar Press, 2021.